Há coisa de um mês decidi-me a arrancar a enorme estrelícia que tinha em frente da casa. Não, não foi propriamente um "Querida Mudei o Jardim", foi mais um já-estava-farto-de-tanta-raiz-a-tomar-conta-do-relvado-e-farto-de-ter-que-a-cortar-e-podar-em-volta-que-vou-fazer-uma-limpeza-nisto-tudo. Já tinha até começado a cavar em volta (a tarefa não é propriamente fácil) até que os pais, como estão por casa, ofereceram-se para ir lá a casa arrancar aquilo.
No dia em causa que isso aconteceu, cheguei a casa e passado um bocado ouço o meu vizinho a chamar por mim. Este meu vizinho mora duas casas ao lado mas que inicialmente até viveu mesmo ao lado porque aquelas casas são todas da mesma família. Eu cresci ali, naquela rua, e desde pequeno que fui convivendo, ainda que à distância, com os vizinhos, e sempre me habituei a respeitar aquele senhor, que inicialmente usava um bigode e que para ali veio morar porque casou com a filha dos donos daqueles terrenos e que na altura conduzia um Opel Kadett preto de matrícula AU.
Ele chamou por mim e foi subindo o passeio com um saco plástico na mão. Disse-me que, como tinha visto os meus pais por ali, foi apanhar umas ameixas para lhes dar, mas que entretanto quando voltou já os meus pais tinham ido embora. Confiou-mas então a mim para as entregar aos meus pais.
Via Piterest |
Foi há cerca de cinco anos que soube que ele estava doente e isso revoltou-me porque parece mesmo que "coisa ruim não tem desvio" e que só os bons é que se vão antes do tempo. Ele deixou de trabalhar e estava sempre por casa. Mas sempre o vi a trabalhar em casa, nas mais variadas tarefas como cuidar do jardim e do pequeno quintal por onde andam galinhas e patos por entre árvore de fruto, e sempre o vi bem disposto e alegre, ainda que muitas vezes, como é compreensível, se protegesse e recolhesse mais.
E se é verdade que eu sempre tive o hábito de me despedir das pessoas como se fosse a última vez que as vou ver - "tudo de bom!", até porque um dia isso irá mesmo acontecer, com ele, fazia mesmo sempre questão de, sempre que por ele passasse na rua, de carro, ou o via passar da minha casa, sempre fiz questão de lhe dar um aceno e um sorriso sincero. Em boa verdade, já fazia antes de saber que estava doente, mas agora fazia-o ainda com mais sentimento, como que a transmitir-se uma força subliminar, que estamos todos a torcer por ele.
Mas, inesperadamente, no penúltimo fim-de-semana, que ainda por cima fui passar fora, liga-me a minha mãe em choque. Ele tinha morrido e sido enterrado no dia anterior, sem que os meus pais, que moram a setecentos metros de distância, tivessem sabido e podido ir ao funeral, porque não tocou o sino da igreja, que na aldeia serve de alerta que alguém morre.
No telefonema a minha mãe dizia-me que já tinha chorado mais do que se fosse uma pessoa de família, porque, digo eu, não são os laços de sangue que obrigatoriamente nos fazem estar mais ou menos ligados a alguém, é o sentimento que temos por alguém que faz com que determinada pessoa seja importante para nós. E um vizinho, a quem quase só dizemos "olá", mas que temos em grande conta, pode-nos ser mais precioso que alguém da nossa família com quem não temos ligação e que só vemos, com sorte, de dez em dez anos em algum funeral.
A minha mãe viu naquele gesto generoso naquele saco de ameixas (que eram mesmo muito boas) oferecido semanas antes de partir, o simbolismo de se despedir de nós. Talvez tenha sido... não sei, só ele saberá. Mas o que sei é que aquela Rua das Flores ficará mais silenciosa, mais pobre e, senão todos, eu, pelo menos, lhe sentirei bastante a falta. Até sempre R...
E se é verdade que eu sempre tive o hábito de me despedir das pessoas como se fosse a última vez que as vou ver - "tudo de bom!", até porque um dia isso irá mesmo acontecer, com ele, fazia mesmo sempre questão de, sempre que por ele passasse na rua, de carro, ou o via passar da minha casa, sempre fiz questão de lhe dar um aceno e um sorriso sincero. Em boa verdade, já fazia antes de saber que estava doente, mas agora fazia-o ainda com mais sentimento, como que a transmitir-se uma força subliminar, que estamos todos a torcer por ele.
Mas, inesperadamente, no penúltimo fim-de-semana, que ainda por cima fui passar fora, liga-me a minha mãe em choque. Ele tinha morrido e sido enterrado no dia anterior, sem que os meus pais, que moram a setecentos metros de distância, tivessem sabido e podido ir ao funeral, porque não tocou o sino da igreja, que na aldeia serve de alerta que alguém morre.
No telefonema a minha mãe dizia-me que já tinha chorado mais do que se fosse uma pessoa de família, porque, digo eu, não são os laços de sangue que obrigatoriamente nos fazem estar mais ou menos ligados a alguém, é o sentimento que temos por alguém que faz com que determinada pessoa seja importante para nós. E um vizinho, a quem quase só dizemos "olá", mas que temos em grande conta, pode-nos ser mais precioso que alguém da nossa família com quem não temos ligação e que só vemos, com sorte, de dez em dez anos em algum funeral.
A minha mãe viu naquele gesto generoso naquele saco de ameixas (que eram mesmo muito boas) oferecido semanas antes de partir, o simbolismo de se despedir de nós. Talvez tenha sido... não sei, só ele saberá. Mas o que sei é que aquela Rua das Flores ficará mais silenciosa, mais pobre e, senão todos, eu, pelo menos, lhe sentirei bastante a falta. Até sempre R...
É muito triste :(
ResponderEliminarMesmo sendo esperado,nunca se está preparado. Um abraço apertadinho
Obrigado Vera.
EliminarEu deveria dar esse abraço era à minha vizinha, porque se ele deixou de sofrer (ainda que aparentemente não deixou transparecer que sofresse muito com dores e só na última semana é que esteve internado) ela é que fica sozinha (ainda que tenha muitos irmãos e cunhados) mas não tenho confiança para a abordar quando mais para lhe dar esse abraço. Segundo soube ela está a aguentar-se bem, até porque, se calhar teve estes anos para se ir preparando, ainda que, como dizes, nunca se está preparado...
Pena que não tenhas o mesmo tipo de compaixão por toda a gente que conheces e que dedicou tempo da sua vida a ti e que também está a morrer da pior doença que existe e que inclusive te pediu ajuda várias vezes e que continua a precisar de ajuda...
ResponderEliminarO sentimento que nós temos pelos outros só nós mesmos é que sabemos qual é, e pode ou não corresponder ao que pensam de nós. Por exemplo, a minha vizinha nada sabe da forma como eu senti a morte do marido. Pode até achar que me foi indiferente, afinal eles não são da minha família. Depois, a confiança que temos nos outros não é infinita, e as ações têm que corresponder minimamente ao que se diz, mais ainda quando estamos a falar de pessoas que nunca se conheceram. É preciso estar de sobreaviso. Qualquer um, sob o manto do anonimato pode criar a aura que quiser, ser quase quem quiser, e levar os outros a acreditar nisso, mesmo que isso esteja muito longe da verdade. E a confiança não é infinita. Costumo dizer que só temos uma oportunidade de continuar a mostrar que somos dignos de confiança, e, mesmo quando após um e outro aviso, as pessoas continuam a dar sinais contrários ao que dizem ser, então a confiança perde-se de vez e jamais será restaurada.
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