|
The Guardian |
O verbo em questão é o verbo Ter, não é o verbo Ser. E a questão é ter filhos.
Ouço muitas vezes à boca pequena, que determinada pessoa não quer ter filhos, e que isso demonstra muito egoísmo. Será? Eu não gosto de o ouvir. Acho que é feio dizê-lo. Mas diz-se porque a maioria das pessoas quer ter filhos. Só uma pequena franja da população, tem companheiro e decide não ter filhos. E isso, ainda nos dias de hoje só pode ser uma heresia. Afinal, para a maioria das pessoas, o curso normal da vida, é crescer, casar ou viver junto e, claro, ter filhos. E quem quer, mas não consegue ter filhos, são uns infelizes e amaldiçoados. Agora, quem por livre escolha, decide não ter filhos, bom, isso então para a maioria das pessoas só pode mesmo ser malvadez, mas usam sempre a palavra "egoísmo" para ilustrar a situação. Quem não quer ter filhos é egoísta e merecia arder na fogueira.
Mas trata-se do verbo ter. A decisão é: ter ou não ter.
E o que me parece é que, hoje em dia, o verbo ter não anda assim com grande reputação. O ter está sempre associado ao consumismo, a querer inchar o ego, a mostrar aos outros que se é melhor ou espetacular, só porque se tem uma casa maior, um carro maior, uma mamas maiores, que se tem mais e melhor. Que se é melhor do que os outros.
E as pessoas que não querem ter incomodam muito os outros, principalmente se podem ter mas não querem! Eu tenho um telemóvel com mais de dez anos, e se não tivesse dinheiro para comprar um novo, as pessoas olhariam para mim, com ar de pena, coitadinho. Mas eu poderia ter o telemóvel que quisesse, mas não quero. E isso aborrece, incomoda os outros. É quase um ultraje! Como é que alguém consegue ser feliz sem ter o que toda a gente tem?
E quais são então os motivos pelos quais as pessoas decidem ter filhos?
- Não ser diferente dos outros.
Bom, este, estou em crer, será o principal motivo. A maioria das pessoas nem sequer pensa se quer ter filhos ou não. É um dado adquirido. Se casou tem de ter filhos. É como acreditar em Deus. Isso nem se questiona. Andaram na catequese e levaram-nos à missa, o mundo é assim, ponto final. Para quê ousar pensar pela própria cabeça? E depois porque, se ousassem sequer pensar, vem a pressão, sempre a cima, a fazer marcação cerrada que não os deixa respirar. Alguém casa, ou vai viver junto, e a pergunta sacramental é: "então e para quando o primeiro filho? Já estão em idade, não deixam para mais tarde"! Tal como quando têm o primeiro filho, a próxima pergunta será: E então para quando é que vem o segundo?
Ora bem, vão-me desculpar, mas andar no mundo por ver andar os outros, não é de todo um ato altruísta, é antes um ato de conformismo.
- Porque é pecado não ter filhos
Aqui estamos na presença do medo e da fé. Se eu não tiver filhos posso ser castigado.
Mas medo também não é altruísmo, é sim, pensar em si e em não arranjar problemas com Deus.
- Ter filhos para que eles cuidem de nós quando formos mais velhos
Estou em crer que este é outro dos motivos. Ainda não há muito tempo, e ainda nos dias de hoje, em certas culturas, é até habitual que, a filha mais nova não se case porque a sua obrigação é cuidar dos pais até eles morrerem! E uma das coisas que vi aqui bem perto onde vivo, é os pais construírem casas bem maiores do que aquilo que precisavam, muitas vezes até construindo duas casas, uma perto da outra, para que um dos filhos fique na casa dos pais, e o outro possa ter também a sua casa. Os pais partem dos pressuposto que os filhos vão viver com eles para sempre! E muitas vezes não é que gostem assim tanto deles, é simplesmente porque eles lhe fazem falta! Quantas e quantas vezes é que os pais não fazem chantagem com filhos (principalmente com as filhas) quando estas manifestam a sua vontade de abandonar o ninho?
Mas mais uma vez, decidir ter filhos, com o receio de que, se não os tiver, ninguém vai cuidar de si quando forem velhos, vão-me desculpar, mas de novo, não é um ato altruísta, mas sim, um ato oportunista. Como que se está a condicionar a vida dos filhos, que parece que não poderão decidir o seu futuro por si, porque os pais, ainda eles nem nasceram, e já lhes traçaram o destino: cuidar dos pais quando estes forem velhinhos! Isto é mais ou menos como na geração dos meus pais, em que se tinham quanto mais filhos fosse possível, porque depois era mais mão-de-obra para ajudar nos trabalhos agrícolas. E decidir ter muitos filhos, para ter muito empregados em casa, também não é um ato altruísta.
- Para criar uma família
Voltamos sempre ao mesmo, a decisão é sempre ter ou não ter.
Muitas pessoas querem construir uma família, seja lá o que isso for nas suas cabeças. Talvez seja passar os genes, passar o nome da família. Mas decidir ter filhos só para que o nome da família não desapareça também não me convence que seja uma decisão altruísta. Parece-me, novamente, uma decisão baseada no orgulho, no ego, na conveniência. E bem sabemos para que é que o casamento foi inventado: para unir famílias ricas e perpetuar a riqueza entre os mais ricos. As famílias gostam muito dos filhos e das crianças, mas o que é eternamente se fez com os filhos fora do casamento? Eram bastardos, filhos de pais incógnitos, e eram muitas vezes deixados à sua sorte em conventos para as freiras cuidarem. Tudo para que não se dividisse o dinheiro da família. Olha que grande altruísmo e amor pelos filhos!
- Para estar rodeado de Amor
Se há pessoas que não gostam de crianças - e na verdade concordarão comigo se disser que a maioria das crianças são muito fáceis de não se fazer gostar - mas outras pessoas há, que têm um dom natural com crianças. Mas se mesmo dentre desse grupo de pessoas que têm esse dom natural com crianças, muitas decidem não ter filhos, outras sentem ainda mais esse apelo para a maternidade/paternidade.
Mas querer estar rodeado de amor, será mesmo um ato altruísta ou será estar a pensar em si mesmo?
O que eu acho é que as pessoas julgam muito facilmente os outros. E eu não tenho quaisquer dúvidas que há excelentes pais, e também não tenho quais dúvidas da tremenda dificuldade que é ser pai ou mãe nos dias de hoje. É curioso até, que ainda por estes dias estive à conversa com um senhor, que me disse que teve de ser muito inflexível, com os avós e até com pessoas desconhecidas, na educação da sua filha, que terá uns 19 anos. Revi-me muito nas palavras que ele me disse. Eu não faço a mais pequena ideia de como seria como pai. Acho que não se pode sequer imaginar, só mesmo se acontecesse. Mas concordei totalmente quando afirmou "a filha é minha, sou eu que a educo como eu acho que é correto, e não permiti que avós ou estranhos, viessem estragar o trabalho que eu estava a fazer".
E claro que há excelentes pais. Mas, infelizmente, esses não são a maioria. Acho até, e basta ouvir as pessoas, que a maioria detestou ser pai ou mãe. Essa é a verdade com todas as letras. Detestam ter sido pais ou mães, mas não podem dizer que se voltassem atrás não os teriam. Isso seria uma heresia! Cada pessoas é que sabe porque quis ter filhos. Na verdade muitos nem quiseram, mas "aconteceu". Foram pais à força. E só cada pessoa sabe porque quis ter filhos. De igual forma só cada pessoa sabe porque não os quer ter.
Não julguem os outros, nem lhes colem de imediato rótulos fáceis, quando não fazem a mais pequena ideia do porquê das decisões de cada um. Não julguem os outros só porque tomam decisões diferentes das vossas, quando as vossas próprias decisões podem muito bem ser criticadas também. Ter ou não ter filhos não é uma competição para mostrar quem é melhor. É uma opção, uma escolha. E ninguém é melhor ou pior por querer ou não querer ter filhos.