terça-feira, 15 de outubro de 2019

do Triste Temor a Deus

"Fui ensinado a viver sem alegria nem otimismo nenhuns. Para a minha infância, minha e de toda uma burguesia ocupante, o sofrimento era a única razão de viver, mas como obviamente, nós não sofríamos lá grande coisa, havia que construir um mundo de sofrimento que justificasse toda uma conceção roxa e quaresmal da vida, quiçá da história. Onde as pessoas se sentiam verdadeiramente bem era depois das Cinzas, até sábado de Aleluia. Na quaresma se realizava, a pretexto da Paixão da Cristo, todo o adequado encontro entre o objeto homem e aquilo para que tinha sido feito: uma vida que era sofrimento e sacrifício. Isso era vivido em cada gineceu familiar. Antes de adiantarmos já trágicas conceções sobre a tremenda dor humana que, por hipótese lisonjeira, pudessem já estar a imaginar sobre o cenário de infância que me foi dado viver, quero desde já esclarecer que esta dor e este sofrimento não tinham grandeza nenhuma. Era uma tristeza geral e emoldurante que se manifestava em coisas mais ou menos ligadas ao aumento do custo de vida, ao pessoal que era cada vez  mais raro e exigente, aos costumes que se dissolviam a olhos vistos: as operárias já iam ao cabeleireiro e gastavam o dinheiro todo em permanentes. Coisas banais e mesquinhas, coisas mesmo inevitáveis como o frio que fazia no Inverno, mormente numa região montanhosa, ou o calor que fazia no Verão, eram imediato pretexto para os ais justificativos da nossa existência sofredora. A melhor notícia que se poderia dar nessa altura era uma desgraça, quanto mais próxima melhor. Um partir de uma perna, um desastre de automóvel, e então uma morte! Daí resultava que as pessoas se sentiam extraordinariamente importantes e realizadas era em dia de pêsames. No morte dum parente próximo cada um se sentia naquilo para que fora feito, talhando-se a jeito para que dissessem: "Ai", fulano. Era a própria imagem da dor!" (pág. 62)

"Peregrinação Interior - Reflexões sobre Deus" - Alçada Baptista (1971)

2 comentários:

  1. Tenho esse livro. Li há muitos anos. Era do meu pai ou da minha mãe. Também li Os nós e os laços, esse lembro ter comprado. Tenho respeito por esse homem, foi um verdadeiro vulto da cultura. Um verdadeiro embaixador da nossa língua.

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    1. Este é um dos muitos livros que recebi (e acumulei) recentemente, fruto daquela minha ideia de começar a trocar plantas por livros e estão na estante que comprei para o efeito. Não sabia nada deste livro e pouco do autor, além de reconhecer o nome e de me lembrar de ver na televisão.
      E por estes dias, quando andava a remexer na estante, peguei nele e começar a folhear as primeiras páginas e apercebi-me que era sobre reflexões religiosas, e fazia um interessantíssimo retrato do como a Igreja Católica influenciava a vida das pessoas no século vinte. E gostei. Entretanto acabei o que andava a ler do Garcia Marquez e apesar de querer ler uns quantos, decidi ler este, até para desenjoar de romances! E quanto mais tenho avançado mais estou a gostar das reflexões dele.

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