Se eu fosse remexer nas dezenas de cartas que trocamos, por certo que lá pelo meio encontraria uma em que ela me diz "quando te conheci pensei não gostasses de futebol". Ora, isto não deixa de ser curioso, porque foi precisamente numa conversa de futebol entre amigos comuns que nos cruzaram pela primeira vez diretamente (porque indiretamente há muito que os meus olhos tinham reparado naquela adolescente de quatorze ou quinze anos, tal como há muito ela já tinha reparado em mim, principalmente quando eu me sentava na mesma soleira da porta, da mesma casa da rua Barão de São Cosme, onde ela também gostava de se sentar enquanto espvaera a camioneta).
E foi nas traseiras duma camioneta que ambos apanhamos, que estivemos uns quantos à conversa. Lembro-me bem da Vânia, a mais afoita defensora do seu FC Porto, bem como da Patrícia, sua prima, que mora aqui na aldeia, e talvez também o Mauro estivesse presente; se não esteve nessa ocasião, esteve depois, em muitas outras conversas, nas traseiras de muitos outros autocarros, que naquela altura chamávamos de camioneta ou carreira. Nessa tal conversa sobre futebol, retenho na minha minha cabeça que terei mantido uma postura de Álvaro Cunhal, que, perante a argumentação do Mário Soares, lá ia soltando, de vez em quando, um "Olhe que não, doutor, olhe que não".
E se eu encontrasse a tal carta em que ela me diz que quando me conheceu não pensava que eu gostasse de futebol, procurando bem, nas outras dezenas de cartas que lhe escrevi, encontraria também a carta em que lhe respondi (porque ela mas devolveu, todas, como se tivessem sarna) em que lhe terei respondido que, sim, gostava de futebol, mas que não me tinha por fanático. Que gostava de analisar o jogo dentro das quatro linhas e que tinha as minhas opiniões.
Mas não deixa de ser muito curioso e até irónico. Quando me conheceu ela pensava que eu gostava de futebol; já eu, quando anos depois começamos a namorar, nunca pensei que um dia ela me pedisse para a levar à festa do "Penta" porque queria-se juntar à multidão em festa com as amigas da escola. "O Jardel até me disse adeus!". E eu que nem imaginava que ela fizesse ideia de quem era o Jardel.
Relembrei esta passagem da minha vida quando, por estes dias, começou o Europeu de futebol. Como que me perguntei se deveria - sei lá, por dever patriótico? - ver os jogos da seleção, ou se iria cometer a heresia e o pecado mortal de ignorar os jogos da seleção.
Decidi ignorar porque a paixão, aquele fogo que arde sem se ver, há muito que se extinguiu completamente e o rescaldo, aqueles trabalhos que se fazem para que não haja reacendimentos, foram muito bem feitos nos últimos quase dez anos, e, entretanto, os eucaliptos foram substituídos por carvalhos e azevinhos, e não há forma do interesse ser reacendido.
Posso afirmar que ser um um ex-adepto de futebol como sou hoje, é como se tivesse deixado de fumar e já conseguisse ver com clareza a estupidez que cometi durante tantos anos a gastar dinheiro que me faz falta e a dar cabo da saúde com os cigarros.
Hoje, se alguém me conhecesse assim, ignorando o futebol e toda a irracionalidade que envolve o fenómeno, muito estranharia que um dia gostei de futebol, que vibrei com as vitórias ou ficava pior que estragado nas derrotas. Se hoje fosse uma criança, ninguém me iria querer chatear porque o clube da minha simpatia perdeu - ou poderia dar também o exemplo do emprego, sim, porque parece que crescemos, mas continuamos a ter os mesmos comportamentos de criancinha, em que se fica calado como um rato quando o nosso clube perde, até se diz que não se gosta de futebol, mas depois, subitamente, já gozamos com os outros, quando é o clube dos outros a perder. Tristes aqueles que ficam felizes com o mal dos outros, é o que vos digo.
E, se hoje alguém me tivesse conhecido a ignorar este aborrecido espetáculo de hora e meia - porque a verdade é essa, hoje em dia o futebol é uma verdadeira seca! - e em que a vitória é tantas vezes decidida pelos homens do apito, e em que todos ganham salários pornográficos à custa do pobre que vai ao estádio ou tem uma assinatura de televisão, quando mal ganha para comer - quanto muito, o que me poderia dizer, uns tempos mais à frente, seria: "nunca imaginei que um dia tivesses gostado de futebol".
*na imagem Sócrates, antigo jogador de futebol brasileiro, médico e filósofo, que ficou conhecido por Doutor Sócrates e pelas suas convicções políticas
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