terça-feira, 31 de dezembro de 2024

A Passagem de Ano

 


A crónica completa de onde excerto foi retirado pode ser lido no site do Diário de Notícias. Chama-se: "Hoje quem vos escreve é a Rute", da psicóloga Rute Agulhas. Este excerto poderia ter sido escrito por mim, excluindo só o líquido que estava no copo... 

sexta-feira, 27 de dezembro de 2024

A Felicidade Está no Caminho e Não no Destino

Excelente texto do Miguel Esteves Cardoso, publicado na revista Fugas do Público a 14 de Dezembro deste mês a que deu o título de "Andar atrás da felicidade vale mais pelo andar do que por outra coisa", mas que também se poderia intitular "o vício dos atalhos":


"Um dos piores mas mais compreensíveis vícios humanos é o vício dos atalhos.

Vejo alguém a ler um livro há mais de um mês, a tirar apontamentos e a consultar outros e pergunto-lhe de chofre: “Então, qual é a grande lição desse livro?” Não temos tempo. Não temos vagar. Temos outras coisas para fazer. E é com essas desculpas que passamos a vida à procura de atalhos. Querer um atalho é isto: quero ter o benefício desta coisa, mas não estou disposto a trabalhar por isso. Importas-te de me dar um resumo?

O atalhismo leva à abreviação de tudo. Mas o mal não é esse. É outro, muito mais daninho.

Quando vemos que uma coisa traz felicidade a alguém, queremos logo experimentar essa coisa, com a ideia que também nos pode trazer felicidade. Alguém está a gostar dum livro, duma cidade, duma pessoa? Vou já experimentá-la, a ver se me traz felicidade também. Mas não é o nome do livro que interessa: é como se chegou lá.

Como é que eu o encontrei? Quanto tive de procurar? Que critérios empreguei? Que livros li antes?

É o velho problema: há, de facto, livros para cada um de nós, em cada altura das nossas vidas. Mas como encontrar os livros certos para cada pessoa?



Claro que tudo é subjectivo e que é impossível adivinhar o gosto de cada um, mas isso não pode servir para fingir que o problema não existe - e que há livros e pessoas e filmes e países que são bons para toda a gente, e que toda a gente deveria conhecer. Não há. Nunca houve. Nunca haverá.

A verdade é que tem de ser cada um a procurar o que gosta. Só procurando se encontra o que nos faz felizes.

Mas o procurar não é um meio - é o fim em si. É o procurar que nos prepara para o prazer, não só de encontrar, mas de conhecer.

Ao tentarmos fazer atalhos, não estamos a perder o prazer do caminho. Isso é um lugar-comum. Na verdade, o caminho é quase sempre uma chatice, como em qualquer viagem.

Para já, tornamo-nos cada vez melhores como procuradores. Quanto mais coisas boas achamos, melhor percebemos o que procuramos, e queremos, e precisamos.

É por isso que não basta apanhar o que outros encontraram. Sim, a coisa pode ser muito boa só por si, mas falta o caminho que foi preciso fazer para lá chegar.

Em Manchester conheci um velhote, sempre impecavelmente vestido, que tinha ficado viúvo muito novo e que andava à procura de uma segunda mulher. Em vez de desistir, como tinham feito os amigos dele, estava sempre catita, pronto para o que desse e viesse. É isso que devemos fazer, quando a felicidade se faz tardar: estarmos sempre disponíveis, estarmos sempre prontos para ela.

Não há atalhos: apenas preparações. Para se ser feliz, é preciso estar à mão. É preciso gostar do dia-a-dia de quem está pronto. É preciso manter as estrelinhas nos olhos. Tanto faz vir na forma de uma pessoa ou de um disco, ou de outra alegria qualquer.

Estar pronto é procurar.

Procurar é o que mais se aproxima da felicidade. Como a felicidade é passageira, e incerta, e, às vezes, nem sequer aparece, o procurar é o que fica, o procurar é aquilo em que se pode confiar.

Se calhar, até nem precisamos de ser felizes. Precisamos é de estar distraídos. Se calhar, a verdade da vida é sempre muito triste, e não somos feitos para a aguentar.

É procurando que nos distraímos mais. Roubar o que os outros encontraram é roubarmo-nos a nós mesmos.

Ficamos com as felicidades dos outros - que nunca cabem, que nos ficam sempre mal - e, acima de tudo, ficamos sem a coisa que mais graça tinha, que era a procura. Que era o procurar.

quarta-feira, 25 de dezembro de 2024

Este Ano o Pai Natal Não Veio


 Não, filho, o Pai Natal este ano não veio. Como é estrangeiro foi apanhado numa rusga da PSP preparada há meses pelo governo e foi mandado encostar a uma parede. Como trazia muitas prendas, a esta hora ainda estão a revistá-lo a ver se conseguem encontrar um perigoso X-Ato para depois fazerem uma conferência de imprensa a mostrar que estamos todos muito mais seguros. 

sábado, 21 de dezembro de 2024

Divagações sobre o Solstício de Inverno

Hoje é dia do Solstício de Inverno e o El País tem este belo texto sobre o tema:



 "Hoje, sábado, 21 de dezembro de 2024, às três da madrugada no hemisfério norte, ocorreu o solstício de inverno. A luz do Sol começou a crescer e assim continuará até ao verão. Os antigos romanos celebravam este acontecimento com as Saturnais, festividades pagãs em honra de Saturno, o deus da agricultura e da colheita, que originalmente se realizavam entre 17 e 23 de dezembro. Na essência, nada mudou na nossa cultura desde então. Os romanos também montavam mercados no fórum, onde Horácio, Ovídio e Virgílio poderiam ser vistos a comprar presentes, velas, estatuetas de barro e doces tradicionais para amigos e familiares. Por uma vez, os escravos sentavam-se à mesa e eram servidos pelos seus senhores, como na cena do filme Plácido, de Berlanga. As festas eram marcadas pela alegria das crianças e pela nostalgia dos mais velhos. Tal como acontecia com a luz no solstício, uns chegavam à vida e outros dela se despediam.


Os cristãos transformaram o sol nascente no Menino Deus, que nasceu num estábulo. Roma era um centro de todas as religiões possíveis. Escolhia-se, sem dificuldade, aquela que mais agradava. Naquela época, um deus solar importado da Pérsia, chamado Mitra, era particularmente popular. Ele nascera de uma virgem e morria e ressuscitava todos os anos, tal como as sementes que se deterioram na terra para depois germinarem, florescerem e frutificarem. Nos seus primórdios, o cristianismo, fundado pelo génio de Paulo de Tarso, retirou deste deus persa grande parte da substância para a sua nova religião, que começou por se expandir entre os judeus da diáspora e depois entre os gentios, nas periferias das cidades. A nova seita dos cristãos foi perseguida e lançada aos leões no circo, não por adorar um deus estranho, mas por tentar derrubar o poder de Roma numa luta contra o sistema — algo que conseguiu quando o imperador Constantino se converteu ao cristianismo e promulgou o Édito de Milão em 313.

No Direito Romano, dívidas não pagas podiam transformar o devedor em escravo do credor. Durante as perseguições, os cristãos rezavam o Pai Nosso nas catacumbas, uma oração revolucionária e contra a escravatura, pois pedia o perdão das dívidas. Por outro lado, o cristianismo foi concebido para acalmar os pobres deste mundo, assegurando-lhes que seriam os primeiros a sentar-se no céu, à direita de Deus Pai, devendo, por isso, adiar qualquer rebelião terrestre. Entretanto, o Sol continuará, sem falhar, a ganhar tempo ao amanhecer e ao entardecer.

Epifania significa manifestação da luz. A partir do Dia de Reis, notaremos que o sol se demora mais, desenhando grafitis de luz nos muros. Este Deus, que uns acreditam ter nascido no estábulo de Belém e outros consideram apenas uma data no calendário, despertará a seiva nas árvores quando chegar a Candelária. Mais tarde, obrigará as ramas nuas a fazer brotar gemas que explodirão em flores. Cairá chuva e ouvir-se-á o som das caleiras; nevará, e o sol de março provocará o degelo. Pode até repetir-se o milagre que testemunhei há anos: um colibri verde-esmeralda, vermelho e azul, pairava no ar, batendo as asas, para caçar uma gota brilhante de prata que escorria de um ramo de carvalho coberto de neve.

O sol amadurecerá nas costas hieroglíficas dos lagartos, e abril adoçará o néctar que os insetos bebem no coração das flores. Talvez em maio se inicie a rebelião solar, com a primeira onda de calor sufocante. Uns culparão as alterações climáticas; outros, tempestades solares - fenómenos que sempre existiram. Contudo, na humanidade persistirá um sentimento de culpa pelo que fazemos ao planeta, especialmente com cataclismos, incêndios, inundações, terramotos e furacões cada vez mais frequentes e destrutivos. Apesar disso, os mercados continuarão a oferecer frutas de todas as espécies, cerejas e morangos em junho, e acreditar-se-á que a felicidade se alcança ao estender o corpo na areia da praia e esperar que o sol decida entre um bronzeado magnífico ou um cancro de pele.

Afinal, para ser feliz basta comprar uma camisa com palmeiras e botas de montanha para escalar ruínas, sem saber que escalamos as nossas próprias. A certa altura, a luz do sol começará a apagar-se. Quando chegar a noite de São João, com o solstício de verão, todos os nossos sonhos de luz terão recomeçado ou terminado. Estas são divagações diante de uma travessa de torrões de Natal.

Manuel Vicent | El País | 2024

sexta-feira, 20 de dezembro de 2024

O Padrão da Direita Salazarista

Cavaco Silva mandava a polícia malhar nos estudantes; nos trabalhadores à porta das empresas em greve; nos manifestantes contra o aumento das portagens na Ponte 25 de Abril; mandava até a polícia de intervenção bater nos polícias. 

Ontem, o governo, de forma vergonhosa, mandou a polícia revistar cidadãos, num determinado bairro, só por terem determinado aspeto e por serem estrangeiros, naquilo que poderia ser uma operação de Hitler sobre os judeus. 

Ironicamente, há treze anos, neste mesmo dia, era noticiado que o governo da direita de então, de Passos Coelho e coadjuvado pelo irrevogável Paulos Portas, reunia-se também, por causa da criminalidade violenta. 

Goebbels, ministro da propaganda de Hitler dizia que "uma mentira contada mil vezes torna-se verdade". E a direita reacionária, travestida de extrema-direita, precisa sempre de um inimigo inventado. 

Ou são os judeus, ou os ciganos, ou são os estrangeiros, há sempre um inimigo invisível para justificar o estado de coisas. E vão continuar a repetir as mesmas mentiras, todos os dias, na esperança que se tornem verdade. 

Mas continuará a ser mentira. Portugal é um dos países mais seguros do mundo. A vinda dos imigrantes para fazer o que já não queremos fazer pelo valor que querem pagar não aumentou a criminalidade. É um facto indesmentível. Nem é culpa dos imigrantes ou estrangeiros que o SNS esteja no caos em que está hoje. A culpa do estado em que se encontra é dos sucessivos governos que desinvestiram na saúde pública. Bem pior o PSD - aquele partido que votou contra a criação do SNS - que quer fazer da Saúde um negócio para os privados. E, por mais que atirem areia para os olhos das pessoas, é esta a verdade.


 

terça-feira, 17 de dezembro de 2024

Frase do Dia


 Frase de Isabel Moreira, retirada desta reportagem do Público, sobre a falta de candidatas mulheres à presidência da república:



sábado, 14 de dezembro de 2024

Como é Que uma Pessoa de Direita Lê os Ensinamentos de Jesus?

 


Não deixa de ser irónico para mim, que, as pessoas que mais se dizem religiosas e crentes, são depois aquelas que menos demonstram qualquer empatia para com o próximo, especialmente com os mais fragilizados e desprotegidos, manifestando opiniões completamente contrárias aquilo que, para elas, é a palavra e vontade de "Deus". Porquê?

Trump é um fervoroso crente. Bolsonaro também. Ventura, Netanyahu, Putin e Meloni também. 

Mas com que olhos é que eles - tudo bem, Bolsonaro não, que esse nunca leu um livro na vida - mas os outros, como é que, por exemplo, o acólito Ventura, com que olhos é que, alegadamente, leu a bíblia?

quinta-feira, 12 de dezembro de 2024

Catarina e a Beleza de Ficar a Arder sem Bilhetes para o Teatro

Por uma ou outra vez tinha pensado ido ir ver a peça "Catarina e a Beleza de Matar Fascista" mas, por causa da pandemia a peça acabou cancelada. Até que, subitamente, foi noticiado agora que voltaria a Viseu e Penafiel. Bom, é desta pensei. E no dia seguinte preparei-me para comprar bilhetes... E não é que, para os três dias, daqui a mês e meio, já estava tudo esgotado? No dia seguinte a ter sido anunciado?

Pá, eu sei que o New York Times considerou a pela do Tiago Rodrigues como sendo uma das melhores da Europa, mas esgotar as três data para Penafiel no dia seguinte a ser anunciado? Por favor! Que é feito daquela coisa dos portugueses deixarem sempre tudo para a última?


Os Trogloditas e as Intelectuais

Diz-se agora que o mundo está cada vez mais fragmentado, de extremos. "Polarizado". Curiosamente também parece que assistimos a uma guerra de sexos na política, na reivindicação dos direitos, no acesso à igualdade. E também entre homens e mulheres assistimos a um afastamento ideológico. Mesmo entre os mais jovens, os rapazes estão agora cada vez mais sensíveis às ideias populistas de extrema-direita, ao passo que as mulheres, são muito mais sensíveis às questões sociais - pudera, em pleno século XX ainda querem mandar nos seus corpos!

Mas não só politicamente. Esta semana encontrei este artigo no New York Times, sobre o desaparecimento dos homens na literatura. Os homens estão a deixar de escrever e a deixar de ler, levando-me a refletir que os homens (não generalizando, obviamente) estão-se a tornar nuns trogloditas e as mulheres são agora as intelectuais. Cá fica o artigo traduzido em modo mais ou menos automático. 

O desaparecimento dos homens literários deveria preocupar-nos a todos


"Ao longo das últimas duas décadas, a ficção literária tornou-se, em grande medida, uma atividade feminina. Cada vez mais os romances são escritos por mulheres e lidos por mulheres. Em 2004, cerca de metade dos autores na lista de bestsellers de ficção do New York Times eram homens e a outra metade mulheres; este ano, a lista parece ser composta por mais de três quartos de mulheres. De acordo com vários relatórios, as leitoras representam agora cerca de 80% das vendas de ficção.

Observo o mesmo padrão no programa de escrita criativa onde leciono há oito anos. Cerca de 60% das candidaturas vêm de mulheres, e algumas turmas do nosso programa são inteiramente femininas. Quando fui estudante de pós-graduação num programa semelhante há cerca de 20 anos, as turmas estavam divididas de forma relativamente equilibrada por género. Como Eamon Dolan, vice-presidente e editor executivo da Simon & Schuster, me disse recentemente: “o jovem romancista masculino é uma espécie rara.”

A sub-representação masculina é um tema desconfortável num mundo literário que, de outra forma, está altamente atento a desequilíbrios deste tipo. Em 2022, a romancista Joyce Carol Oates escreveu no Twitter que “um amigo que é agente literário me disse que já nem consegue que os editores leiam os primeiros romances de jovens escritores brancos, por muito bons que sejam.” A resposta pública ao comentário de Ms. Oates foi rápida e mordaz — não sem alguma razão, visto que o mundo literário continua esmagadoramente branco. Mas a falta de preocupação com o destino dos escritores masculinos foi notável.

Para ser claro, dou as boas-vindas ao fim do domínio masculino na literatura. Durante demasiado tempo, os homens ocuparam o topo, frequentemente à custa de grandes escritoras que deveriam ter sido lidas. Também não acho que os homens mereçam estar melhor representados na ficção literária; eles não sofrem do mesmo tipo de preconceito que as mulheres enfrentaram durante tanto tempo. Além disso, os jovens deveriam estar a ler Sally Rooney e Elena Ferrante. Os leitores masculinos não precisam de ser emparelhados com escritores masculinos.

No entanto, se nos preocupamos com a saúde da nossa sociedade - especialmente na era de Donald Trump e das conceções distorcidas de masculinidade que ele ajuda a fomentar - o declínio e a queda dos homens literários deveriam preocupar-nos.

Nas últimas décadas, os jovens regrediram educacional, emocional e culturalmente. Entre as mulheres que ingressam em universidades públicas de quatro anos, cerca de metade se formará quatro anos depois; para os homens, a taxa é inferior a 40%. Esta disparidade traduz-se certamente numa redução no número de romances lidos por jovens homens, à medida que se afundam cada vez mais em videojogos e pornografia. Os jovens que ainda demonstram curiosidade pelo mundo frequentemente procuram estimulação intelectual através de figuras do “manosphere”, como Andrew Tate e Joe Rogan.


A marginalização dos jovens parece ter sido um fator significativo na eleição presidencial dos EUA deste ano. Nenhum grupo de eleitores foi mais fiel a Trump do que os jovens brancos - e ele também obteve bons resultados entre homens hispânicos e continuou a ganhar terreno entre homens negros. Penso em 2024 como a eleição do “Fight Club”, na qual homens desiludidos descarregaram as suas frustrações e ansiedades num lutador que, um dia, se revelará não o seu herói, mas sim uma figura da sua imaginação.

Estes jovens precisam de melhores histórias

O que acontece se metade da população deixar de estar envolvida na leitura e na escrita? - e eles precisam de se ver como pertencentes ao mundo das narrativas. Os romances cumprem muitas funções. Divertem, inspiram, intrigam, hipnotizam. Mas ler ficção é também uma excelente forma de melhorar a inteligência emocional. Os romances ajudam-nos a formar as nossas identidades e a compreender as nossas vidas. Tal como muitos outros membros da Geração X ligados aos livros, não consigo conceber os meus anos de formação sem o romance de Douglas Coupland que deu nome à nossa geração. É por isso que precisamos de uma cultura literária mais inclusiva, que traga os jovens homens do frio.

Não estou a dizer que devemos dar por concluído o progresso das escritoras e agora focar-nos apenas nos homens. Para mim, a questão é: o que será da literatura - e, de facto, da sociedade - se os homens deixarem de estar envolvidos na leitura e na escrita? Os destinos de homens e mulheres estão interligados. É por isso, por exemplo, que faço questão de que os meus estudantes masculinos leiam “The Handmaid’s Tale”. Não é apenas a sua edificação que importa; as mulheres também beneficiam da existência de homens melhores.

Recordo-me aqui de algo que a académica feminista bell hooks escreveu uma vez: “Permanece uma pequena corrente de pensadoras feministas que acreditam fortemente que já deram tudo o que queriam dar aos homens; preocupam-se apenas em melhorar o bem-estar coletivo das mulheres. No entanto, a vida mostrou-me que sempre que um único homem ousa transgredir os limites patriarcais” - algo que estou convencido de que a literatura capacita os homens a fazer - “as vidas de mulheres, homens e crianças são fundamentalmente alteradas para melhor.

David J. Morris / The New York Times, 10 de dezembro de 2024

domingo, 8 de dezembro de 2024

O Chega Não Gosta de Presépios

A história de José e Maria e do bebé que nasceu numa manjedoura é a história de uns migrantes, feios e pobres, que viviam graças ao Rendimento Social de Inserção. E no Chega ninguém se gosta de imigrantes pobres que vivem à custa do Estado porque simplesmente não tiveram o empreendedorismo de acreditar e ter nascido numa família rica. Eles que vão mas é para a terra deles! 

No Chega gostam mesmo muito é de imigrantes ricos, esses é que são bons. Imigrantes ricos, fira da Europa mas, que chegam aqui e compram as casas todas. E depois os nossos jovens ou ficam em casa dos pais à espera que eles morram ou têm que emigrar porque nestes tempos atuais que vivemos nem sequer uma casa terão possibilidades de comprar. 


sábado, 7 de dezembro de 2024

Serj Tankian - o Músico Ativista

Já não sei precisar o ano, mas sei que conheci System of Down no programa de rádio Hipertensão da Antena 3 no final dos anos noventa ou inícios do novo milénio e, se não estou em erro, vi-os ao vivo, em Coimbra, em 2004. Tornaram-se numa das maiores bandas do mundo - e para constatar isso basta ver quando milhões de visualizações têm as suas músicas no Youtube - ainda que, ironicamente e contrariando a vontade do público tenham sempre estado muitos anos parados, não produzindo novos álbuns nem fazendo novas turnês. 

Há muitas especificidades sobre os elementos constituintes da banda e, em particular, acerca do vocalista Serj Tankian. E podemos ficar a conhecê-lo um pouco melhor nesta entrevista da revista brasileira Isto É desta semana:



"Serj Tankian nasceu no Líbano, cresceu nos EUA e vive entre Los Angeles e a Nova Zelândia. Ele é considerado um dos maiores cantores de rock do mundo, liderando a banda System of a Down, mas se você fizer uma procura desavisada pelo seu nome no Google topará com o título de principal ativista da causa armênia no planeta. Entenderá o porquê se ler seu livro autobiográfico que acaba de ser lançado no Brasil: Down with the System – uma obra de memórias (ou algo assim). Seus quatro avós eram armênios e fugiram do país durante o que ficou conhecido como genocídio armênio, promovido pelo Império Otomano (atual Turquia) entre 1915 e 1923. Tankian cresceu com as histórias de seus pais, avós e instituiu como missão principal na vida a batalha pelo reconhecimento do massacre. De Los Angeles ele conversou com ISTOÉ sobre o tema, sobre seu café, continuidade da banda e preocupações políticas.

Todos nós o conhecemos por meio da música mas é difícil classificá-lo: você é pintor, poeta, desenvolvedor de software, promissor executivo dos negócios de família, ativista e cantor de rock. Você acha que tudo o que faz é uma consequência de sua luta pela Armênia?

Não sei, talvez tudo seja uma consequência de minha curiosidade incessante. Isso vem do fato de eu ser um artista. Mais do que qualquer outra coisa, eu gosto de experimentar. Quando estou apaixonado por alguma coisa, isso é endêmico de um artista, então você explora, fica entusiasmado e se aprofunda cada vez mais, seja nos negócios, seja escrevendo um livro, seja pintando, música. Para mim, é tudo a mesma coisa.



Não tenho certeza se você está ciente, mas um apoiador de Jair Bolsonaro se explodiu em frente ao Supremo Tribunal Federal em protesto. Seu país natal, o Líbano, está sob ataque de Israel, tivemos Donald Trump sendo eleito presidente dos Estados Unidos pela segunda vez. Como ativista dos direitos humanos, como enxerga o mundo hoje?

O mundo é um lugar muito preocupante, especialmente se você tem filhos. Com o passar do tempo, a migração decorrente da catástrofe ambiental e das guerras, invasões e colonização criou um problema de imigração em toda a Europa, o que está levando vários governos a adotarem políticas anti-imigração de extrema direita. Está se tornando uma situação muito perigosa e segregadora. Fico triste por meus filhos e pelo planeta. Como ativista, sou totalmente contra a maioria das coisas nessa direção e quero ver crescimento sustentável, quero ver pessoas que realmente tenham em mente a humanidade e a consciência do planeta no comando, em vez daqueles que querem lucrar e apenas explorar o planeta. 

Mas a única maneira de me manter são psicologicamente, espiritualmente e esperançoso é viver de forma muito limitada com minha própria família, em meu próprio grupo de amigos e tentar me manter saudável. Mas se eu pensar na questão mais ampla, em nível regional e mundial, é muito triste. Eu acho que as lições dos genocídios do século XX não foram aprendidas e estão acontecendo novamente hoje, como os bombardeios indiscriminados que mataram muitos civis no Líbano, em Gaza, na Cisjordânia ou em Israel. Sobre as eleições nos EUA, um amigo me perguntou: “o que você achou?”. Eu disse: Estamos votando entre o colonialismo e o fascismo, em vez de progressão e sustentabilidade. As propostas estão erradas.

Sua ideia inicial de memórias era escrever um livro sobre a intersecção entre justiça e espiritualidade. Resolveu contar sua história porque impactaria mais as pessoas?

Na verdade, não. Eu nunca penso no público quando estou criando ou na falta dele. Sempre penso no que quero expressar. Na época, um agente literário entrou em contato comigo interessado em um livro de memórias. Eu não estava interessado em escrever um, mas sempre tive a ideia de escrever um livro filosófico sobre a interseção de justiça e espiritualidade. Ao conhecer o Dalai Lama, conversei com ele sobre a intersecção entre justiça e espiritualidade e concordamos que é possível fazer as duas coisas em um livro de memórias. Isso também é uma exploração filosófica desses temas e foi isso que tentei fazer ao criar este livro.

Não quero desmerecer sua carreira mas, ao ler as memórias, fica claro que sua missão na vida têm a ver com o reconhecimento do genocídio armênio. Concorda?

O genocídio armênio foi uma verdadeira luta que meu povo teve de enfrentar para entrar na Era Moderna. Eu sou um deles e meus avós foram sobreviventes do genocídio, mas quero dizer que o genocídio é uma lição muito importante, uma simbologia para falar sobre coisas atuais, porque, como discutimos anteriormente, o genocídio está acontecendo hoje. Quando o genocídio ocorreu, não havia julgamentos de Nuremberg. Quando ocorreu o Holocausto, houve esses julgamentos. As pessoas foram responsabilizadas, houve a Comissão da Verdade e Reconciliação depois do genocídio de Ruanda. Você pensa que todas essas coisas criariam uma atmosfera em que os horrores da limpeza étnica e dos crimes contra a humanidade não ocorreriam, mas ainda estão ocorrendo. Portanto, conto a história do meu povo no genocídio não apenas porque é de onde venho mas também é um modelo para o que está acontecendo.

Você acha que a banda ter se tornado a numero 1 nos EUA no dia 11 de setembro de 2001 é uma coincidência ou, como Shakespeare diz, ‘há mais coisas entre o Céu e a Terra do que nossa vã filosofia pode imaginar”?

A palavra coincidência é realmente muito interessante porque a usamos como uma definição de algo casual. Mas na matemática, coincidência representa coincidir. Portanto, é difícil para nossas mentes compreenderem a vastidão de possibilidades em um dos vários mundos em que vivemos: mundo espiritual, mundo físico, mundo psicológico etc. Portanto, se isso foi coincidência ou não, não sei, mas definitivamente nos levou ao lugar onde precisávamos estar para lidar com as coisas com as quais precisávamos lidar.

Seus colegas de banda, do System of a Down, disseram que o grupo não segue o ritmo que o público gostaria, com lançamentos de álbuns e turnês, por sua causa. Isso está correto?

Não sei, talvez. Eu não gosto muito de fazer turnês. É algo que há muitos anos me faz sentir dentro de uma repetição de si mesmo. Mas eu gosto de fazer shows. Eu gosto de tocar em eventos únicos. Portanto faremos shows, mas não serão turnês longas, porque isso é algo fisicamente exaustivo e artisticamente redundante. Agora o fato de não atendermos a um público é a definição de ser um artista. Claro que nós também entretemos, mas fazemos o que queremos fazer; um artista faz o que quer fazer e, se as pessoas gostarem, ótimo; se não gostarem, que seja. Mas, sim, eu tenho sido o motivo pelo qual a banda não tem feito turnês extensas nos últimos anos.

Você até sugeriu que eles encontrassem outro cantor para substituí-lo, só que você é uma peça fundamental da banda e os fãs provavelmente não veriam o grupo da mesma forma. Você ainda apoia a ideia?

É muito simples. Eu amo os caras da minha banda mais do que amo a banda. Portanto, tudo o que eles quiserem fazer, está bem para mim. Se houver coisas que eu não quiser fazer e eles quiserem fazer, eu não me importo. Mas concordo com você. Temos um núcleo tão interessante dentro de nós, como artistas, que mudar a fórmula realmente atrapalha. Não me sinto confortável com essa ideia, mas também amo meus amigos, meus irmãos, então, o que quer que eles queiram fazer, eu apoio.



Quando você diz que ama mais os seus colegas, depois a banda, isso me faz lembrar de uma parte do seu livro. Lançar um álbum de músicas armênias e folclóricas com seu pai é tão importante quanto sua carreira no System of a Down?

É algo importante para mim porque meu pai me apoiou em minha aventura musical. Passei por um período muito difícil economicamente na história da família, então, quando ele se aposentou e teve tempo, eu sabia que sua paixão estava esperando para ser revelada. Então, eu o apoiei na gravação de um disco. É o disco dele, cantei em algumas músicas e ajudei a produzi-lo, mas é o disco dele e foi um prazer fazê-lo. Não comparo maçãs com laranjas, são duas frutas diferentes. Mas eu gosto de ambas.

Você é o principal porta-voz das causas armênias em todo o mundo, e continuamos com muitos contratempos lá. Como isso te impacta?

Em 2018 a Armênia teve uma bela revolução pacífica, chamada Revolução de Veludo, para derrubar o sistema corrupto da oligarquia pós-soviética. Por um ano e meio estava prosperando até que o Azerbaijão atacou sem aviso prévio, com a ajuda do governo da Turquia e do exército turco, e foi uma guerra horrível de 44 dias. A Armênia foi superada pelo segundo maior exército da OTAN no mundo e pelo Azerbaijão, e perdemos 5.000 jovens. Por terras que Stalin havia arbitrariamente dado ao Azerbaijão na década de 1920, que sempre foram terras indígenas armênias por 2.000 anos, em resumo. Portanto, houve uma limpeza étnica em 2023, duas semanas antes de o Hamas atacar os israelenses, e o Azerbaijão, depois de nove meses de bloqueio econômico e fome, recebeu duas ordens da Corte Internacional de Justiça de ordens contra a ação. Então, eles atacam essas pessoas, 120.000 armênios étnicos. Então, estou muito frustrado, porque quando vejo a injustiça sobrepor-se à Justiça, fico muito irritado. Mas a Armênia está se reconstruindo economicamente, crescendo em um ritmo incrível. Vai acabar se juntando à União Europeia (EU) em breve. Os inimigos estão sempre na fronteira, mas acho que com o tempo se tornará um centro cultural muito importante.

Podemos esperar alguma notícia sua sobre o System of a Down em um futuro próximo?

Com certeza.

E quanto às suas outras atividades? Há algo que podemos esperar?

Acabo de lançar um álbum há cerca de um mês, um EP chamado Foundations que está indo muito bem. Há muito tempo tenho uma galeria de cafés em Los Angeles. Quem estiver na região e vier visitar o Lake, venha conferir: temos o melhor café da cidade. Estamos fazendo lá uma exposição de fotografias do System of a Down por Greg Waterman, nosso fotógrafo nos últimos 23 anos. Terminei dois filmes e uma série de TV, que serão lançados, até o ano que vem. Quando digo terminar os filmes, estou me referindo à trilha sonora desses filmes. Muitas coisas estão acontecendo.

Luiz Cesar Pimentel | revista ISTO É


domingo, 1 de dezembro de 2024

Pá, e se Metêssemos a Inteligência Artificial a Governar?

 Às vezes ouve-se por aí esta ideia genial: pá, vamos meter a inteligência artificial a governar. Afinal aquilo não tem ideologia, perguntamos qual é o sistema mais justo, mais proveitoso para implementar e pronto, não temos que nos preocupar pois vamos ser todos ricos e felizes em sociedade.

Errado! Não existe inteligência nas máquinas. Existe um algoritmo desenhado por um humano e que reflete o pensamento de quem o programou. E é por isso que já se sabe que, por exemplo, o ChatGPT tem uma tendência de direita, ao passo que algoritmo do Google, o Gemini, gosta de justiça social e é mais à esquerda. 



O Deus Dólar

Eça de Queirós escreveu um artigo intitulado "O Miantonomah", inspirado pelo navio de guerra que fundeou em Lisboa em 1866 com o mesmo nome. E foi a desculpa para escrever sobre os Estados Unidos, um artigo publicado na Gazeta de Portugal, e que hoje pode ser encontrado no livro "Prosas Poéticas". Apesar de ter mais de 150 anos, olhando para os tempos atuais dos Estados Unidos, não poderia estar mais atual:




"(...) Tal é o Miantonomah, navio de guerra da América do Norte. 

Nós entrevemos a América como uma oficina sombria e resplandecente, perdida ao longe nos mares, cheia de vozes, de coloridos, de forças, de cintilações.

Entrevemo-la assim: movimentos imensos de capital: adoração exclusiva e única do deus Dólar; superabundância de vida; exageração de meios; violenta predominação do individualismo; grande senso prático; atmosfera pesada de positivismos estéreis; uma febre quase dolorosa do movimento industrial; aproveitamento avaro de todas as forças; extremo desprezo pelos territórios; preocupação exclusiva do útil e do económico; doutrinas de uma filosofia e uma moral egoísta e mercantil; todo o pensamento repassado dessa influência; uma fria liberdade de costumes; uma seriedade artificial e brusca; dominação terrível da burguesia; movimentos, construções, maquinismos, fábricas, colonizações, exportações colossais, forças extremas, acumulação imensa de indústrias, esquadras terríveis, uma estranha derramação de jornais, de panfletos, de gazetas, de revistas, um luxo excessivo; e por fim um profundo tédio pelo vazio que deixa na alma as adorações do deus Dólar: depois a mesma temperatura e a mesma geologia da Europa. 

Assim entrevemos a América, ao longe, como uma estação entre a Europa e a Ásia, aberta ao Atlântico e ao Pacífico, com uma bela costa de navegação cheia de enseadas, molhada de grandes lagos, com os seus grandes rios que escorrem entre as terras, as culturas, as fábricas, as plantações, os engenhos, levados pomposamente pelo Mississipi para o golfo do México: e depois uma Natureza vigorosa, fecunda, eleita, desaparecendo entre as indústrias, os fumos das fábricas, as construções, os maquinismos, todas as complicações mercantis da América – como uma pouca de erva de uma campina fértil que desaparece sob uma amontoação. nervosa de homens.

A vida da América do Norte é quase um paroxismo.
Isto é decididamente uma grande força, uma vida enorme, superabundante. Mas será vital, fecundo, cheio de futuro? Todos os dias dizem à Europa: «Olhai para os Estados Unidos, lá está o ideal liberal, democrático, e, sobretudo, a grande questão, o ideal económico.»
Mas a América consagra a doutrina egoísta e mercantil de Monroe, pela qual uma nacionalidade se encolhe na sua geografia e na sua vitalidade, longe das outras pátrias; esquece as suas antigas tradições democráticas e as ideias gerais para se perder no movimento das indústrias e das mercancias; alia-se com a Rússia; a raça saxónia vai desconhecendo os grandes lados do seu destino, enrodilha-se estreitamente nos egoísmos políticos e nas preocupações mercantis, cisma conquistas e extensões de territórios, subordina o elemento grandioso e divino ao elemento positivo e egoísta, e a grande figura sideral do Direito às fábricas, que fumegam negramente, nos arredores de Goetring. Isto dizem muitos.

Uma das inferioridades da América é a falta de ciências filosóficas, de ciências históricas e de ciências sociais. A nação que não tem sábios, grandes críticos, analisadores, filósofos, reconstruidores, ásperos buscadores do ideal, não pode pesar muito no mundo político, como não pode pesar muito no mundo moral.

Enquanto a superioridade foi daqueles que batalhavam, que lançavam grandes massas de cavalarias, que apareciam reluzentes entre as metralhas, o Oriente dominou, trigueiro e resplandecente. Quando a superioridade foi daqueles que pensavam, que descobriam sistemas, civilizações, que estudavam a Terra, os astros, o homem, e faziam a geologia, a astronomia, a filosofia, o Oriente caiu, miserável e rasteiro.

Há, sobretudo, na América um profundo desleixo nas ciências históricas. Inferioridade. As ciências históricas são a base fecunda das ciências sociais. É a superioridade da Europa: sob a mesma aparência de febre industrial há uma geração forte, grave, ideal, que está construindo a nova humanidade sobre o direito, a razão e a justiça. O nosso mundo europeu é também uma estranha amontoação de contrastes e de destinos; é uma época esta anormal em que se encontram todas as eflorescências fecundas e todas as velhas podridões; políticas superficiais; grandes fanatismos: e ao mesmo tempo um desafogo das livres consciências, expurgação dos velhos ritos, e a alma moderna ligada na sua moral e na sua justiça às almas primitivas com exclusão da

Idade Média; políticas pacificas e transigentes, e um espírito de guerra surdo, aceso e flamejante: territórios violentos e conquistados, e a aniquilação pela política, pela história e pela filosofia dos conquistadores e dos heróis: nem são as influências monárquicas, nem é o individualismo; nem é o humanitarismo, nem são os políticos egoístas, não é a importância das individualidades, nem a importância dos territórios; é uma confusão horrível de mundos, e, em cima, triunfal e soberba, está a indústria, entre as músicas dos metais, as arquitecturas das Bolsas, reluzente, cintilante, colorida, sonora, enquanto no vento passa o seu sonho eterno que são fortunas, impérios, festas, empresas, parques, serralhos.

Ora em baixo, sob a confusão, sereno, fecundo, forte, justo, bom, livre, move-se em germe um novo mundo económico. Este germe é que a América não tem, creio eu. Mas vê-se que todos a apontam como o ideal económico que é necessário que os pensadores meditem, e todos os que no vazio fecundo das filosofias riscam as sociedades. Ora toda a América económica se explica por esta palavra – feudalismo industrial..

Diz-se, na América há um constante aumento de tráfico, de receitas, de riquezas: não há aumento; há deslocação, deslocação em proveito da alta finança – com detrimento das pequenas indústrias produtoras. Logo que na ordem económica não haja um balanço exacto de forças, de produção, de salários, de trabalhos, de benefícios, de impostos, haverá uma aristocracia financeira, que cresce, reluz, engorda, incha, e ao mesmo tempo uma democracia de produtores que emagrece, definha e dissipa-se nos proletariados: e como o equilíbrio não cessa, não cessam estas terríveis desuniformidades.

Mas o grande mal da predominância exclusiva da indústria é este: o trabalho pela repugnância que excita, pela absorção completa de toda a vitalidade física, pela aniquilação e quebrantamento da seiva material, pela liberdade em que deixa as faculdades de concepção – por isso mesmo sobreexcita o espírito, estende os ideais, abre grandes vazios na alma, complica as precisões, torna insuportável a pobreza: nas grandes democracias industriais onde as posições são obtidas pela perseverança, conquistadas pela habilidade, onde há mil motores – a ambição, a inveja, a esperança, o desejo, o cérebro aquece-se, espiritualiza-se, cria sonhos, ambições, necessidades impossíveis; o querer chegar torna-se uma verdadeira doença de alma: exageram-se os meios: e toda a seiva moral se altera e se deforma.

É o que vai acontecendo na América: debaixo da frieza aparente, move-se todo um mundo terrível de desejos, de desesperanças, de vontades violentas, de aspirações nevrálgicas. Depois, como no meio das indústrias ruidosas e absorvedoras muitas amarguras ficam por adoçar, muitas angústias por serenar, muitas fomes por matar, muitas ignorâncias por alumiar, tudo isso se ergue terrível no meio da febre da vida social, e toma-a mais perigosa. Londres dá hoje o aspecto desta luta.

De maneira que o trabalho incessante, enorme, irrita e exagera o desejo das riquezas; aferventa o cérebro, sobreexcita a sensibilidade, a população cresce, a concorrência é áspera, as necessidades descomedidas, infinitas as complicações económicas, e aí está sempre entre riscos a vida social. Entre riscos, porque vem a luta dos interesses, a guerra das classes, o assalto das propriedades e por fim as revoluções políticas.

E todavia a liberdade da América parece tão serena, tão confiada, tão assente, tão satisfeita!
No entanto há muita força fecunda nos Estados Unidos! Ainda há pouco deram o exemplo glorioso de uma nação que deixa os seus positivismos, a sua indústria, os seus egoísmos, o seu profundo interesse, e arma exércitos, esquadras, dissipa milhões, e vai bater-se por uma ideia, por uma abstracção, por um princípio, pela justiça.

O Sul quis corrigir a liberdade pela escravatura; desune-se; o escravo que trabalhe, que cultive, que produza, que sue, que morra sob a força metálica, baça e sinistra do clima e do Sol

Pois bem. A América do Norte quer a liberdade, o amor das raças, e bate-se pela liberdade, pela legalidade, pela união, pelo princípio, pela metafísica! E dispersa os exércitos da Virgínia!
Eram estas as coisas que me lembravam há dias, no Tejo, estando a ver o
Miantonomah, navio dos Estados Unidos em viagem pelo Sul, comandante Beaumont, fundeado no nosso Tejo..

Eça de Queiroz, 2 de dezembro de 1866