sexta-feira, 21 de fevereiro de 2025

A Minha Frase do Dia (2)




Signos para Sempre

 


A propósito do abominável dia dos namorados, a revista New York Magazine publicou um pequeno artigo em jeito de curiosidade sobre os signos: 

"Quão compatíveis sois? O "felizes para sempre" pode ser imprevisível, a menos que conheças os teus signos do zodíaco. Os pares do zodíaco feitos para durar -  e os que vão arder rápido.

Se lês o teu horóscopo, então já sabes que os nossos signos solares determinam como comunicamos, quais são os nossos desejos e se vamos espiar um ex que nos ignorou. (Estou a falar de ti, Escorpião.) Nós, astrólogos, usamos esses traços de personalidade para prever se um primeiro encontro acabará num "felizes para sempre" ou num tribunal.

Para te poupar tempo - e despesas legais - fiz este guia rápido para que possas fazer o mesmo. Este gráfico de compatibilidade astrológica revela a longevidade esperada de cada par do zodíaco (eixo Y: do "para sempre" ao "nunca") e a química entre eles (eixo X: do "nada quente" ao "super ardente").

Posto isto, parece que eu deveria ter investido as fichas todas numa mulher Caranguejo ou mulher Capricórnio. Ainda que na Touro também não pareça que esteja mal de todo.

domingo, 16 de fevereiro de 2025

O Amor Consumista

Passou mais um dia dos namorados e falou-se novamente de como 75% dos nossos jovens acham perfeitamente normal controlar, perseguir ou agredir psicologicamente. E depois o problema é as aulas de cidadania! Se calhar deveriam era aumentar a carga horária para aprender a respeitar o outro. E obviamente muito se escreveu na imprensa internacional sobre o preço dos chocolates e sobre o amor... Este artigo de José Nicolás do El País foi talvez dos que mais me chamou a atenção e aqui fica:


Se pensamos hoje numa pessoa que procura um parceiro, imaginamos frequentemente alguém que passa parte do tempo colado ao telemóvel, aprovando ou rejeitando perfis numa aplicação de encontros. Obviamente, nem toda a gente o faz, mas é muito comum. O Tinder é a aplicação mais utilizada em Espanha, com mais de três milhões de visitas por mês: agora, pode-se “namorar com toda a gente, a toda a hora e em todo o mundo”, escreve Liv Strömquist em "Não sinto nada". 

A internet e a sua utilização para encontrar um parceiro afastam-nos do momento romântico de começar a sentir algo por um colega de trabalho, de reparar na pessoa com quem coincidimos nos transportes públicos, de trocar olhares num bar… agora, tudo é escolhido. Acabamos por iniciar uma relação não por instinto, mas pela informação que um perfil escrito pelo outro nos fornece.

Strömquist acredita que optamos por esta forma racional de iniciar um relacionamento porque temos a tendência de querer compreender tudo: “A expansão da sociedade de consumo faz com que nos comportemos como consumidores racionais e que tentemos tirar o máximo proveito até mesmo das nossas relações pessoais.”

Neste excelente ensaio em forma de banda desenhada, a autora sueca cita pensadores como Byung-Chul Han, Eva Illouz e Slavoj Žižek, que argumentam que, devido à sociedade consumista e superficial em que vivemos, apaixonarmo-nos – cair de amor (fall in love em inglês ou tomber amoureux em francês) – tornou-se cada vez menos comum: “Em vez de nos deixarmos surpreender por um sentimento e tomarmos decisões intuitivas, pensamos de forma racional, como consumidores”, resume.



Há indícios de que o amor e o consumismo andam de mãos dadas. Nestes dias, as empresas de marketing lançam campanhas para oferecer as melhores experiências para casais, as floristas preparam-se para fazer o seu agosto e as empresas de chocolates e rebuçados faturam, numa semana, um terço dos lucros de todo o ano. No entanto, entre montras repletas de corações, ainda há espaço para a conexão espontânea, para os amores à primeira vista.

Algo assim aconteceu a Francis há alguns meses, durante uma visita ao Museu de Arte Latino-Americana de Buenos Aires (Malba). Numa das salas, cruzou-se com um rapaz que “lhe pareceu muito interessante”. Foi assim que uma amiga sua o descreveu na conta de Instagram do museu, que publicou um carrossel de imagens com um apelo: “Alejandro, estamos à tua procura”. A série de fotos reproduzia o pedido da amiga de Francis: “Na sala onde estão as obras de Remedios Varo, conheceu Alejandro, um colombiano que está em Buenos Aires em home office”, dizia uma das imagens. “Quando conta a história, sente que conheceu alguém que poderia ser um amigo especial (ou talvez algo mais). […] Agradecia muito se me ajudassem a encontrar o Alejandro. A minha amiga é uma das pessoas mais maravilhosas que conheço, e tenho a certeza de que Alejandro teria muita sorte em conhecê-la melhor.”

Hoje, a publicação tem mais de 36.600 gostos e é, de longe, a mais bem-sucedida da conta do Malba. Nos comentários, centenas de pessoas torciam para que o famoso Alejandro aparecesse e aguardavam ansiosamente a continuação da história. E aconteceu. O próprio Alejandro respondeu: “Uma amiga mostrou-me este post e eu sou o Alejandro. Que loucura e que graça isto.” O museu colocou-os em contacto e, mais tarde, ele publicou um vídeo onde contava que também sentiu uma ligação com Francis e que os dois já trocavam mensagens e se estavam a conhecer melhor. “É muito bonito”, dizia, visivelmente entusiasmado.

Está visto que encontrar o amor nem sempre exige recorrer a uma aplicação de encontros, ao programa A Ilha das Tentações ou ao balcão de um bar. Às vezes, basta visitar um museu – acontece quando e onde menos esperamos.

A Convenção


 Aquela espanhola de cinquenta e oito anos, com quem ainda não tinha falado, vem na minha direção, abraça-me e diz-me: "quero tirar uma fotografia contigo, para mostrar ao meu marido que estou com um metaleiro português"! Ele depois respondeu-lhe para não se entusiasmar demasiado! E acabou por ser, talvez, a conversa que me criou mais impacto das muitas, com tantas pessoas diferentes, com que tive a oportunidade de falar naqueles três dias. 

Estou na empresa há três anos e o mais curioso é que nunca tinha tido oportunidade de ver ao vivo os equipamentos que testo, reparo ou recondiciono. Ou melhor, vê-los ser utilizados na prática. Seria mais ou menos como alguém que trabalha numa fábrica de chocolates nunca ter provado o chocolate que ajuda a produzir. 

Apesar de entender bem o inglês - e não me venham com a treta que quem entende bem o inglês, querendo também o fala - o facto de não ser tão fluente faz com quem me deixe mais tímido nas conversas, mas fiz um esforço para receber o mais condignamente possível os cerca de cinquenta colegas estrangeiros que vieram cá ao Porto para uma convenção de três dias. Ainda assim alguém disse-me: "tu não tens sotaque"! 

O brilharete aconteceu com a colega de Myanmar. 

"Então, a vossa Nobel ainda continua presa"? 
- O quê, tu sabes que existe Myanmar?
Sim. Não deveria? Acho que é do conhecimento geral. 
Não! Sempre que digo que sou de Myanmar, Birmânia, perguntam-me: Germânia? E olha para mim, pareço mesmo germânica, não? 
Sim, com esse teu ar asiática é mesmo tal e qual! 

Com ela estava a colega do Chile, de quem nunca li nada de Neruda, nem ela de Saramago. Mas ao menos pude falar da Casa dos Espíritos da Isabel Allende!

Foram três dias num hotel todo modernaço no centro do Porto para fazer palestras e afinar estratégias para o futuro. A empresa vai bem e recomenda-se. Somos líderes de mercado, temos um novo produto inovador a ser desenvolvido totalmente em Portugal e serviu também para, além de nos conhecermos, falarmos uns com os outros e olearmos melhor a máquina. 

O colega do Equador ficou maravilhado com a viagem de comboio de Lisboa para o Porto, porque, mesmo àquela velocidade, achou que se veria aqui a viver. E depois comentou, não para mim, para outros colegas, sobre o número de horas de eletricidade que tem. Sim, há pessoas no planeta que trabalham, mas não têm, ao contrário de nós, 24 horas sempre disponíveis de eletricidade. E então, se não há eletricidade para televisão à noite, brinca-se com os filhos. E, se calhar, no mundo que tem 24 horas de eletricidade disponível, seria preferível estar mais disponível para os outros. 

Depois da primeira palestra e no primeiro intervalo para café, o patrão, que é alemão, veio ter comigo e como sabe que gosto de fotografia, entregou-me a sua Leica a preto e branco e pediu-me para ir deambulando e tirando fotografias a todos. Essas fotografias depois iriam ser partilhadas com todos. Olha a responsabilidade! Mais ainda porque, como comentei a brincar com colegas, aquele brinquedo deveria custar - sei lá - tanto como o meu salário anual!

O primeiro a interagir comigo foi um senhor romeno, já de cabelos brancos, porque queira falar sobre heavy metal, porque ele também é todo rock & roll e fã de Led Zepellin. Bom, da Roménia eu pouco mais sei além do mito do Drácula, mas lá conseguimos ter uma conversa amigável.

Como uma  colega portuguesa chegou a dizer, eu levei o papel de repórter fotográfico muito a sério, e ia tentando aproximar-me e apanhar as pessoas ao natural, como qualquer bom fotógrafo faz. Acho que nem me saí muito mal.

Dias antes da convenção, foi pedido para colocarmos uma fotografia nossa e uma pequena frase que nos definisse. Eu coloquei "nature and garden lover, table tennis player and heavy metal". Bloger achei melhor não, se não ainda se lembravam de me pedir o link do blog para ler o que por aqui vou colocando e se calhar é melhor não!

A espanhola de cinquenta e oito anos contou-me que o marido é fã de Iron Maiden e que, com a ajuda da filha, comprou bilhetes para Paris, um bilhete ainda por cima vip com acesso ao backstage. Ele não sabe de nada, só sabe que naquela semana vai viajar. Falamos de muitas coisas, incluindo, política. Temos visões muito semelhantes. 

Visão bem diferente tenho da senhora estadunidense, que tem mais de setenta anos e fez a continência para me dizer que Trump e Putin tornarão o mundo melhor. Afinal Trump é bom porque Kamala era má. Mas havia mais quatro candidatos e perguntei: em trezentos milhões de habitantes eram esses os dois melhores que tinham para gerir os destinos do país? Claro que não foi muito inteligente da minha parte dizer o que penso politicamente a alguém que, ainda por cima, terá posição de destaque na empresa.

No último dia e após dois dias muito cinzentos e de forte chuva, eis que vem a bonança de um dia de sol em pleno inverno, para os colegas estrangeiros passearem pela minha cidade. E tive então oportunidade de fazer turismo na minha cidade de adoção mas, pela primeira vez, com uma guia a explicar as coisas que eu já sei. Mas fiquei agradavelmente surpreendido com o seu profissionalismo. Inglês e sotaque perfeito, conhecimentos assertivos e sempre com um toque de humor. Contou muito bem a história da Lello que está erradamente associada à autora de Harry Potter, que é verdade, ela viveu no Porto, mas nunca lá tinha entrado dentro. 

E antes de começarmos o patrão interpela-me novamente e passa-me um novo gadjet para as mãos, desta feita uma câmara de filmar pequenina que não tem nada que ver com o aspeto duma câmara de filmar como eu as conheci. E, novamente, tentei fazer o melhor trabalho possível desta vez de repórter de imagem, passando todos à frente e esperando que todos passassem e tentando encontrar os melhores ângulos. 

Deambulamos por Santa Catarina, passamos pelo Bolhão (que está horrivelmente descaracterizado das vendedoras de outrora) e descemos até à Ribeira. Atravessamos a Ponte Dom Luiz, e fomos para o Cais de Gaia fazer um passeio de barco. Ao almoço estive numa mesa só com mulheres: a minha colega, e a jovem italiana que lhe disse que é muito bonita (a ver se ela acredita) as duas chinesas do meu lado direito, e mais umas quantas dispostas pelo resto da grande mesa. 

Depois de almoço, enquanto alguns decidiram usar o teleférico para ir até ao Mosteiro da Serra do pilar, eu acabei por ir caminhar um pouco sozinho e juntei-me depois pelo caminho à espanhola, à colega de Lisboa e ao colega do Equador. Fomos até ao Cais da Ribeira sentar numa esplanada e conversar. E ali tive as conversas mais interessantes e reveladoras dos três dias. 

À noite iríamos jantar ali pelo Cais de Gaia e bem antes da hora marcada fui descendo do Hotel para o rio. Já perto do restaurante encontrei a colega ucraniana (ao que parece pró russa) e bastou perguntar-lhe "então e como está a tua vida, muito afetada pela guerra"? Ao que ela disse que é como uma prisão porque o marido não pode sair do país, tal como todos os homens dos 18 até aos sessenta e não sei quantos anos. E apesar de ambos não termos um inglês extraordinário lá fomos conversando bastante, sobre estes tempos senis em que vivemos e sobre a juventude acéfala.

Foi uma experiência social muito interessante. Apesar de tudo e da minha maneira muito própria de ser, a verdade é que eu gosto de pessoas e de conhecer as pessoas, por mais que elas se vão mostrando ingratas e me vão desiludindo...

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2025

Maria Teresa Horta no New York Times: "A Última das Três Marias de Portugal"

Maria Teresa Horta morreu a 4 de fevereiro e Patrícia Reis, escritora e autora da biografia a "Desobediente" escreveu no Diário de Notícias: 

"Maria Teresa Horta deixou-nos uma obra imensa que deveremos honrar e revisitar. Deixou-nos uma posição feminista que, ainda agora, é urgente manter. Deixou-nos boas ideias sobre jornalismo. Era uma mulher singular. Não era consensual e alimentava-se do conflito, nunca o escondeu. Dizia-me: “Sou uma chata, não me calo.” Ainda bem que não o fez. O que lhe devemos é tanto que não cabe num único texto. Portugal deveria ter sido mais generoso com a Teresa. Ela deveria ter uma lista imensa de prémios, não tem. Deveria ter ganhado o Prémio Camões. Deveria… tanto que lhe devemos e já não vamos a tempo de cumprir".

Hoje, dia 13 de fevereiro, dou de caras no New York Times com uma página sobre a "última das "Três Marias" de Portugal e o artigo lembra a importância que tiveram para chamar a atenção do mundo para o que se passava com a ditadura no nosso país. Como já por aqui escrevi antes, acho que tratamos muito mal os nossos artistas e não lhes damos o devido valor. Aqui fica o artigo:


 Maria Teresa Horta, uma escritora feminista portuguesa que ajudou a derrubar as restrições impostas às mulheres pelo seu país conservador, morreu a 4 de fevereiro na sua casa em Lisboa. Tinha 87 anos.

A sua morte foi anunciada no Facebook pela sua editora, Dom Quixote. O primeiro-ministro português, Luís Montenegro, prestou-lhe homenagem na rede social X, descrevendo-a como “um exemplo importante de liberdade e de luta pelo reconhecimento do lugar das mulheres.”

Maria Teresa Horta foi a última sobrevivente do célebre trio de escritoras conhecido como as “Três Marias”, que em 1972 publicou o marcante livro Novas Cartas Portuguesas. Composto por cartas que as três escritoras trocaram entre si sobre as dificuldades de ser mulher em Portugal, o livro abriu um novo mundo de expressão da sexualidade feminina reprimida, enfureceu a ditadura e levou à sua detenção e acusação criminal por indecência e abuso da liberdade de imprensa.

Para as feministas em todo o mundo, assim como para os defensores de uma imprensa livre, a ação policial contra as mulheres portuguesas em junho de 1972 foi um ultraje que, aos poucos, se tornou o foco de um movimento internacional de protesto”, escreveu a revista Time em julho de 1973.

As Três Marias - Maria Teresa Horta, Maria Isabel Barreno (1939-2016) e Maria Velho da Costa (1938-2020) - tornaram-se heroínas do feminismo internacional, e a fama do livro alertou o mundo para a repressão sob a ditadura portuguesa. Simone de Beauvoir, Marguerite Duras e Adrienne Rich foram algumas das escritoras que declararam publicamente o seu apoio. A National Organization for Women votou para tornar o caso a sua primeira causa feminista internacional.

Este não foi o primeiro embate de Maria Teresa Horta com a controvérsia.

Em 1967, após a publicação do seu influente livro de poesia Minha Senhora de Mim, foi “espancada na rua”, contou à sua biógrafa Patrícia Reis em 2019. O livro, disse, “desafiava algo profundamente enraizado neste país: o silenciamento da sexualidade feminina.”

As visitas frequentes da polícia política portuguesa tornaram-se parte da sua vida.

Os temas da sua obra emergiam de uma dupla opressão: ser mulher numa sociedade dominada pelos homens e crescer num Estado policial.

Nasci num país fascista, um país que roubava a liberdade, um país de crueldade, prisões, tortura”, disse numa entrevista a um jornal italiano em 2018. “E cedo percebi que não podia aceitar isto.

Também não aceitava a opressão das mulheres na cultura tradicionalmente machista de Portugal. “As mulheres são espancadas ou violadas tanto por um médico, um advogado, um político, como por um operário, um camponês e assim por diante”, disse ao Diário de Notícias em 2017. “As mulheres sempre foram espancadas e sempre foram violadas. Não se considera a violência que ocorre na cama, no ato sexual com o marido.

Em 1971, essas preocupações levaram-na a reunir-se semanalmente com duas amigas e colegas escritoras, Maria Isabel Barreno e Maria Velho da Costa, para partilharem reflexões escritas sobre os temas que as atormentavam.

Inspiraram-se numa obra clássica do século XVII, Cartas de uma Freira Portuguesa, supostamente escritas por uma jovem enclausurada num convento português para o oficial de cavalaria francês que a abandonara. Embora hoje os estudiosos acreditem que a obra seja ficção, a sua expressão poderosa de desejo reprimido e frustração ressoou nas Três Marias.

Tal como a freira do livro, usaram cartas entre si, bem como poemas, para expressar a sua insatisfação enquanto mulheres nos seus trinta anos, educadas por freiras, casadas e com filhos, numa Lisboa sufocada por uma ditadura de 35 anos, um catolicismo rígido e guerras coloniais mal planeadas em África.

Quando publicaram Novas Cartas Portuguesas, prometeram nunca revelar a ninguém, muito menos à polícia, qual delas escrevera cada parte.

“As suas visões e personalidades eram bastante distintas”, escreveu Neal Ascherson na The New York Review of Books ao analisar a tradução inglesa de 1975, intitulada The Three Marias. “Maria Isabel era a mais fria, Maria Teresa a mais exuberante, Maria Fátima a que se afastava do feminismo puro para uma análise social e psicológica da opressão de um povo inteiro.”

A obra - que Ascherson chamou de “um grande e complicado ramalhete” - está impregnada de uma raiva reprimida face à condição feminina.

Queriam que as três de nós nos sentássemos em salas de estar, bordando pacientemente os nossos dias com os muitos silêncios, as muitas palavras suaves e gestos que a tradição dita”, diz uma das cartas. “Mas, seja aqui ou em Beja, recusámos o claustro, estamos a despir-nos dos nossos hábitos, silenciosamente ou de forma desafiadora.

Outra carta afirma: “Ganhámos também o direito de escolher a vingança, pois a vingança faz parte do amor, e o amor é um direito há muito concedido na prática: praticar o amor com as nossas coxas, as nossas longas pernas que cumprem com mestria o exercício esperado delas.

Embora Ascherson considerasse o livro “por vezes exasperantemente impreciso, indulgente e prolixo”, reconheceu que “onde é preciso, o livro ainda fere” e “onde é erótico, não é exibicionista nem pudico, mas bem calculado para tocar a mente através da emoção.”

Alguns críticos portugueses elogiaram-no como “corajoso, ousado e violento”, como escreveu o autor Nuno de Sampayo no jornal A Capital. Previram, no entanto, que teria uma receção difícil.

O primeiro-ministro Marcello Caetano tentou prender as autoras, chamando-as de “mulheres que envergonham o país, antipatriotas.”

A 25 de maio de 1972, a censura estatal proibiu o livro. No dia seguinte, foi enviado para a polícia criminal de Lisboa. Quando o julgamento das autoras começou em 1973, a multidão era tão grande que o juiz ordenou a evacuação da sala.

Em maio de 1974, quase dois anos após a sua detenção e duas semanas após a queda da ditadura, as Três Marias foram absolvidas.

O juiz Artur Lopes Cardoso, que presidia ao caso, tornou-se um convertido de última hora, declarando que o livro “não era pornográfico nem imoral.” “Pelo contrário”, disse, “é uma obra de arte de alto nível, seguindo outras obras de arte produzidas pelas mesmas autoras.”

Maria Teresa de Mascarenhas Horta Barros nasceu em Lisboa a 20 de maio de 1937, filha de Jorge Augusto da Silva Horta, um médico proeminente e conservador que apoiava a ditadura, e Carlota Maria Mascarenhas. A sua avó paterna tinha sido uma figura destacada do movimento sufragista português.


Frequentou o Liceu Filipa de Lencastre, licenciou-se na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e publicou o seu primeiro livro de poesia aos 23 anos. Escreveu quase 30 outros, além de 10 romances.

Foi também crítica e repórter em vários jornais e editora literária de A Capital.

Nos anos 1980, dirigiu a revista feminista Mulheres, ligada ao Partido Comunista Português, do qual foi membro entre 1975 e 1989.

Considerava a escrita um dever público.

A obrigação de um poeta não é estar numa torre de marfim; não é estar isolado, mas sim entre as pessoas”, disse ela à revista online Guernica em 2014. “Como jornalista, nunca me isolei. Fui jornalista num diário e, todos os dias, saía à rua. Todos os dias tive contacto com as pessoas.

Venceu a maioria dos mais importantes prémios literários do seu país, mas gerou polémica em 2012 ao recusar o Prémio D. Dinis (das mãos de Passos Coelho), em protesto contra a orientação política de direita do governo.

Ela deixa o seu filho, Luís Jorge Horta de Barros, e dois netos. O seu marido, o jornalista Luís de Barros, antigo diretor do jornal O Diário, faleceu em 2019.

Perguntam-me porque sou feminista”, disse à revista Guernica em 2014. “Porque sou uma mulher de liberdade e igualdade e não é possível haver liberdade no mundo quando metade da humanidade não tem direitos.

Adam Nossiter | New York Times

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2025

Acreditamos Numa Ideia de Liberdade que nos Deixou Sem Ela

Entrevista de Justo Barranco com o historiado Timothy Snyder no jornal La Vanguardia de 9 de fevereiro, a propósito do seu último livro "Sobre a Liberdade"


"Se na cultura norte-americana a liberdade acabou por significar ausência do poder do Estado, o historiador Timothy Snyder considera que a verdadeira liberdade não é tanto a liberdade "de", mas sim a liberdade "para". E que confundir estas duas ideias levou-nos à situação atual, com Elon Musk como “o principal defensor mundial da ideia de que a liberdade significa destruir o governo”. No entanto, sublinha: “Se reduzirmos o tamanho do governo, ele já não pode fornecer as condições básicas que nos permitem ser livres, como água, ar, habitação e educação. Numa grande sociedade moderna, precisamos da ajuda do governo para criar as condições da liberdade. O que está a acontecer no meu país neste momento é muito grave. E está totalmente relacionado com este erro”, afirma Snyder (Ohio, 1969), autor de livros fundamentais como O Caminho para a Não Liberdade, onde analisava a filosofia de Putin e a forma como este exportava a sua política para o mundo. Agora, apresenta Sobre a Liberdade, uma obra muito pessoal.

O sistema de "checks and balances" resistirá ao embate de Trump?

O primeiro movimento de Trump foi congelar programas federais importantes, mas os tribunais revogaram essa decisão. Anunciou tarifas sobre o Canadá e o México, mas não se concretizaram, pois muitos empresários norte-americanos opuseram-se. Trump não é imparável. E em breve haverá diversas ações judiciais contra Elon Musk. É assim que fazemos política no meu país: realizamos eleições e, depois, entram em cena os tribunais. Mas a verdadeira prova de fogo é Musk. O que ele faz é tão obviamente ilegal que as pessoas nem sabem como reagir. Trata-se de um novo tipo de golpe de Estado, que não recorre a homens armados, mas sim a adolescentes com talento para a programação.

Como chegámos aqui?

Durante 50 anos, no meu país, ignorámos o problema da desigualdade, que está diretamente ligado à liberdade. Nos EUA, acreditamos que não importa se alguns são pobres e outros ricos, porque o que realmente conta é essa ideia de liberdade. Mas, quando a desigualdade de riqueza se torna demasiado grande, os mais ricos capturam o governo – como acontece agora com Musk. Se permitirmos que a desigualdade aumente demasiado, a liberdade torna-se difícil, porque os bens essenciais para a liberdade deixam de fazer parte da política governamental. Foi um erro não perceber que liberdade e igualdade sempre estiveram ligadas. Para que haja liberdade, são necessárias escolas públicas e boas estradas – e só o governo pode garantir isso. Nos EUA, convencemo-nos de uma ideia errada de liberdade, que acabou por nos deixar sem ela.

Porque é que as pessoas escolhem milionários como líderes?

Se a desigualdade for demasiado grande, a mobilidade social torna-se muito difícil. A maioria das pessoas olha para o futuro e não vê como pode melhorar a sua situação. Mas veem alguns indivíduos no topo, que tiveram um sucesso extraordinário e acumulam mais riqueza do que qualquer outra pessoa na história. E começam a pensar: “A única forma de vencer é ser como eles.” Assim, cria-se uma cultura de desrespeito pelas regras e pela lei. É por isso que Trump é popular. As pessoas olham para ele e dizem: “É isto que deve ser feito – quebrar as regras, mentir, enganar –, porque o sistema está contra nós.”

O resultado deste pensamento é paradoxal: quanto mais difícil é enriquecer, mais as pessoas escolhem um certo tipo de milionário como modelo. Trump, aliás, nunca foi realmente rico, mas soube sempre apresentar-se como tal - como alguém que contorna as regras. E as pessoas acreditam que, ao votar nele, terão acesso ao seu mundo. Deixam de votar com base em interesses ou políticas e passam a votar por identificação com um determinado grupo, na esperança de que isso lhes traga vantagens.

Os EUA estão a tornar-se numa oligarquia?

Já seguimos esse caminho há bastante tempo. Pode debater-se se somos uma democracia com traços oligárquicos ou uma oligarquia com traços democráticos, mas temos um grande problema com a concentração de poder nas mãos de pessoas muito ricas, tanto dentro como fora do governo. Já era um problema antes. E agora, com Musk, penso que encontraremos formas de resistência, mas as próximas semanas serão decisivas para determinar o que vai acontecer.

A retórica de Trump sobre a necessidade de controlar a Gronelândia é semelhante à de Putin em relação à Ucrânia?

Trump tem certos pontos fracos e há quem saiba explorá-los. Um deles é a sensação de que está sempre a ser enganado e a perder dinheiro. É muito vulnerável a essa ideia, porque ele próprio deseja retirar dinheiro aos outros. Os nossos adversários aprenderam a manipular essa fraqueza. Basta dizer-lhe: “O Canadá está a enganar-te. Os europeus estão a enganar-te. Não pagam o suficiente pela NATO.”

Nos EUA, ninguém quer tarifas sobre o Canadá e o México, exceto um pequeno grupo de fanáticos. Mas Trump acredita que está a fazer política externa. Os russos, por sua vez, aprenderam a manipulá-lo. O objetivo é levá-lo a entrar em conflito com os nossos aliados. Assim, os EUA acabam isolados, enquanto a Rússia e a China fazem o que querem – e ainda se riem dele. Putin já o fez, há vídeos dele a falar sobre isto e a rir-se. E não é surpreendente, porque Trump faz exatamente aquilo que Putin quer, dia após dia.

Zangam-se os Fachos Descobre-se os Tachos

 


Nada é por acaso. Mal foi constituído o novo parlamento sabia-se que uma grande parte dos deputados do partido fascista ilegal estavam a contas com a justiça, mas ninguém tocou muito no assunto. 

Até que, de repente, rebentou mais um escândalo no governo e na saúde (depois de todas as mortes por causa da falta de assistência do INEM), a acumulação de funções de Gandra de Almeida, diretor executivo do SNS que resultou na sua demissão. 

A seguir o escândalo da demissão do secretário de estado que já se estava a antecipar à nova lei dos solos, que o governo jurava a pés juntos que não permitiria corrupção, e o governante já tinha criado duas empresas para beneficiar da nova lei. 

Os escândalos sucedem-se no governo, então, há que apontar holofotes para outro lado, e, de repente, começa-se a falar dos escândalos no partido que quer limpar o país, mas que, parece que só descobriram agora, estão afinal com as mãos cheias de merda. 

E fala-se do roubo das malas e das vendas de roupa na Vinted. 



E, depois de meter baixa psiquiátrica, o deputado do CH vem lavar roupa suja na rede social do fascista, acusando os colegas de partido de outras façanhas. Foi caso para eu pensar: "zangam-se os fachos, descobre-se os tachos!

domingo, 9 de fevereiro de 2025

A Economia dos Ovos



Sim, desde 2009 que o salário mínimo não aumenta nos Estados Unidos, porque assim é melhor para os pobres. Não admira que estejamos a ser invadidos por americanos (ou estadunidenses como é mais correto dizer). E já estou a ver que não é nada por causa do Trump. Deve ser mas é por causa dos nossos ovos. 


sábado, 8 de fevereiro de 2025

Pensa Por Ti Próprio - Pensa Como Nós

Mais uma excelente crónica publicada no fim de semana passado no jornal espanhol El País.
 

"
Imaginemos dois momentos marcantes na história da tecnologia e, portanto, da humanidade. No primeiro, assiste-se a um famoso anúncio de televisão. Enquanto se sucedem imagens a preto e branco de ícones como John Lennon, Pablo Picasso ou Maria Callas, o ator Richard Dreyfuss recita um poema:

“Isto é para os loucos. 
Os desajustados. 
Os rebeldes. 
Os agitadores. (…) 
Porque eles mudam o mundo. 
Eles inventam. 
Eles imaginam. 
Eles curam. 
Eles exploram. 
Eles criam. 
Eles inspiram. 
Eles impulsionam a humanidade para a frente.”

O anúncio termina com o slogan Think Different, Pensa Diferente. O ano é 1997, e Steve Jobs acaba de regressar à Apple.

A segunda cena é mais recente, de há algumas semanas. A Apple é agora a empresa mais valiosa do mundo na Bolsa, e o seu presidente, Tim Cook, um firme defensor da igualdade de género, raça e orientação sexual, observa com expressão séria a segunda tomada de posse de Donald Trump como presidente dos EUA. Como o resto da elite tecnológica, também ele fez doações para a campanha. Perto dele, estão Mark Zuckerberg (Meta), Jeff Bezos (Amazon), Sundar Pichai e Sergey Brin (Google), Elon Musk (X, SpaceX, Tesla) e Sam Altman (OpenAI). No dia seguinte, Trump posa para uma foto com este último e com Larry Ellison (Oracle), e anuncia um enorme investimento em inteligência artificial para garantir a liderança tecnológica dos EUA nas próximas décadas.

Juntos, todos eles representavam o fim do discurso da defesa das liberdades sociais por parte das empresas tecnológicas, que nasceram na Costa Oeste dos EUA, capitalista, mas também livre e radicalmente inovadora. Um dia, reivindicaram a diferença. Steve Jobs não viveu para ver este momento nem o crescimento das pseudociências modernas. Morreu jovem, de um cancro no pâncreas pouco agressivo, que optou por tratar fora da medicina convencional.

Os grandes líderes de Silicon Valley já não nos incentivam tanto a "pensar diferente", mas sim a reconhecer a visão superior de um empresário multimilionário ou de um líder autoritário. A ideologia do Silicon Valley disfarça-se de pensamento crítico e, através das suas próprias redes, exporta-se como propaganda para todo o mundo. Está por trás de frases como "pensa por ti próprio", "faz a tua própria investigação" ou "não deixes que pensem por ti", elementos-chave na desinformação, no pensamento conspiratório e na polarização que definem o nosso tempo e alimentam populismos. Uma vez desprezado o consenso social sobre o conhecimento, explora-se o apelo de soluções simplistas baseadas num individualismo extremo.

O que aconteceu? O que mudou em Silicon Valley para que a sua mitologia de criatividade e independência se tenha transformado numa ferramenta de obediência populista?

TRÊS FASES DE SILICON VALE

A resposta vem da Califórnia - onde o sociólogo e ex-ministro das Universidades Manuel Castells se encontra evacuado devido aos incêndios. Ele, um dos maiores historiadores da internet, descreve três fases.

Na primeira fase, da qual emergiram figuras como Steve Jobs e Bill Gates, “o empreendedor era o modelo e a inovação o objetivo, mais do que o dinheiro. O individualismo coexistia com valores sociais como o feminismo, o ecologismo e a tolerância sexual e religiosa”.

Nos anos 90, consolidaram-se as grandes empresas, que acabaram por se tornar oligopólios. “Embora pregassem inovação e liberdade, na realidade, a acumulação de capital e o lucro tornaram-se as ideologias dominantes: tornaram-se capitalistas e empresários mais do que inovadores, embora mantendo um discurso liberal e tolerante.”


Desde 2010, entrámos numa terceira fase. Castells aponta que o 5G, os satélites e a inteligência artificial impulsionaram uma nova geração de inovadores de sucesso rápido: a chamada PayPal Mafia - um grupo de empreendedores que começou na empresa PayPal antes de lançar outros projetos. Entre eles, Elon Musk, Peter Thiel e Marc Andreessen.

“Estes tecnocratas não querem apenas inovar, querem o poder total”, explica Castells.

A sua ideologia defende que os "melhores cérebros" - eles próprios - devem afastar "a plebe ignorante". Esta é, segundo Castells, a base da sua aliança com Trump.

São tecnocratas libertários que querem ocupar o Estado para impor o seu projeto. São perigosos porque estão convencidos, têm poder material e, acima de tudo, ambicionam poder.

Na posse de Trump, Musk atraiu todas as atenções ao ser nomeado chefe do recém-criado Departamento de Eficiência Governamental, após um gesto no palco que fez lembrar uma saudação nazi. Philip Low, fundador da Neurovigil e antigo amigo de Musk, escreveu no LinkedIn:

“Elon Musk não é nazi, mas talvez seja algo melhor - ou pior, depende da perspetiva. Os nazis acreditavam na superioridade de uma raça inteira. Elon acredita que ele próprio está acima de todos.”

Outros membros da PayPal Mafia, como Peter Thiel (dono da empresa de cibersegurança Palantir) e Marc Andreessen (criador do Netscape e agora conselheiro de Trump), não estavam presentes.

A NOVA DIREITA TECNOLÓGICA

Thiel, financiador do senador J.D. Vance, defende a liderança empresarial sobre a democracia. No seu livro Zero to One, argumenta que os grandes líderes empresariais devem ignorar convenções sociais. Andreessen, por sua vez, publicou em 2023 um Manifesto Tecno-Otimista que mistura anarcocapitalismo, aceleracionismo e Nietzsche, defendendo que a tecnologia nos tornará super-homens livres.

O seu pensamento é influenciado por livros como Atreve-te a não agradar, um best-seller japonês baseado na psicologia de Alfred Adler, que argumenta que não é o passado ou o ambiente que nos limitam, mas sim a falta de coragem.

No início de 2025, vemos um grupo de tecnocratas convencidos da sua superioridade intelectual e validados pelo mercado. Controlam empresas com um poder de influência sem precedentes, conhecem as dinâmicas sociais e são atraídos pela ideia de um governo autoritário gerido como uma empresa.

“PENSA POR TI PRÓPRIO”

Como esta ideologia se relaciona com os seus clientes e eleitores?

Mark Zuckerberg é um exemplo: passou de defensor do politicamente correto (woke) para um campeão da "liberdade de expressão", desmantelando políticas de moderação no Facebook e aproximando-se de Trump.

A cultura digital, com a sua exaltação do individualismo e desconfiança na informação tradicional, alimentou esta nova mentalidade. A obsessão pelo pensamento crítico levou a uma sociedade onde todos acusam todos de "pensar mal".

Sam Wineburg, professor de Stanford, alerta:

“Se as pessoas realmente entendessem como funciona a internet, fariam escolhas melhores. Mas a maioria navega às cegas, confiando ingenuamente na própria capacidade de discernimento.”

Assim, num mundo onde os algoritmos são controlados por bilionários e onde o caos informativo favorece os mais poderosos, a máxima parece ser:

"Pensa por ti próprio… desde que penses como nós."

O PENSAMENTO CRÍTICO E A ARMADILHA DA DESINFORMAÇÃO

Se há uma frase que indica que alguém está prestes a entrar numa espiral conspirativa, é "pensa por ti próprio", frequentemente acompanhada de "faz a tua própria investigação" ou "não deixes que pensem por ti". O pensamento crítico continua a ser, como defendia Hannah Arendt, um imperativo moral, mas aqui esconde-se uma armadilha.

“A ciência nasce da curiosidade sobre aquilo que desconhecemos e gostaríamos de explicar”, explica a neurocientista Carmen Estrada.

No seu ensaio A Herança de Eva, Estrada descreve a ciência como um esforço coletivo, construído ao longo de gerações, baseado na colaboração e na continuidade do conhecimento.

Sam Wineburg, professor na Universidade de Stanford e especialista em literacia digital, acrescenta:

"Se as pessoas realmente compreendessem como funciona a internet, como as palavras-chave distorcem os resultados das pesquisas, como a otimização dos motores de busca manipula a informação, então fazer a própria investigação levaria a decisões mais informadas. Mas, na realidade, a maioria de nós navega às cegas, confiando ingenuamente na própria capacidade de discernir a verdade no meio do caos digital.

Wineburg é coautor do manual Verified, um guia prático de verificação de factos. Ele e Mike Caulfield defendem um conceito inovador: a necessidade de "ignorar criticamente".

“Vivemos numa economia da atenção, onde as plataformas digitais competem para manter os nossos olhos fixos nos ecrãs. Avaliar informação exige pensamento crítico, mas o pensamento crítico alimenta a atenção. Na internet, o primeiro e mais importante ato de pensamento crítico é determinar se a informação merece ser analisada criticamente. Aprender a ignorar fontes de baixa qualidade preserva a nossa atenção para o que realmente importa.

A ASCENSÃO DOS TECNOPOPULISTAS ~

Se juntarmos a esta cultura digital um individualismo mal interpretado, um mundo complexo simplificado por visões reducionistas, a ilusão de uma democratização do conhecimento e o reforço psicológico gerado pelas comunidades online, obtemos um cenário perigoso.

Polarizamos este contexto com um sistema informativo manipulado pelos donos dos algoritmos – empresas que lucram com o caos emocional gerado pelas redes sociais. O resultado? Líderes políticos e económicos fortes e populistas, admirados pela sua suposta independência (mesmo em relação aos seus próprios partidos e seguidores), que dizem defender a liberdade, mas acolhem com agrado aqueles que “ligam os pontos”... desde que os liguem a seu favor.

Quando se admira um líder que “pensa por si próprio”, na verdade, admira-se alguém profundamente emocional, que alimenta ressentimentos e desconfiança nas instituições.

Um título do jornal satírico El Mundo Today ilustra bem esta confusão no início do segundo mandato de Trump:

Um jovem que não se deixa manipular defende exatamente as mesmas ideias que os três homens mais ricos do mundo.”

Esta ironia reflete-se nas redes sociais, onde discursos de milionários do Silicon Valley se misturam com declarações de figuras inesperadas, como o ex-futebolista Javi Poves, um fervoroso defensor da teoria da Terra plana.

"Quem te diz que não sou mais inteligente do que Kepler? Ou do que Galileu? Não sei. O que sei é que hoje tenho mais meios técnicos para o demonstrar", disse Poves à rádio Cadena Cope.

Nesta nova era digital, os tecnomagnatas transformaram a inovação em um novo tipo de dominação. A sua narrativa, que outrora promovia a criatividade e a liberdade, agora alimenta desinformação e autoritarismo. A inovação já não é apenas um objetivo - é uma ferramenta de poder.

Delia Rodrguez | El país | 2 de Fevereiro de 2025

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2025

As Tarifas de Trump


 As tarifas de Trump explicadas num cartoon de Miachael Ramirez, no jornal estado unidense Washington Post.

domingo, 26 de janeiro de 2025

Convite a uma Revolta

Sobre a pressão social, as modas, o sentimento de pertença e a cobardia de não querer passar por diferente. Artigo de  Antonio Muñoz Molina, publicado no  El País a 25 de janeiro de 2025:

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O remorso por algumas tolices cometidas no passado pode não ser estéril se nos servir para agir com mais sensatez no presente. Uma tolice pode também ser um erro, mas nela há algo de banal e supérfluo que agrava o dano que produz, em vez de o aliviar. Uma desculpa parcial é que os acertos, os atos de nobreza e o esforço no trabalho levam o selo do que há de melhor em cada um de nós. Já a tolice tende a ser coletiva, não fruto de uma escolha consciente, mas da submissão atarantada ou cobarde a uma moda. Algumas das maiores tolices das quais me arrependo na vida surgiram não de uma vontade puramente minha, mas do medo de ficar para trás em algo que os outros celebravam, da ansiedade de partilhar algo prestigioso que pairava no ar.

Quando eu tinha cerca de 18 anos, as drogas começaram a chegar ao mundo provinciano onde me movia, envoltas numa perigosa e tentadora lenda de clandestinidade que as tornava mais atraentes. Associar a emancipação ao consumo de haxixe era uma tolice colossal, ainda mais se fosse adornada com a capacidade de abrir as "portas da perceção" ou de libertar a criatividade. Também se dizia na época que o álcool e o tabaco eram ferramentas tão necessárias para a literatura como o papel, a caneta e a máquina de escrever. Eu ficava até altas horas a escrever à máquina na mesa da sala, sob a luz débil do aquecedor, e pela manhã a minha mãe encontrava, ao lado da máquina e dos papéis, um cinzeiro cheio de beatas. Com tal método, era pouco provável escrever uma obra-prima precoce, embora fosse fácil adquirir uma respeitável tosse brônquica antes dos 20 anos.

Sendo medroso por natureza, o haxixe assustava-me. Comecei a fumá-lo pela mesma razão que me levou a fumar tabaco alguns anos antes: para imitar outros mais audazes do que eu, porque, de repente, toda a gente o fazia. Toda a gente falava usando os novos termos associados à gíria prisional —o “costo”, o “pasote”, o “talego”, etc.— e eu tinha vergonha de ficar antiquado, como ficaram antiquadas, alguns anos depois, as jaquetas de bombazina, as botas de montanhista ou metalúrgico e as barbas compridas. Eram os finais dos anos 70 e os primeiros dos anos 80, e tudo acontecia muito depressa. Tão depressa que o haxixe também passou de moda, porque de repente o novo, o último grito e o obrigatório era a cocaína. Agora, as jaquetas tinham ombreiras dignas de filmes policiais, as calças eram largas e pendiam abaixo do cinto, e alguns dos heróis barbudos de bombazina tinham-se barbeado e exibiam patilhas à altura das têmporas, fazendo o gesto vaidoso de tapar uma narina com o dedo indicador e respirar fundo pela outra, indicando que ainda lhes restava um pouco da cocaína consumida pouco antes.

O haxixe e a marijuana tornaram-se antiguidades de hippies tardios ou, como se começou a chamar depois, “cães-flautistas”. O moderno era a cocaína. A coca era um símbolo de status, como o design ou os restaurantes de nova gastronomia, onde os beneficiários dos ventos descontrolados de dinheiro público celebravam os seus pequenos ou grandes êxitos, trazidos pelos grandes projetos da era socialista, culminando nos Jogos Olímpicos e na Expo de 1992, autênticos fogos de artifício galácticos.

Diziam que a coca animava a vida e exaltava todas as faculdades, inclusive as eróticas, e que, além disso, não era viciante. Parte da tolice da minha época, também a consumi ocasionalmente, sobretudo quando me convidavam. Nunca me ocorreu então que estava a alimentar um negócio criminoso que, já na altura, afogava em sangue, terror e corrupção uma parte do mundo. O que nem eu nem ninguém podíamos ignorar eram os efeitos atrozes que começou a ter em muitas pessoas aquela substância aparentemente tão benéfica e inócua, que não deixava cheiros persistentes nem marcas como o haxixe, nem rastos de sangue e seringas pisadas em casas de banho públicas.

Talvez tenha sido o castigo dessas antigas tolices e vícios que me deixou vacinado contra a moda de muitos anos depois, que agora atingiu o seu paroxismo destrutivo: as redes sociais. Tal como o haxixe ou a cocaína, chegaram com o prestígio de uma novidade imperdível, na grande onda do messianismo tecnológico, que também trazia o seu vocabulário, os seus propagandistas e os seus gurus, todos eles disfarçados de jovens benfeitores boémios. Agora parece que o Facebook é uma distração para reformados, como o jogo de cartas ou o crochet, mas há uns 15 anos não abrir uma conta ou perfil —ou lá como se chamasse— era tão imperdoável como não aspirar uma linha de cocaína numa reunião de políticos ou empresários corruptos. Homem do meu tempo, passei algumas horas nessa rede e percebi de imediato como poderia tornar-me dependente e da extraordinária quantidade de tempo que ela me roubava sem que eu notasse e sem qualquer proveito.

O fundador era, na altura, um jovem simpático, com ar de adolescente desajeitado e algo rebelde, mas bem-intencionado, com a sua camisola de capuz e o seu desembaraço de recém-chegado à universidade e a sua simpática máxima: “Move-te rápido e quebra coisas”. E como quebraram! O dano causado pelos senhores da droga empalidece perante a pandemia de distúrbios mentais entre crianças e adolescentes que a empresa deste indivíduo promove nas suas várias plataformas, cada vez mais viciantes, propagadoras conscientes de ansiedade e mentira.

A droga de Zuckerberg experimentei-a um pouco e deixou-me o mesmo desagrado dos primeiros charros. A que Elon Musk trafica agora com tanto sucesso tenho a modesta satisfação de nunca ter experimentado. Nunca entrei no Twitter ou no X.

Sei que recebo toda a informação que preciso através de jornais, rádios e plataformas digitais confiáveis. Ao mesmo tempo, poupo-me à crispação e imundície desse lodaçal. Quebrar a nossa dependência desses fabricantes de vícios é das poucas liberdades reais que nos restam.

sábado, 25 de janeiro de 2025

O Amigo Canídeo


 Mudei de rotina. Passei a ir almoçar a outro tasco que até por acaso se chama Adega. Sopa, pão prato e bebida por 7€. No regresso venho por um local mais longo para caminhar um pouco mais e ver, ao longe, a Serra do Pilar e a Ponte Dom Luís. Até criei a rotina de, de vez em quando colocar uma fotografia da paisagem no Blusky, com a legenda: "Estado do tempo". 

Passo por várias vivendas, cada uma com o seu cão, cada um mais barulhento do que o anterior. Mas o cão da última casa não me late. Deixa-me fazer-lhe festinhas e tudo. Sempre atento ao que se passa. Até dá para lhe tirar umas boas fotografias como esta. 

domingo, 19 de janeiro de 2025

Só Não Acabamos com a Pobreza Porque Não Queremos

"O pior inimigo de um pobre é outro pobre que se acha rico e que defende aqueles que os tornam pobres", Pepe Mujica. 

E sobre a pobreza em Portugal, esta foi provavelmente a melhor entrevista que li esta semana, e os preconceitos associados, como a discriminação em relação às pessoas que recebem o rendimento mínimo, e lembrar que Portugal foi dos últimos países da Europa a ter este tipo de apoio.


"Há décadas que Carlos Farinha Rodrigues estuda as questões da pobreza e das desigualdades sociais. É, por isso, uma espécie de economista contracorrente. Foca-se nos excluídos, naqueles que estão à margem e que continuam a “não ter voz”. Todos os anos, este especialista analisa os dados divulgados pelo Instituto Nacional de Estatística (INE), a partir do Inquérito às Condições de Vida e Rendimento (ICOR), e atualiza o estudo Portugal Desigual, da Fundação Francisco Manuel dos Santos. Os números mais recentes revelam que, em 2023, viviam em Portugal 1,8 milhões de pessoas com menos de 632 euros por mês. O combate à pobreza deve ser um desígnio nacional, defende o professor do ISEG, porque os níveis de desigualdade e de pobreza que temos acabam também por ser “um obstáculo ao crescimento e ao desenvolvimento sustentado” do país.

Enquanto académico, como é que começou a interessar-se pelas questões da pobreza e das desigualdades sociais?

Fui fortemente influenciado no início da minha carreira por uma pessoa que me marcou muito – a professora Manuela Silva –, que me deu aulas no mestrado. Foi ela que me despertou para este tipo de questões. Hoje, não consigo conceber uma visão da economia que não tenha as pessoas em primeiro lugar. Os números são importantes, mas para melhorarmos as condições de vida das pessoas. Sinto-me muito bem nesta pele de um economista que pretende ser o mais rigoroso possível, mas com preocupações sociais. Pugno por uma sociedade mais justa. Esse é o meu ponto de partida.

Por defender isso, põe-lhe um rótulo político?

Não. Mas sei que há quem considere que estas questões da pobreza não têm a ver com o discurso económico, são marginais à economia. Eu continuo a achar que o [David] Ricardo tinha razão – o principal problema da economia é a distribuição dos recursos. E, portanto, pugnar por uma sociedade mais justa não é só uma questão de equidade. É também uma questão de eficiência. Hoje estou convencido que uma sociedade com os níveis de desigualdade e de pobreza que temos, é também um obstáculo ao crescimento e ao desenvolvimento sustentado. Pugnar por uma sociedade mais justa, com a menos pobreza e menos desigualdade, é também pugnar por uma economia mais eficiente e mais ao serviço das pessoas. Mas sei que o discurso que acabei de fazer não é aceite por uma parte muito significativa dos economistas. E a verdade é que o problema das desigualdades e da pobreza tem estado muito afastado do discurso principal da economia nos últimos anos.

Há 50 anos, era fácil ilustrar um artigo sobre a pobreza em Portugal. Havia muitos bairros de barracas, com miúdos sujos e descalços, em ruas onde o esgoto corria a céu aberto. Hoje, felizmente, já não é assim. Se tivesse de escolher uma fotografia para ilustrar a pobreza no país, qual seria? O que a representa melhor?

É verdade que a nossa situação não tem qualquer semelhança com o que acontecia antes do 25 de Abril. Demos passos muito grandes em termos das condições de vida da população portuguesa e dos residentes no país. Se eu quisesse ter uma fotografia que ilustrasse de forma mais vincada o que é a realidade da pobreza em Portugal, escolheria uma que retratasse crianças que têm dificuldade no acesso à escola e que têm dificuldades no acesso a uma alimentação fundamental. O nosso problema principal, em termos de pobreza, continua a ser a pobreza das crianças e dos jovens. Temos mais de 300 mil crianças em situação de pobreza. É algo horrível! Mas também é o principal problema, porque potencia a reprodução da pobreza para os anos futuros. É aí que temos de atacar se queremos resolver o problema.

Há quem diga que são precisas cinco gerações para sair do ciclo de pobreza.

Sim, é verdade. Existem estudos que apontam nesse sentido. Demorar mais ou menos tempo depende da vontade política para encarar o problema a sério. É verdade que combater a pobreza das crianças e dos jovens é muito mais difícil do que, por exemplo, combater a pobreza dos idosos. Quando combatemos a pobreza dos idosos, temos claramente identificada uma questão de recursos económicos. Podemos ter, simultaneamente, um conjunto de necessidades em termos de integração social e de acesso a bens e serviços de primeira necessidade, mas tudo isto está muito centrado na população em situação de pobreza que é idosa. Quando olhamos para as crianças, temos um problema mais complicado. Uma criança não é pobre em si mesma. É pobre porque vive numa família pobre. Isso significa que tem de haver, simultaneamente, medidas para as crianças e medidas para as famílias onde elas estão inseridas. É uma visão muito mais integrada de como abordar as condições de vida das crianças.

É mais oneroso?

É mais difícil e também mais oneroso, possivelmente. É por isso que tem sido mais difícil de combater. Deixe-me ser também um pouco cínico. Dá menos votos no imediato. Mas não tenho dúvidas nenhumas, e é isso que está consagrado na Estratégia Nacional de Combate à Pobreza, que reduzir a pobreza das crianças e dos jovens deve ser o nosso principal objetivo, se quisermos ter uma redução efetiva da pobreza no médio e longo prazo.

Do seu ponto de vista, quais foram as medidas que mais permitiram combater a pobreza?

Temos, infelizmente, em Portugal uma sociedade que ainda é muito tolerante em relação à pobreza. Quando há uma tragédia, a sociedade evidencia uma solidariedade enorme, uma disponibilidade quase imediata de participar. Mas, em relação à permanência de fatores de pobreza, existe uma tolerância muito grande. Costumo dizer que há uma frase assassina no nosso país, que é: pobres sempre houve e sempre haverá. Não é verdade! Haverá enquanto nós quisermos. Nós, enquanto sociedade, temos os recursos, temos as condições para acabar com a pobreza. É fundamental quebrar esta mentalidade. Nesse sentido, a existência de um conjunto de medidas implementadas nestes últimos anos representou um salto muito grande. A existência do Rendimento Social de Inserção (RSI) e do Complemento Solidário para os Idosos (CSI) são medidas, que poderemos discutir a sua eficiência, mas que, acima de tudo, traduzem um conceito muito importante que é: a pobreza não é um problema exclusivamente dos pobres, é um problema de todos nós, é um problema do conjunto da sociedade. Ter uma sociedade com os níveis de pobreza e de desigualdade que temos torna-nos a todos, coletivamente, uma sociedade mais pobre, mais enfraquecida na sua vivência democrática, nos seus valores, na sua coesão social.

Na mensagem de Ano Novo, o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, disse que “a pobreza, nos dois milhões de portugueses, é um problema de fundo estrutural que a democracia não conseguiu resolver”. Porque é que tem sido tão difícil acabar com a pobreza em Portugal? Há pouco, referiu a falta de vontade política. É só isso mesmo?

Acho que esse é o primeiro aspeto. Houve falta de vontade política ou, se quiser, falta de uma perceção muito clara, de que nós, ao reduzirmos a pobreza e as desigualdades, estamos também a contribuir de forma muito importante para ter um crescimento e um desenvolvimento económico mais acentuado. Esta separação entre o que parecem ser variáveis económicas e variáveis sociais, é algo que nos custa muito caro. Aliás, isso traduz-se muitas vezes naquela frase que muitos economistas gostam de dizer e de que discordo: é preciso crescer primeiro, para distribuir depois.

Essa é a retórica que impera.

Sim. É a retórica oficial. Na minha opinião, essa frase está errada. O processo de criação de riqueza não é independente do processo da sua distribuição. E, portanto, temos de olhar para as duas coisas em simultâneo. E é isso que tem faltado também.

Há, então, uma responsabilidade que não é só do Estado, é também dos privados.

Claramente. Quando falo na necessidade de tornar o combate à pobreza um desígnio nacional, não estou nem a desculpabilizar o Estado em relação ao pouco que tem feito, nem a dizer que todo esse combate passa pelo Estado. Como lhe digo, a ideia de tornar o combate à pobreza um desígnio nacional, é que todos somos responsáveis pela situação de pobreza que temos. Claramente, isso implica, em primeiro lugar, a intervenção do Estado a nível central e implica um trabalho e uma intervenção do poder local que é fundamental no combate à pobreza porque está mais próximo, conhece a realidade. Implica ainda um trabalho profundo das instituições de solidariedade social, que muitas vezes atuam só como forma complementar da segurança social. E implica a própria intervenção das empresas.

De que forma?

Hoje já existem empresas que têm uma intervenção social muito grande. Eu faço parte da coordenação científica do Proinfância, que é um programa da Fundação la Caixa, que tem um papel importantíssimo no combate à pobreza. Quando falamos em responsabilidade social das empresas, há duas componentes. Uma primeira é a responsabilidade social com os próprios trabalhadores dessas empresas. E a segunda é uma responsabilidade social com o conjunto da sociedade. Também aí têm sido dados passos muito positivos. Há um conjunto significativo de empresas que têm não só uma preocupação acrescida com as questões sociais, mas uma intervenção direta, e muitas vezes uma intervenção em termos financeiros, de participação em ações concretas, para tentar reduzir a pobreza e a exclusão social.

Não corremos o risco de estar cada um a trabalhar para o seu lado?

É por isso que é necessário uma Estratégia Nacional de Combate à Pobreza a funcionar a sério, para criar todas essas sinergias.

Ainda não está a funcionar a sério?

A comissão liderada pela Sandra Araújo, que é a coordenadora nacional, tem feito um bom trabalho, tentando a ligação com a sociedade civil e a coordenação com os vários organismos da Administração Pública, o que nem sempre é fácil. Mas a ideia da estratégia era ser uma forma de pôr em diálogo e em colaboração os vários intervenientes no combate à pobreza e à exclusão social.

Uma medida emblemática de combate à pobreza foi, como já referiu, o Rendimento Social de Inserção (RSI). Houve muita discussão pública em torno deste apoio social. Os beneficiários ficaram estigmatizados?

Eu fiz parte do grupo que discutiu inicialmente a criação do RSI, ainda no tempo do Governo do engenheiro António Guterres. Nessa altura, eu estava convencidíssimo que a medida ia ser profundamente consensual pelos objetivos e pelos valores envolvidos. Acho que nunca me enganei tanto na vida, em termos de avaliação de uma política pública. Essa medida gerou um profundo debate político que, em muitos casos, não foi nada elegante. E, acima de tudo, gerou uma estigmatização sobre os beneficiários do RSI, que ainda perdura. Quando olhamos para uma medida como o RSI, devemos perceber em primeiro lugar que somos dos últimos países da União Europeia a adotar uma medida semelhante.

Existe também noutros países?

Existe em praticamente todos os países da União Europeia, com variantes na sua forma de implementação. É uma medida de primeira necessidade em relação às pessoas que não têm quaisquer recursos. Ninguém deixa de ser pobre por receber o RSI. O valor de referência do RSI é bastante abaixo do valor do limiar de pobreza. Portanto, não foi feito para tirar as pessoas da pobreza. Foi feito para aliviar as condições de vida dos mais pobres entre os pobres. Nesse sentido, é uma medida extremamente generosa. Acima de tudo, permite, simultaneamente, a transferência de alguns recursos financeiros para as famílias e, ao mesmo tempo, um processo de integração social. A essência do RSI tem muito a ver com aquele provérbio, que dizem que é chinês: se uma pessoa tem fome, não lhe dês o peixe, ensina-a a pescar. O objetivo do RSI era fazer as duas coisas ao mesmo tempo. Era dar o subsídio e, acima de tudo, ter um processo de integração das pessoas.


E funcionou?

Eu diria que o processo de integração das pessoas foi o que funcionou menos bem. Há muito a fazer aí. Deveríamos pensar o RSI em termos de reforçar esta segunda componente.

Precisa de uma reforma?

Precisava de ser repensado para que estas duas componentes tivessem papel ativo. A discussão política e a estigmatização dos beneficiários do RSI é, de facto, algo extremamente preocupante. Se me perguntarem: existe fraude no RSI? Certamente que existe, como existe em todas as prestações sociais. Mas estou convencido que a fraude no RSI é muito menor que em outras prestações sociais. Por um lado, os montantes envolvidos são extremamente baixos e, em segundo lugar, nunca houve uma medida tão vigiada quanto esta em Portugal. Toda a gente tem os olhos em cima do RSI. Em síntese: o RSI, na minha opinião, é importante, porque reduz a intensidade da pobreza. Não é uma medida que resolva o problema da pobreza em si mesmo, porque ninguém deixa de ser pobre por receber o RSI. Nós, claramente, deveríamos reforçar a componente de inclusão e de inserção social dessas pessoas, para se tornar uma medida transitória.

Quando lhe perguntei que fotografia escolhia para retratar a pobreza, escolheu as crianças. Mas os dados divulgados pelo INE, no inquérito às condições de vida e rendimento, mostram que há uma redução significativa da incidência de pobreza nas crianças e jovens. O que é que contribuiu para isso?

Esse talvez seja o aspeto mais positivo dos dados mais recentes publicados pelo INE. Explica-se, por um lado, com o reflexo de algumas políticas que foram implementadas. Isto são dados referentes a 2023 e houve um conjunto de medidas implementadas ao nível das creches e dos apoios às crianças. Claro que têm um efeito sempre muito limitado, mas com a vantagem de serem muito dirigidos ao público-alvo. Espero que isto se prolongue no futuro porque, de facto, este é o elemento mais importante deste inquérito em termos de resultados. É o caminhar na direção correta a redução da pobreza infantil.

Em contrapartida, temos um aumento da pobreza nos idosos. Como é que se explica, tendo havido medidas também específicas para esta população, nomeadamente o aumento das pensões?

Não sabemos ainda. Uma explicação possível é que houve alterações da metodologia de cálculo das pensões de velhice. Nos inquéritos, as famílias são inquiridas sobre os seus rendimentos para calcularmos o seu rendimento disponível, os indicadores de pobreza, etc. De há uns anos a esta parte, o INE tem aperfeiçoado a forma de recolha de informação, fazendo o cruzamento da informação declarada pelas famílias com dados administrativos, nomeadamente com os dados fiscais do IRS. O ano 2024 foi o primeiro em que esse processo chegou às pensões de velhice. Isso traduziu-se numa redução ligeira do nível de pensões. Estamos perante um caso que pode ser claramente uma quebra de série estatística e, portanto, os dados não são diretamente comparáveis.

Mas, com essa nova forma de cálculo, os números são mais reais?

São números mais reais. Mas tem de ser averiguado se, de facto, a razão é exclusivamente esta. Se for, não é muito preocupante, porque não se vai repercutir para o futuro. É um recomeçar da série. Mas há outras explicações possíveis. Ainda não posso demonstrar, porque só vamos ter acesso aos microdados deste último inquérito lá mais para o meio do ano. Mas a linha de pobreza passou de 591 para 632 euros por mês, entre 2022 e 2023. Esta é a linha que separa os pobres dos não pobres. Ou seja, a linha de pobreza subiu 7%. Nesse intervalo de rendimento, entre os 591 e os 632 euros, em 2022, estavam milhares de pensionistas. Eram pessoas com pensões muito baixas, mas que lhes permitiam estar um bocadinho de nada acima da linha da pobreza. Uma das questões que pode ter acontecido e que tem de ser investigado, é que algum deste acréscimo da pobreza dos idosos tenha resultado de pessoas que anteriormente estavam ligeiramente acima da linha de pobreza, mas porque os seus rendimentos subiram menos do que a linha de pobreza, agora passaram a ser pobres. É expectável que, em 2024 e 2025, o conjunto de medidas que foram implementadas tenham um impacto significativo na pobreza dos idosos. Os aumentos do CSI repercutem-se mais tarde.

Outro problema que salta à vista é a proporção da população empregada que vive em situação de pobreza (9,2%). O que é que mais contribui para esta situação? Os salários baixos? Ou há outros fatores?

O salário mínimo está sempre acima do limiar de pobreza e tem tido aumentos significativos. Isto significa que, quando temos um trabalhador em situação de pobreza, desde que seja um trabalhador normal, que ganhe pelo menos o salário mínimo, ele não deveria ser pobre. Mas a questão da pobreza não diz respeito só a ele, diz respeito à sua família. Se eu tiver um trabalhador que é casado, tem três filhos e o único rendimento dessa família é o salário mínimo dele, obviamente que essa família é pobre. Mas, quando tentamos encontrar as principais razões para a existência destes trabalhadores que são pobres em Portugal, mais uma vez, o que temos é um indicador de disfuncionalidades no nosso mercado de trabalho. O nosso mercado de trabalho, em alguns aspetos, não funciona bem. Isso tem a ver com o facto de termos ainda largos assentes em baixos salários. Temos, em muitos casos, condições laborais extremamente deficientes do ponto de vista da qualidade do trabalho. E, em alguns casos, temos a não valorização das qualificações dos trabalhadores. Quando vamos ao supermercado e vemos nas caixas muitos jovens licenciados, perguntamos: como é que isto é possível? O mercado de trabalho ainda não está a ser capaz de valorizar integralmente essa melhoria das qualificações.

Mas os dados mostram que ainda vale a pena estudar.

Esse é talvez o aspeto mais indiscutível de todos os estudos que eu tenho feito e de todos os estudos que conheço em Portugal. Os níveis de qualificação, os níveis de ensino, são o principal fator de combate à pobreza em Portugal.

A educação ainda é o principal elevador social?

Não tenho dúvidas nenhumas sobre isso. Claramente, a educação continua a ser o principal fator de proteção em relação às situações de pobreza. Vale a pena estudar. Mas hoje começamos a ter uma situação que há uns anos era completamente residual. Existem 6,5% de pessoas com nível de qualificação superior, em situação de pobreza. Há 15 anos, isso era impossível. Começamos a ter alguma dificuldade de ajustamento neste processo de passagem do sistema de ensino para o mercado de trabalho. Isso também nos exige, se calhar, repensar o tipo de oferta de cursos que fazemos, que não se ajustam tão rapidamente quanto deveriam às necessidades do mercado de trabalho.

O relatório global da OCDE sobre as competências dos adultos revelou que só 40% dos adultos portugueses compreendem textos simples e matemática básica. Esta iliteracia contribui para a pobreza em Portugal, ou é uma consequência da pobreza?

Acho que é as duas coisas. Fiquei um pouco surpreendido com esses dados. Não esperava que a nossa posição, em termos relativos e em termos absolutos, fosse tão baixa. De alguma forma, são dados contraditórios com o aumento das qualificações que temos tido, com os resultados que temos no PISA, etc. Não sou especialista em questões de educação, mas acho que deveria aproveitar-se para tentar perceber melhor isso. Sou professor há 40 anos e sei comparar os alunos de hoje com os alunos que tinha quando iniciei a minha carreira. Os alunos hoje não são nem mais nem menos inteligentes do que eram há 40 anos. O que às vezes temos é formas de expressar e direcionar a inteligência que não está devidamente contemplada. Reconheço que temos problemas de iliteracia. Mas acho que também falta uma política cultural que tenha em atenção a valorização do nosso património, que tenha em conta a valorização da cultura, não como instrumento imediato de progressão ou de ganhar com isso, mas como uma forma de ser uma pessoa mais completa e de ter uma maior compreensão da sociedade em que se vive. Voltando à questão de transformar o combate à pobreza num desígnio nacional, também aqui o maior desafio é o da mudança de mentalidades, que passa muito pela capacidade de perceber a realidade em que estamos inseridos nas suas várias dimensões.

E como se pode fazer isso?

Deixe-me dar-lhe um exemplo que eu acho que é muito elucidativo. Quando falamos com pessoas que são indiscutivelmente pobres, que têm mais de 35 anos, e lhes perguntamos se se consideram pobres, há uma resposta sistemática. “Não. Eu sou remediado. Pobres eram os meus pais, que uma sardinha dava para o almoço de três pessoas.” A pobreza extrema que tínhamos antes do 25 de Abril ainda está muito presente nessas gerações. Há aqui uma mudança cultural que ainda tem de ser ganha. Aquela ideia de que temos de ganhar as pessoas para a pobreza é, acima de tudo, um desafio à mudança de mentalidades.

Os pobres têm voz em Portugal?

Não. Mesmo as instituições de solidariedade social, dificilmente podem falar em nome dos pobres. Acho que até agora não temos conseguido ouvir a voz dos pobres, efetivamente. Mesmo pessoas como eu e outros investigadores que se dedicam a estas áreas, obviamente temos uma visão de fora. Muitas vezes, é difícil compreender as várias dimensões da pobreza. Dar voz aos pobres é algo que eu acho fundamental para conhecermos melhor a pobreza e, acima de tudo, para a alterarmos.

A Estratégia Nacional pretende fazer baixar a taxa de risco de pobreza para os 10% em 2030. É possível chegar aí?

O objetivo da estratégia era aproximar-nos dos países com menores taxas de pobreza da União Europeia. Eu diria que, ao ritmo que estamos para alcançar resultados, o objetivo dificilmente será alcançado. Mas é um esforço que tem de ser feito.

Carlos Farinha Rodrigues | Jornal de Negócios (revista)