Eça de Queirós escreveu um artigo intitulado "O Miantonomah", inspirado pelo navio de guerra que fundeou em Lisboa em 1866 com o mesmo nome. E foi a desculpa para escrever sobre os Estados Unidos, um artigo publicado na Gazeta de Portugal, e que hoje pode ser encontrado no livro "Prosas Poéticas". Apesar de ter mais de 150 anos, olhando para os tempos atuais dos Estados Unidos, não poderia estar mais atual:
"(...) Tal é o Miantonomah, navio de guerra da América do Norte.
Nós entrevemos a América como uma oficina sombria e resplandecente, perdida ao longe nos mares, cheia de vozes, de coloridos, de forças, de cintilações.
Entrevemo-la assim: movimentos imensos de capital: adoração exclusiva e única do deus Dólar; superabundância de vida; exageração de meios; violenta predominação do individualismo; grande senso prático; atmosfera pesada de positivismos estéreis; uma febre quase dolorosa do movimento industrial; aproveitamento avaro de todas as forças; extremo desprezo pelos territórios; preocupação exclusiva do útil e do económico; doutrinas de uma filosofia e uma moral egoísta e mercantil; todo o pensamento repassado dessa influência; uma fria liberdade de costumes; uma seriedade artificial e brusca; dominação terrível da burguesia; movimentos, construções, maquinismos, fábricas, colonizações, exportações colossais, forças extremas, acumulação imensa de indústrias, esquadras terríveis, uma estranha derramação de jornais, de panfletos, de gazetas, de revistas, um luxo excessivo; e por fim um profundo tédio pelo vazio que deixa na alma as adorações do deus Dólar: depois a mesma temperatura e a mesma geologia da Europa.
Assim entrevemos a América, ao longe, como uma estação entre a Europa e a Ásia, aberta ao Atlântico e ao Pacífico, com uma bela costa de navegação cheia de enseadas, molhada de grandes lagos, com os seus grandes rios que escorrem entre as terras, as culturas, as fábricas, as plantações, os engenhos, levados pomposamente pelo Mississipi para o golfo do México: e depois uma Natureza vigorosa, fecunda, eleita, desaparecendo entre as indústrias, os fumos das fábricas, as construções, os maquinismos, todas as complicações mercantis da América – como uma pouca de erva de uma campina fértil que desaparece sob uma amontoação. nervosa de homens.
A vida da América do Norte é quase um paroxismo.
Isto é decididamente uma grande força, uma vida enorme, superabundante. Mas será vital, fecundo, cheio de futuro? Todos os dias dizem à Europa: «Olhai para os Estados Unidos, lá está o ideal liberal, democrático, e, sobretudo, a grande questão, o ideal económico.»
Mas a América consagra a doutrina egoísta e mercantil de Monroe, pela qual uma nacionalidade se encolhe na sua geografia e na sua vitalidade, longe das outras pátrias; esquece as suas antigas tradições democráticas e as ideias gerais para se perder no movimento das indústrias e das mercancias; alia-se com a Rússia; a raça saxónia vai desconhecendo os grandes lados do seu destino, enrodilha-se estreitamente nos egoísmos políticos e nas preocupações mercantis, cisma conquistas e extensões de territórios, subordina o elemento grandioso e divino ao elemento positivo e egoísta, e a grande figura sideral do Direito às fábricas, que fumegam negramente, nos arredores de Goetring. Isto dizem muitos.
Uma das inferioridades da América é a falta de ciências filosóficas, de ciências históricas e de ciências sociais. A nação que não tem sábios, grandes críticos, analisadores, filósofos, reconstruidores, ásperos buscadores do ideal, não pode pesar muito no mundo político, como não pode pesar muito no mundo moral.
Enquanto a superioridade foi daqueles que batalhavam, que lançavam grandes massas de cavalarias, que apareciam reluzentes entre as metralhas, o Oriente dominou, trigueiro e resplandecente. Quando a superioridade foi daqueles que pensavam, que descobriam sistemas, civilizações, que estudavam a Terra, os astros, o homem, e faziam a geologia, a astronomia, a filosofia, o Oriente caiu, miserável e rasteiro.
Há, sobretudo, na América um profundo desleixo nas ciências históricas. Inferioridade. As ciências históricas são a base fecunda das ciências sociais. É a superioridade da Europa: sob a mesma aparência de febre industrial há uma geração forte, grave, ideal, que está construindo a nova humanidade sobre o direito, a razão e a justiça. O nosso mundo europeu é também uma estranha amontoação de contrastes e de destinos; é uma época esta anormal em que se encontram todas as eflorescências fecundas e todas as velhas podridões; políticas superficiais; grandes fanatismos: e ao mesmo tempo um desafogo das livres consciências, expurgação dos velhos ritos, e a alma moderna ligada na sua moral e na sua justiça às almas primitivas com exclusão da
Idade Média; políticas pacificas e transigentes, e um espírito de guerra surdo, aceso e flamejante: territórios violentos e conquistados, e a aniquilação pela política, pela história e pela filosofia dos conquistadores e dos heróis: nem são as influências monárquicas, nem é o individualismo; nem é o humanitarismo, nem são os políticos egoístas, não é a importância das individualidades, nem a importância dos territórios; é uma confusão horrível de mundos, e, em cima, triunfal e soberba, está a indústria, entre as músicas dos metais, as arquitecturas das Bolsas, reluzente, cintilante, colorida, sonora, enquanto no vento passa o seu sonho eterno que são fortunas, impérios, festas, empresas, parques, serralhos.
Ora em baixo, sob a confusão, sereno, fecundo, forte, justo, bom, livre, move-se em germe um novo mundo económico. Este germe é que a América não tem, creio eu. Mas vê-se que todos a apontam como o ideal económico que é necessário que os pensadores meditem, e todos os que no vazio fecundo das filosofias riscam as sociedades. Ora toda a América económica se explica por esta palavra – feudalismo industrial..
Diz-se, na América há um constante aumento de tráfico, de receitas, de riquezas: não há aumento; há deslocação, deslocação em proveito da alta finança – com detrimento das pequenas indústrias produtoras. Logo que na ordem económica não haja um balanço exacto de forças, de produção, de salários, de trabalhos, de benefícios, de impostos, haverá uma aristocracia financeira, que cresce, reluz, engorda, incha, e ao mesmo tempo uma democracia de produtores que emagrece, definha e dissipa-se nos proletariados: e como o equilíbrio não cessa, não cessam estas terríveis desuniformidades.
Mas o grande mal da predominância exclusiva da indústria é este: o trabalho pela repugnância que excita, pela absorção completa de toda a vitalidade física, pela aniquilação e quebrantamento da seiva material, pela liberdade em que deixa as faculdades de concepção – por isso mesmo sobreexcita o espírito, estende os ideais, abre grandes vazios na alma, complica as precisões, torna insuportável a pobreza: nas grandes democracias industriais onde as posições são obtidas pela perseverança, conquistadas pela habilidade, onde há mil motores – a ambição, a inveja, a esperança, o desejo, o cérebro aquece-se, espiritualiza-se, cria sonhos, ambições, necessidades impossíveis; o querer chegar torna-se uma verdadeira doença de alma: exageram-se os meios: e toda a seiva moral se altera e se deforma.
É o que vai acontecendo na América: debaixo da frieza aparente, move-se todo um mundo terrível de desejos, de desesperanças, de vontades violentas, de aspirações nevrálgicas. Depois, como no meio das indústrias ruidosas e absorvedoras muitas amarguras ficam por adoçar, muitas angústias por serenar, muitas fomes por matar, muitas ignorâncias por alumiar, tudo isso se ergue terrível no meio da febre da vida social, e toma-a mais perigosa. Londres dá hoje o aspecto desta luta.
De maneira que o trabalho incessante, enorme, irrita e exagera o desejo das riquezas; aferventa o cérebro, sobreexcita a sensibilidade, a população cresce, a concorrência é áspera, as necessidades descomedidas, infinitas as complicações económicas, e aí está sempre entre riscos a vida social. Entre riscos, porque vem a luta dos interesses, a guerra das classes, o assalto das propriedades e por fim as revoluções políticas.
E todavia a liberdade da América parece tão serena, tão confiada, tão assente, tão satisfeita!
No entanto há muita força fecunda nos Estados Unidos! Ainda há pouco deram o exemplo glorioso de uma nação que deixa os seus positivismos, a sua indústria, os seus egoísmos, o seu profundo interesse, e arma exércitos, esquadras, dissipa milhões, e vai bater-se por uma ideia, por uma abstracção, por um princípio, pela justiça.
O Sul quis corrigir a liberdade pela escravatura; desune-se; o escravo que trabalhe, que cultive, que produza, que sue, que morra sob a força metálica, baça e sinistra do clima e do Sol.
Pois bem. A América do Norte quer a liberdade, o amor das raças, e bate-se pela liberdade, pela legalidade, pela união, pelo princípio, pela metafísica! E dispersa os exércitos da Virgínia!
Eram estas as coisas que me lembravam há dias, no Tejo, estando a ver o
Miantonomah, navio dos Estados Unidos em viagem pelo Sul, comandante Beaumont, fundeado no nosso Tejo..
Eça de Queiroz, 2 de dezembro de 1866