sábado, 29 de agosto de 2015

Insignificâncias que alteram toda uma vida

- É curioso - disse Illidge, seguindo o fio dos pensamentos sugeridos pelas primeiras impressões da sala -, é verdadeiramente extraordinário, em suma, que eu esteja aqui. Pelo menos, sentado com vocês, na qualidade de convidado. Porque não teria sido coisa de surpreender se eu estivesse aqui com umas dessa librés cor de vinho. Isso pelo menos estaria de harmonia com aquilo a que os pastores chamariam "a minha condição social". - Emitiu um riso breve de despeito. - Mas estar aqui sentado com vocês, assim deste modo - chega a ser incrível. E tudo isso se deve ao facto de um lojista de Manchester ter tido um filho com tendências para a escrófula Se Reggie Wright fosse uma criatura normalmente sã, eu a esta hora estaria provavelmente a consertar sapatos em Lancashire. Mas felizmente Reggie tinha bacilos tuberculosos no seu sistema linfático. Os médicos prescreveram-lhe a vida no campo. O pai alugou uma casinha na minha aldeia, para a mulher e o filho, e Reggie foi para a escola local. Mas o pai era ambicioso no que dizia respeito ao filho. (Que ratinho repugnante ele era!) - observou Illidge entre parêntesis.
- Queria que o rapaz entrasse mais tarde para o colégio de Manchester. Com bolsa de estudo. Pagou ao nosso professor para lhe dar lições particulares. Eu era um bom aluno, o professor gostava muito de mim. Enquanto dava repetições a Reggie, julgou que também podia repetir a matéria para mim. Grátis, o que é mais importante. Não permitiu que a minha mãe pagasse um níquel. Não que ela pudesse pagar muito facilmente, a pobre mulher. Veio a época dos exames e fui eu quem ganhou a matrícula gratuita. Reggie foi reprovado. - Illidge riu. - Miserável fetozinho escrofuloso! Mas eu ser-lhe-ei eternamente grato, assim como aos bacilos ativos das suas glândulas. Sem eles eu teria sido sapateiro. E são de coisas como esta que depende toda uma vida; de alguma probabilidade absurda, uma contra um milhão. Uma insignificância, e toda a nossa vida fica alterada. 
- Não, não se trata de uma insignificância - objetou Spandrell. - A tua bolsa de estudo não foi um acidente; estava completamente de acordo, completamente de harmonia contigo. De outro modo, tu não a terias obtido, não estarias agora aqui. Duvido que haja alguma coisa realmente acidental. Todas as coisas que acontecem são intrinsecamente semelhantes ao homem a quem acontecem. 
- Isso é um tanto oracular, não achas? - objetou Philip. - Percebendo os acontecimentos, os homens deformam-nos, apresentam a coisa, de maneira que o que acontece parece-se com eles. 
Spandrell encolheu os ombros.
- Pode ser que essa espécie de deformação exista. Mas eu creio que os acontecimentos se apresentam já feitos para se adaptar às pessoas a quem acontecem. 
- Que asneira! - exclamou Illidge, com desgosto.
Philip discordou de uma maneira mais polida.
- Mas pessoas diferentes podem podem ser influenciadas pelo mesmo acontecimento de maneiras inteiramente diferentes e caraterísitcas. 
- Eu sei - disse Spandrell, - Mas, por algum processo impossível de descrever, o acontecimento é modificado, modificado qualitativamente, de maneira a adaptar-se ao caráter de cada pessoa nele envolvida. É um grande mistério e um paradoxo. 
- Para não dizer um absurdo e uma impossibilidade - acrescentou Illidge. 
- Absurdo seja. Impossibilidade, mesmo - concordou Spandrell. - Mas, apesar e tudo, é assim que as coisas acontecem, na minha opinião. Porque precisas que as coisas sejam explicadas logicamente?




Acabei finalmente o Contraponto do Huxley há já umas semanas. Revi-me em alguns pontos na personagem de Illidge, na sua revolta, principalmente contra os ricos. E aqui neste excerto, na reflexão que ele faz, conjuntamente com os seus amigos, da forma como ele chegou ali. Serão insignificâncias acidentais ou acontecimentos feitos para se adaptar às pessoas a quem acontecem? Coincidência ou destino? Mas este será um livro a que provavelmente voltarei, com mais calma, como quem revê um filme pela segunda vez para ver tudo com outros olhos. 

22 anos

Passam hoje vinte e dois anos que vi o meu pai partir sendo ainda menor de idade. E vinte e dois anos é muito tempo. Os anos passam e o tempo vai apagando algumas memórias, porque a vida tem de continuar. Mas se paramos por um segundo a relembrar o passado, essas memórias começam a voltar aos poucos e tornam-se cada mais nítidas.  

O meu pai não teve uma vida nada fácil. Talvez se lhe adivinhasse uma vida de algum sucesso profissional, pois apesar de só ter a escolaridade obrigatória da altura, era uma espécie de empreendedor e cheio de competências técnicas. A imagem que recordo dele, é de um verdadeiro engenhocas cheio de ideias geniais e de uma habilidade fora do comum.

Mas o destino não se compadeceu e pregou-lhe uma grande partida. Um grave acidente de viação marcou-o com queimaduras pelo corpo, mas marcou-o principalmente para o resto da vida. Tudo poderia ter sido diferente, mas foi assim que as coisas tiveram de acontecer. E tudo mudou. Ainda me lembro de se contar a história, dos irmãos irem de gravata preta, esperando o pior num certo dia, depois do coração ter estar parado uma infinidade de segundos, e dos médicos os terem desenganado. Mas ele resistiu, sobreviveu esse dia, e a outro, e acabou mesmo por passar dois anos enfiado numa cama de hospital. E haveria de sair do hospital pelo seu próprio pé.

Contrariou os médicos e ainda foi a tempo de casar com a mulher que gostava dele, e que por ele sempre esperou, apesar dos "conselhos" de algumas pessoas, que a aconselhavam a desistir - afinal o amor nunca foi incondicional não é? É só na saúde e nos bons momentos. Nos maus, abandonam-se as pessoas, tal como se abandona um cão quando se vai se férias. Mas ele ainda haveria de ir a tempo de casar e ainda foi a tempo de deixar um descendente neste mundo: Eu. 

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E eu muitas vezes como que me culpo por não ter ajudado mais o meu pai. Ajudado naquilo que eu se calhar, hoje acho que poderia ajudar, mais do que as drogas dos médicos. Eu sei que ainda não tinha o conhecimento ou a sensibilidade para tal... E talvez também por isso acabei por me transformar numa pessoa que hoje nunca desiste de ajudar que está por perto...mas infelizmente não fui a tempo de ajudar o meu pai. 

Muitas coisas aconteceram nestes vinte e dois anos. Muitas coisas se passaram na minha vida e que o meu pai não pôde acompanhar. Talvez ele tenha mesmo ido podendo acompanhar ainda que observando as coisas de outro plano, que não o plano terreno. E eu não faço ideia do que ele acharia de mim, do adulto em que me tornei. Nós temos de viver por nós, temos de fazer as nossas escolhas, por vezes cometer os nossos erros, e por vezes temos de fazer as coisas de forma muito diferente daquilo que os nossos pais fariam. Mas claro que gostaria de saber que ele, esteja onde estiver, sentisse um pouquinho de orgulho no filho. Aquele orgulho que ele sentia, quando eu tinha três anos e sabia o nome de centenas de jogadores de futebol nos cromos da bola. "Ele tem de saber ler" diziam as pessoas estupefactas. Mas não, eu só sabia os nomes dos jogadores nos cromos da bola, porque o meu pai, me ensinava os nomes deles, e eu então memorizava-os. 

Há algum tempo, uma amiga transmitia-me a informação: "ele já não anda por cá,  ele já passou para o outro lado". Pois então, e seja esse lado onde for, que esteja bem e que tenha alcançado a paz, pois tormentos, infelizmente, já passou que chegue em vida. 

Até breve. Espero que nos possamos reencontrar de novo, um dia,  nesse tal outro lado. 

sábado, 22 de agosto de 2015

Post Coitum Triste

ou Da intelectualidade e da dificuldade do saber viver

Ah! Que dificuldades há em transpor esse abismo! Percebo agora que o verdadeiro encanto da vida intelectual - da vida consagrada à erudição, à pesquisa científica, à filosofia, à estética, à crítica - é a sua facilidade. É a substituição de simples esquemas intelectuais por complicações da realidade; da morte calma e formal pelos movimentos desconcertantes da vida. É incomparavelmente mais fácil saber muitas coisa, digamos, sobre a história da arte e ter ideais sobre metafísica e sociologia do que conhecer pessoalmente, intuitivamente, os seus semelhantes e ter relações agradáveis com os seus amigos e as suas amantes, a sua mulher e os seus filhos. Viver é muito mais difícil que o sânscrito, que a química ou que a economia política. 




A vida intelectual é um brinquedo de criança; eis porque os intelectuais têm uma tendência para voltar à infância, para cair em seguida na imbecilidade e, finalmente, como demonstra com clareza a história política destes últimos século, para se tornarem homicidas loucos e selvagens. As funções reprimidas não morrem. atrofiam-se, degeneram, revertem ao estado primitivo. Mas por ora é muito mais fácil ser criança, louco ou besta, do que homem adulto harmonioso. É por isto que, (entre outras razões) a educação superior é exigida da maneira que se vê. A corrida para os livros e para as universidades lembra a corrida para as tabernas. As pessoas necessitam de afogar a consciência que têm das dificuldades que há em viver decentemente neste mundo contemporâneo tão grotesco: têm necessidade de esquecer a sua própria e deplorável insuficiência como peritos na arte de viver. Uns afogam as suas tristezas no álcool, mas outros, ainda mais numerosos, afogam-nas nos livros, e no diletantismo artístico: uns procuram achar esquecimento de si mesmos no sexo, na dança, no cinema, na radiofonia; outros nas conferências e nas ocupações científicas. Os livros e as conferências são melhores para afogar as mágoas que a bebida e o sexo; não deixam dor de cabeça nem essa sensação de post coitum triste.

Capítulo XXVI / Contraponto / Aldous Huxley / 1928

quarta-feira, 19 de agosto de 2015

O abraço que lhe devia ter oferecido

Dois dias longe de casa a passear, ora sozinho, ora acompanhado por amigos na maior parte do tempo, e um dos momentos que mais me marcou, foi já pouco antes de os deixar em Coimbra e regressar ao leito da minha querida almofada.

Antes da visita à mata, já lá tinha entrado para pedir um mapa com os diferentes percursos, mas foi ao fim da tarde antes de vir embora, que lá voltei aquela loja daquele palácio para dar uma vista de olhos nos artigos que por lá tinham à venda, quando no fundo até já sabia o que iria comprar, mas foi com o meu jeito sempre tão natural de fazer conversa que fiquei a saber um pouco mais sobre a pessoa que estava por trás do balcão.

E mal saí da porta, depois de lhe ter desejado muita sorte e que tudo de bom lhe aconteça no futuro, que eu e a amiga que estava comigo - que também não gosta nada de conversar - olhámos um para o outro e comentámos: "ela estava mesmo triste".


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Nos poucos minutos que estivemos à conversa, aproveitando o facto de não estar por lá mais ninguém, aquela pessoa ficou a saber um pouquinho sobre mim, que estive desempregado bastante tempo e como até tive alguma sorte de encontrar algo aceitável atendendo à realidade bem negra que o país atravessa. E talvez por se ter sentido identificada com algumas das coisas que ouviu - a irmã até tem a mesma doença que eu  - foi então que aquela pessoa que estava ali atrás do balcão, e que é paga para vender e não para falar da sua vida pessoal, acabou mesmo por desabar um pouco, e nos mostrar como este país trata as pessoas que tentam viver dignamente.

São estas realidades destas pessoas, estes dramas pessoais - "tenho muitas coisas nas minhas costas" disse-nos - que a corja de políticos deveria estar empenhada, primeiro em ouvir, e depois em ajudar e melhorar as condições de vida das pessoas, e não em fazer precisamente o contrário, espezinhando os que pouco ou nada têm, e dificultar cada vez mais a vida a quem quer trabalhar, e protegendo e metendo tudo no cu dos patrões e dos mais ricos, para que eles multipliquem ainda mais o muito que já têm. E quem não estiver bem que se ponha, pode sempre imigrar, pois assim sempre ajuda a baixar os números do desemprego, e quando todos os desempregados e todos os precários deste país imigrarem, dá-se o milagre do pleno emprego.

Além do flagelo do desemprego, que eu mesmo senti na pele, há depois o não menor drama daqueles que têm emprego mas são verdadeiramente escravizados. trabalhando muitas vezes mais de oito horas por dia, a troco de pouco mais que nada. Foi o que nos contou esta pessoa, que além de ganhar o salário mínimo a recibos verdes, o que significa que lhe sobra muito pouco depois do que lhe roubam em impostos, e ainda tem de trabalhar bem mais que oito horas por dia. Mais do que vergonhoso, estas situações são verdadeiramente revoltantes. 

No dia de ontem, quem entra e vê esta pessoa que estava ali a trabalhar naquele palácio, tentando mostrar a sua melhor cara, sempre simpática para quem chega, está longe de imaginar quão difícil é a sua vida. Naquele dia em que lá estive e ela me mostrou a sua melhor cara e simpatia para me vender o ser vivo que resolvi trazer como recordação daquele passeio, ficamos a saber que ela tinha uma prima que ia a enterrar naquele dia, e que nem sequer pôde estar presente porque "nem sequer podemos faltar ao trabalho" pois é vítima dos falsos recibos verdes, que deveriam ser combatidos, mas que é o próprio Estado na pele dos políticos corruptos que continuam a perpetuá-los. 

Há muito que deixei de acreditar que conseguiria mudar o mundo, mas sinceramente o que eu acho que ao menos deveria ter feito, era ter-lhe oferecido um abraço sentido.

terça-feira, 18 de agosto de 2015

Sociedade




Oh...É um mistério para mim

Termos uma ganância com a qual concordamos

E tu pensas que tens de ter mais do que precisas

E enquanto não tiveres tudo não ficarás descansado

Sociedade, sua raça louca

Espero que não estejas tão sozinha sem mim

Quando tu queres mais do que tens

Tu pensas que precisas

E quando tu pensas em mais do que tens

Os teus pensamentos começam a sangrar

Eu acho que preciso encontrar um sítio maior

Porque quando tu tens mais do que pensas

Tu precisas de mais espaço...


Society / Into the Wild / Eddie Vedder / 2007

domingo, 16 de agosto de 2015

Jogar ao "Eu nunca"....

Mais uma vez Perdidos.
Sawyer e Kate jogam um jogo chamado "Eu nunca". Sawyer diz a Kate que o jogo é uma forma de se conhecerem melhor, e já agora de se embebedarem, digo eu! Cada um alternadamente afirma algo começando por "eu nunca", e quem o fez terá de beber. Sawyer dá um exemplo "eu nunca beijei um homem", logo Kate terá de beber.

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E por estes dias pus-me a pensar, nas coisas que "eu nunca" fiz e cheguei a algumas conclusões:

- Eu nunca fingi um orgasmo (claro que também há homens que fingem)
- Eu nunca entrei numa discoteca (deixa-me já benzer!)
- Eu nunca fui ao cinema sozinho 
- Eu nunca usei aparelho nos dentes 
- Eu nunca fiz uma tatuagem (e ainda bem que não fiz)
- Eu nunca fiz uma lista de resoluções de Ano Novo (Nunca prometas o que não vais cumprir)
- Eu nunca bebi bebidas alcoólicas (Sim nenhuma)
- Eu nunca cheguei atrasado a um encontro
- Eu nunca parti um osso
- Eu nunca usei gravata (Não, nem nos casamentos)
- Eu nunca traí uma namorada (nem a namorada dos outros)
- Eu nunca andei à pancada (O meu pai sempre me disse "o mais valente é o que nem dá nem leva")
- Eu nunca tive um encontro só de uma noite 
- Eu nunca comi uma francesinha (Eu sou mais de portuguesinhas)
- Eu nunca tive sexo com uma puta (Mas acho que não me importava que me pagassem a mim!)
- Eu nunca fui ao circo (Não vou muito em palhaçadas)
- Eu nunca andei de avião
- Eu nunca tomei um café
- Eu nunca rapei o cabelo
- Eu nunca joguei ténis
- Eu nunca comprei flores para oferecer à namorada
- Eu nunca estive num Motel
- Eu nunca terminei uma relação
- Eu nunca tive uma consola de jogos
- Eu nunca me despedi de um emprego
- Eu nunca me registei no Facebook (Medo!)
- Eu nunca mudei de opinião só para tentar agradar aos outros
- Eu nunca abandonei um animal de estimação 
- Eu nunca participei numa peça de teatro (Será que eu teria jeito para a coisa?)
- Eu nunca fui preso
- Eu nunca tive sexo com uma mãe
- Eu nunca tomei anti-depressivos
- Eu nunca bebi uma bebida energética (daquelas que dizem que dão asas)
- Eu nunca mudei uma fralda a um bebé (talvez tenha ajudado mas isso não conta)
- Eu nunca joguei na lotaria (Se calhar devia, com o azar que tenho ao amor ficava rico)
- Eu nunca me inscrevi num ginásio
- Eu nunca vi o filme "O rei leão"
- E continua...


Poderei ir editando a lista, apagando coisas que entretanto fiz, ou talvez me apeteça juntar mais umas quantas que nunca fiz, afinal escrevi ao calhas conforme me fui lembrando. No meio disto tudo, grande parte das coisas que "nunca fiz" serão para continuar assim. Talvez admita fazer uma ou outra coisa. Andar de avião talvez seja a coisa mais próxima de poder acontecer, até contra a minha vontade, ou ir ao cinema sozinho, ou visitar a decoração de um Motel. Quanto às outras acho que estão muito bem assim...

De resto Sawyer, não acho que se possa ficar a saber muito de uma pessoa pelas coisas que ela nunca fez. Quem olhar aqui para os meus "eu nunca", provavelmente ficará com uma ideia completamente errada da pessoa que eu sou. E talvez esteja aí a graça da coisa. Iludir os outros com a verdade. 

quarta-feira, 12 de agosto de 2015

A esfera armilar dos imigrantes parolos

Todos os anos é a mesma coisa. Chega-se a agosto e é ver a imigrantada toda a passear-se em carros desportivos - e vá lá saber-se porquê - a falar em francês e a vir casar à santa terrinha. Ainda este fim-de-semana, passei por um casamento em que basicamente só vi carros de matrícula francesa e suiça. Olhava para tal espetáculo e até me interrogava: - terão vindo em procissão desde casa do noivo, lá de terras gaulesas, para casar na santa igreja da terrinha da noiva cá em Portugal? Não faço ideia qual é o fenómeno, mas sei é que tive de esperar uns quantos minutos, até que aquela enorme bicha de carros de matrícula estrangeira, com fitinhas nas antenas, decidisse estacionar para que eu pudesse ir à minha vidinha.  

No meio daquela azáfama toda voltei a reparar num pormenor que também já há muito me intriga e que só se costuma ver por estas alturas de agosto, quando está de volta a parolada dos imigrantes. Vi novamente vários carros de imigrantes com matrícula estrangeira, incluindo no casamento, ostentando o símbolo da Federação Portuguesa de Futebol. 

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Até comentei com uma amiga minha que curiosamente até está radicada em França há algum tempo, para ver se ela tinha uma explicação para tal fenómeno! E ela deu-me uma explicação perfeitamente plausível. A avec-imigrantada-parolo-azeiteira coloca o símbolo da FPF no vidro traseiro do carro que exibe com todo o orgulho porque pensa que aquilo é a esfera armilar da bandeira nacional!
Pois, realmente assim já faz todo o sentido!

terça-feira, 11 de agosto de 2015

Tu não sabes o que eu te posso dar

Elinor sentiu-se como que paralisada pela aproximação do acontecimento inevitável. Nada mais podia fazer senão ficar sentada e esperar. E por fim o inevitável aconteceu, como deveria acontecer.
- Lembras-te - perguntou ele lentamente - sem erguer os olhos - do que eu te disse antes da tua partida?
- Julguei que tivéssemos combinado não tornar a falar disso...
Everard deitou a cabeça para trás, como uma pequena risada.
- Pois bem, enganaste-te. - Olhou-a e leu nos olhos dela uma expressão de angústia e de inquietação, um apelo à sua clemência. Mas foi implacável. Fincou os cotovelos na mesa e inclinou-se para ela.
Elinor baixou os olhos.
Com a sua voz macia cheia de reservas latentes de violência, ele falou:
- Disseste-me que não mudei, no que diz respeito à fisionomia. Pois bem, o meu coração também não mudou. Ficou o mesmo, Elinor, sempre o mesmo desde que partiste. Amo-te tanto quanto te amei sempre, Elinor. Não, amo-te mais. - Ela estendera a mão para a frente, pousando-a na mesa. Webley estendeu também uma das suas e tomou a de Elinor. - Elinor... - murmurou.
Ela sacudiu a cabeça sem olhar para o amigo.
Docemente, apaixonadamente, ele continuou a falar:
- Tu não sabes o que pode ser o amor. Tu não sabes o que eu te posso dar. O amor que é desesperado e louco, como uma esperança derradeira. E ao mesmo tempo terno, como de uma mãe para com o filho doente... O amor é violento e suave, violento como um crime, e suave como o sono.
"Palavras - pensava Elinor - palavras absurdas, melodramáticas." Mas elas comoviam, como a lisonja dele a tinha comovido.
- Por favor, Everard - disse ela em voz alta - cala-te. - Não queria deixar-se comover. Fez um esforço para manter o olhar firme enquanto observava o rosto dele, os seus olhos vivos e perscrutadores. Tentou um sorriso, abanou a cabeça. - Porque é impossível, e tu bem sabes.
- Tudo o que sei - disse lentamente - é que tens medo. Medo de vir para a vida. Porque tu viveste meia-morta todos estes anos. Não tiveste a menor oportunidade de despertar plenamente para a vida. E sabes que eu ta posso dar. Tens medo, tens medo.
- Que tolice!
Aquilo tudo era bombástico, melodramático.
- E talvez tu tenhas razão, nem certo sentido. Ser vivo, verdadeiramente vivo, não é uma simples farsa. É perigoso. Mas, por Deus! - ( e a violência latente da sua voz doce subitamente vibrou, solta, numa realidade sonora) - é sensacional.
- Se soubesses que susto me pregaste! Gritando dessa maneira.. - Mas não fora apenas o susto o que ele sentira. Os seus nervos e a sua própria carne vibravam ainda às sensações obscuras e violentas do triunfo que a voz de Webley tinha despertado nela. - "É ridículo" - pensava Elinor, para se tranquilizar. Mas foi como se tivesse ouvido aquela voz diretamente com todo o seu corpo. Os ecos pareciam vibrar no seu próprio diafragma... "Ridículo" - repetiu ela... E depois que era aquele amor de que ele falava de uma maneira tão vibrante? Apenas um breve interlúdio de violência, nos intervalos dos negócios. Everard desprezava as mulheres, querias-lhes mal porque elas consumiam o tempo e a energia dos homens. Elinor muitas vezes ouvira dizer que ele não tinha tempo de se ocupar com o amor. As suas avançadas eram quase um insulto - como as propostas que se fazem a uma mulher da rua. 
- Sê razoável, Everard - disse ela.
Everard tirou a mão de Elinor e depois, com uma risada, atirou-se para trás na cadeira.
- Muito bem. Por hoje. 
- Para sempre. - Ela sentiu-se profundamente aliviada. - De resto - acrescentou, citando uma frase de Webley com um leve sorriso irónico -, tu não és membro dessa classe ociosa... Tens coisas mais importante a fazer do que ocupares-te com o amor.
Everard olhou-a por alguns instantes em silêncio, e o seu rosto tornou-se grave, com um ar de ameaça pensativa. Coisas a fazer? Era verdade, sem dúvida. Estava zangado consigo mesmo por desejá-la tão violentamente. E zangado também com Elinor por deixá-lo assim insatisfeito.
- Devemos falar de Shakespeare? - perguntou ele sarcasticamente. - Ou sobre o copofone?

Capítulo XXI / Contraponto / Point Counter Point/ Aldous Huxley

Em tempos conheci uma senhora que me dizia que tomava sempre nota do porquê de ter comprado determinado livro. Certamente essa pessoa leu muito mais livros que eu, e certamente será também bem mais metódica que eu. De qualquer forma este meu livro foi comprado usado já há muitos anos, sem nunca o ter lido. E comprei-o só por causa do nome do autor, pois na adolescência havia lido um dos seus livros (o único dele que li) e havia gostado bastante. 
Vou a pouco mais de meio do livro - já por aqui tinha escrito que gosto de me deliciar com tudo, gosto de fazer as coisas com calma, não tenho de ler o livro numa semana - e para já só tenho a dizer que estou a gostar cada vez mais, e que idiota que fui em não o ter lido há mais tempo. 

domingo, 2 de agosto de 2015

Um ano de outra coisa qualquer...

Os dias passam muito rápido e num abrir e fechar de olhos, já passou um ano desde que voltei a trabalhar. O destino havia de me reservar uma empresa com um nome de banda de Gothic Metal, mas o mais importante, haveria de me reservar também o ambiente mais surreal que alguma vez encontrei numa empresa. Acho que surreal é mesmo o adjetivo!

Os primeiros meses não foram propriamente fáceis e se calhar por culpa própria. Mais do que as mil-e-uma-coisas diferentes que tive de aprender, creio que foi mais a ansiedade, o nervosismo e o medo de falhar que me complicaram a vida. Foi muito tempo desempregado, e a sociedade e a merda dos políticos que nos infernizam a vida estigmatizam-nos, e vendem a ideia que os desempregados umas sanguessugas mandrionas, uns verdadeiros criminosos que nada querem fazer, quando os verdadeiros criminosos são os políticos que nos roubam o dinheiro que descontamos muitos anos, para o termos disponível quando ficamos desempregados contra a nossa vontade. 

Eu acho que sei bem o que valho, principalmente como pessoa, mas também no local de trabalho. Mas é normal que comecemos a duvidar das nossas capacidades. Foi muito tempo fora da realidade laboral, há toda aquela inércia, o voltar para a rotina, o conhecer um novo ambiente, novos colegas, novos desafios, acho que é normal passar-se por esses período de ansiedade. Bom, em boa verdade talvez eu tenha ficado um bocado ansioso de mais.

Mas aos poucos as coisas foram entrando nos eixos. Começamos a ficar mais confiantes, mais autónomos, no fundo começamos a conhecer os cantos à casa e o trabalho de todos os dias deixa de ter segredos para nós, e começamo-nos a sentir parte da equipa. 


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Depois não tenho chefes, nem chefinhos, coordenador ou team leader ou outro qualquer anglicismo com nome pomposo que até parece uma coisa importante. Não tenho ninguém a foder-me o juízo constantemente. Tenho patrões e é a eles que respondo. Por vezes passam-se dias que o patrão nem vem ver o que ando a fazer. E eu gosto disso. Sei o que tenho para fazer, como fazer, sou responsável pelo meu trabalho e ele tem de aparecer bem feito. 

Depois o ambiente. Por vezes acho que é verdadeiramente surreal. Infelizmente não vos posso contar algumas das peripécias, pois certamente deve existir um qualquer código ético-deontológico do trabalho que não permite que violemos o sigilo laboral. Afinal, o que se passa no trabalho, deve ficar no trabalho certo? Mais ou menos como qualquer cavalheiro que nunca revela nada acerca das senhoras com quem confraternize!

E foi um ano em que ainda não tive de enfrentar o meu - eufemisticamente - a minha antipatia a meter-me dentro de um avião. E no fundo esse foi o meu principal motivo de ansiedade. Mas não tive de ir dar uma voltazita ali a África ou ao Brasil. Um ano depois, talvez esteja agora mais preparado a enfiar-me nessa máquina voadora, para voluntariamente, a lazer e não a trabalho, experimentar a coisa. Quem sabe?

Foi um longo calvário de desemprego. Os únicos vestígios que ficaram é um moreno, não castanho escuro, mas quase dourado na minha pele, verdadeiramente de fazer inveja! Um ano sem fazer praia, e a minha pele outrora branca, típica de quem tem cabelos loiros e olhos claros, ainda apresenta agora um moreno permanente de três anos de desemprego, mas de quem nunca ficou dentro de casa e aproveitou o sol. Afinal o sol quando nasce é para todos, mesmo para os desempregados. 

Um ano passou-se num ápice e na verdade gosto muito de trabalhar lá e não nada há dinheiro que pague sentirmo-nos bem no local de trabalho. Nesta sociedade somos obrigados a trabalhar para ter o que comer. E é o sítio onde passamos mais tempo, então, que seja ao menos um local onde nos sintamos minimamente confortáveis. Nem sempre é possível, eu tive essa sorte.