Já quase duas décadas se passaram, assim, num abrir e fechar de olhos, mas entretanto o disco do cérebro tem vinte anos de novos dados acumulados e essas lembranças de há vinte anos tenho de as ir buscar à reciclagem, correndo o risco da informação já não ser bem precisa, no entanto, acho que o essencial está cá.
Depois de uma Primavera e Verão muito atribulados nas nossas vidas (com capítulos que há muito me tem vindo a apetecer escrever, porque são momentos importantes da minha vida), tinhas entretanto acabado o secundário e preparavas-te para ser a primeira pessoa da tua família a ir para a universidade. Sim, algo que te poderias orgulhar.
A tua escolha número um era a Psicologia, área que te era muito familiar visto que era o que andavas a estudar. Mas como na altura a média de entrada era bastante elevada, acabaste por entrar na tua primeira alternativa que era Recursos Humanos. É curioso, como quando começamos a desfiar as memórias, acabamos por nos lembrar de certos pormenores e eu acabo de me lembrar, de quando certa vez me dizias que tinhas uma professora que dizia que os humanos nas empresas não são um recurso. São tudo, porque sem humanos não existiriam empresas, o que de facto faz todo o sentido e La Palisse não diria melhor!
Até que chegou a altura de começar as aulas, e discutimos o tema da praxe. E acho que até aqui no blogue um qualquer leitor fantasma que não me conhece, mas me vá acompanhando, facilmente saberá o que eu penso sobre o tema. E penso hoje o que pensava há vinte anos.
Praxe, fui agora ver ao dicionário para saber a origem, e a palavra é originária do grego prâksis que significa ação, transação, negócio e que no nosso português significa "prática habitual". Temos pois que humilhar os novos alunos numa universidade porque é a "prática habitual". A tradição.
A praxe está para as universidades como as touradas estão na sociedade. É uma prática habitual tolerada. É uma prática sim, mas ridícula! Mandar um piropo a uma mulher é crime. Dar um chuto num gato dá direito a dois anos de cadeia efetiva. Mas humilhar violentamente os alunos que chegam a um novo estabelecimento de ensino é praxe, uma prática habitual tolerada.
Falamos sobre isso e tu explicaste-me o porquê de te ires submeter aquela tortura. Era tudo por causa dos teus pais e, para que, mais uma vez, não fosses apontada como ovelha negra, como diferente, como aquela pessoa que é sempre do contra, ainda que, ser contra a humilhação não é ser do contra mas sim ser em defesa da nossa sanidade mental, decidiste seguir a carneirada e fazer o que todos fazem. E eu, mesmo sendo contra, apoiei-te.
Claro que já não sei os detalhes todos. Mas sei que odiaste tudo aquilo. E estamos a falar duma universidade privada, cheia de betinhos filhos de papás ricos, e duma cidade que não Coimbra, onde o terror será, como bem se sabe, bem maior.
Chegavas a casa verdadeiramente aterrorizada. Chegaste mesmo a pensar desistir porque aquilo estava-te a causar graves danos emocionais, mas quiseste levar o masoquismo até ao fim, pelo direito a que, quatro anos depois, lá pudesses fazer todo o cerimonial da "prática habitual", onde eu sempre lá estive, contigo ao lado, até mesmo na "Benção das Pastas" com o bispo e tudo, e mesmo sendo absolutamente contra aquele triste espetáculo, que depois encerra com a Queima das Fitas.
Mas logo no primeiro ou segundo dia de aulas, acho que foste tu que me pediste a minha camisola de Machine Head para passar uma mensagem porque nas costas da camisola diz: Only The Strong Survive (só os fortes sobrevivem). E tu sobreviveste à praxe. Mas continuo a achar que ninguém se deveria deixar humilhar voluntariamente só porque é a "prática habitual". O "mundo pula e avança" e todos nós deveríamos querer um mundo melhor, não o mundo velho dos Velhos do Restelo que nunca querem que nada mude mas, tão simplesmente porque as coisas sempre foram assim.
Sim, eu ainda tenho aquela velha e gasta camisola de tantas lavagens. Aliás, tirei mesmo a fotografia esta semana, no trabalho, enfiando-a num porta-paletes servindo assim de modelo, já a pensar no que iria escrever sobre ela. Talvez devesses ter querido ficar com ela. Se me tivesses pedido eu ter-ta-ia dado porque sou um gajo espetacular. Tal como te devolvi a pasta com as fitas, que ma tinhas dado, em que duas das fitas fui eu que as escrevi e pintei... Ou talvez anos depois a camisola já não fizesse sentido para ti porque afinal já não estávamos juntos. Não sei. Mas parece-me que aquela camisola foi, ainda que num curto período de tempo da tua vida, mais importante que em todo o tempo que a tive. Durante todos aqueles dias em que foste humilhada, em que berraram contigo, em que te fizeram rastejaste como um animal, era aquela camisola que trazias contigo, era também, como e fosse a minha segunda pele que te protegia. Hoje é só uma velha camisola vintage, que se calhar ainda vale algum dinheiro se eu quiser vender no Ebay.
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