segunda-feira, 13 de outubro de 2025

Um País Sem Memória é um País Sem Futuro

 Dia seguinte às eleições autárquicas de 2025: das poucas coisas positivas foi o partido fascista CH ter metade das câmaras municipais do defunto CDS. 

O que mais me surpreendeu negativamente foi a vitória de Filipe Menezes em Gaia. Como é possível que um autarca que saiu deixando a câmara na falência, falando-se já na Detroit portuguesa e acusado de tudo e mais alguma coisa, incluindo de corrupção. Como é possível que os eleitores lhe tenham confiado o votos? Como?









domingo, 12 de outubro de 2025

A Golpada do Nobel da Paz


Como costuma acontecer todos os anos, nunca faço ideia de quem é o escritor laureado com o Nobel da Literatura. Mesmo que fosse Lobo Antunes também não saberia muito porque na verdade nunca li nada dele, apesar de já me terem recomendado, pelo menos, o Memória de Elefante.

Mas este ano nem o nome do Nobel da Paz fazia ideia de quem fosse, até porque, cada vez menos acompanho todas as guerras e guerrinhas de um mundo que, depois da pandemia, anda mortinho por uma terceira guerra mundial.

Quem é Corina Machado vencedora no Nobel da Paz deste ano? Não fazia ideia.

Mas Jorge Majfud, escritor uruguaio e professor de literatura latino-americana, que escreve em vários jornais do mundo e que até foi considerado o intelectual mais influente da América Latina, explica no jornal argentino Pagina 12. 

"Em 2002, o presidente democraticamente eleito da Venezuela, Hugo Chávez, foi sequestrado e detido na ilha La Orchila. Corina Machado (na foto), vários empresários e o The New York Times apoiaram o golpe. A oposição proclamou Pedro Carmona (empresário e membro do Opus Dei) como novo presidente. Carmona decretou a dissolução da Assembleia Nacional, do Supremo Tribunal e de outras instituições. Machado assinou a declaração de apoio a essas medidas.

(...)

Sem contar com a participação de Corina Machado no golpe de 2002 (poder-se-ia dizer que isso aconteceu há duas décadas e todos podem mudar de opinião), os seus últimos apelos públicos, em 2025, a uma invasão militar dos Estados Unidos à Venezuela, desqualificavam-na para qualquer Nobel da Paz.

A tão desejada invasão da Venezuela, velha brutalidade imperialista apoiada pelo clássico servilismo dos colonizados com privilégios, deixaria milhares de mortos, senão uma guerra civil ou uma nova Palestina a sangrar sob bombardeamentos sucessivos e estratégicos “acordos de paz”.

Até Henrique Capriles se opôs a esse pedido. Ao mesmo tempo que Corina Machado batia às portas do Pentágono, no final de agosto, Capriles reconhecia algo de mero bom senso: “a maioria das pessoas que querem uma invasão dos Estados Unidos não vive na Venezuela”. Já Juan Guaidó, todos sabem, é um mercenário barato - nem os venezuelanos da Florida o querem.

Se queriam premiar alguém da oposição venezuelana, é bastante óbvio que havia muitos outros venezuelanos comuns que estão lá a lutar, legitimamente, pelas suas convicções e sem dinheiro estrangeiro ou de grandes capitais. Se queriam intervir na política venezuelana de forma menos obscena, poderiam ter considerado que o dinheiro do Nobel os sustentaria por um tempo. Mas não - tinha de ser Corina Machado.

Parece bastante óbvio que o petróleo, a “maldição” da Venezuela, é o fator central em tudo isto. Justo quando Trump assassina venezuelanos desconhecidos no Caribe, procurando distrair o povo norte-americano e uma desculpa para invadir a Venezuela, premiam uma figura conhecida que pede uma invasão. Não a premiam com o Nobel de Economia, mas com o “Nobel da Paz”. Essas execuções sumárias a piacere, sem julgamento, foram aplaudidas por Corina Machado. A Fox News qualificou-as como “valentia e clareza perante uma empresa criminosa que traz miséria ao nosso povo e desestabiliza a região para prejudicar os Estados Unidos”.

Claro, o que se pode esperar de um galardão, mais famoso do que prestigiado, que distinguiu genocidas históricos como Henry Kissinger e anjos como Obama, que, enquanto sorria, bombardeava tudo o que se movia no Médio Oriente - um historial que inclui desde crianças massacradas por drones até à destruição da Líbia, um país de notável desenvolvimento e perigoso independentismo. Sempre em nome da democracia e da liberdade que, nos Estados Unidos de hoje, já nem sequer se respeita nos discursos.

É tudo muito surreal, mas no fundo lógico.

"Nobel Golpista" de Jorge Majfud | Página 12 | 11 de Outubro 2025

domingo, 5 de outubro de 2025

sábado, 4 de outubro de 2025

O Erro de Paulo Futre Sobre a Vinda de Charters de Chineses


Campanha eleitoral de 2011 no Sporting. A dois ou três dias da votação, Paulo Futre tem uma conferência de imprensa, em que diz que o Sporting tem que ir buscar o melhor jogador de futebol chinês porque "vão vir charters de chineses" para o ver jogar.

A ideia não foi assim tão descabida. Só que, o erro do Futre foi querer ir buscar o melhor jogador chinês de futebol. Ora, como qualquer pessoa esclarecida sabe, o futebol não é o desporto rei dos chineses. A modalidade preferida dos chineses é o ténis-de-mesa!

Atentemos no que aconteceu por estas semanas, quando um clube que está no terceiro escalão do futebol da Alemanha - mas que tem uma equipa forte de ténis de mesa - foi buscar o melhor jogador chinês. A reportagem é de um jornal alemão de desporto que traduzi:

"Invasão chinesa em Saarbrücken"

Isto nunca tinha acontecido no 1. FC Saarbrücken! O clube é conhecido sobretudo pela sua secção de futebol, que milita na 3.ª Liga. Mas agora tem um campeão olímpico com milhões de fãs: na equipa masculina de ténis de mesa joga o chinês Fan Zhendong (28).

Durante muito tempo foi o número um do mundo e campeão mundial de singulares por duas vezes – e provocou em Saarbrücken uma autêntica invasão chinesa!

Normalmente, os jogos em casa contavam com cerca de 500 espectadores. Desta vez, os primeiros encontros na Joachim-Deckarm-Halle, com capacidade para 1880 adeptos, esgotaram. “E ainda poderíamos ter vendido pelo menos o dobro dos bilhetes”, afirma o diretor desportivo Nicolas Barrois (35).

Estão previstos jogos pontuais na maior Saarlandhalle (3500 adeptos) – como no dia 21 de dezembro contra o Borussia Düsseldorf.

Também nas gameboxes (lugares anuais) o clube vive um boom: “Normalmente vendemos entre 20 a 50 por temporada”, diz Barrois. “Desta vez, em apenas dois dias, foram 500. Entre 90 e 95% foram para a China.”

Lá, Fan é uma superestrela que precisa de proteção policial. Os seus fãs aproveitam agora a oportunidade para o verem na Alemanha, em pavilhões mais pequenos.

Curioso: a maioria dos chineses, apesar de terem lugar anual, só assiste a um ou dois jogos. “Se alguém gasta 3000 euros num voo, também investe os 200 euros no passe de época para garantir que vê o Fan”, explica Barrois.

Montes de correspondência de fãs chegam a Saarbrücken. “Ainda nem conseguimos abrir tudo, vamos tratar disso na pausa de inverno”, acrescenta Barrois. Também as vendas de camisolas dispararam: em dois meses, Saarbrücken vendeu tantas como normalmente ao longo de toda uma época.

Isto é importante para o clube, já que os jogadores estrela recebem salários de seis dígitos na Bundesliga. Mas parece que o investimento está a compensar.

Nascia Assim a Era da Pós Verdade

"Na cronologia da pós-verdade costuma repetir-se como episódio inaugural a célebre conferência de imprensa de 22 de janeiro de 2017. Kellyanne Conway, porta-voz do presidente Trump - encurralada perante uma mentira flagrante - respondeu que não mentia, mas que oferecia “factos alternativos” (alternative facts). Não se tratava de um lapsus linguae

Umas horas antes, quando começou a chover durante a cerimónia de tomada de posse, o próprio Trump tinha respondido com simplicidade: “Não está a chover”. O homem mais poderoso do mundo dizia que não chovia debaixo da chuva, e milhares de pessoas que se tinham abrigado debaixo dos guarda-chuvas começaram a fechá-los - o que revelou uma lealdade que já não vinha da convicção, mas de algo mais sinistro: a rendição. 

Nascia a era da pós-verdade.


Máriam Martínez-Bascuñán explica como, em menos de uma década, esse mundo que então nos pareceu delirante se tornou familiar. “Já não pensamos; alinhamo-nos. Já não argumentamos; partilhamos. Já não duvidamos; confirmamos. Mentir de forma indiscriminada já não tem como objetivo fazer com que as pessoas acreditem numa mentira específica, mas sim fazer com que ninguém acredite em nada.” A disputa sobre a verdade tornou-se uma batalha simbólica e emocional, e “nessa colisão entre um povo que já não acredita e umas elites que já não ouvem, a própria verdade tornou-se irrelevante”.

Excertos do artigo de Andrés Barba, hoje no El País a propósito do livro "O fim do mundo comum. Hannah Arendt e a pós-verdade de Máriam Martínez-Bascuñán

domingo, 28 de setembro de 2025

Porque é que Eu Odeio a Classe Média?


"Por quê que eu odeio a classe média? A sociedade capitalista tem duas classes fundamentais: a classe trabalhadora, que produz a mais-valia, e a burguesia. O trabalho da burguesia é explorar o trabalhador, porque uma parte do trabalho dele não é paga e vira capital.

O lugar, o papel, o significado, a relação dessas duas classes são claríssimos. Entre elas, tem uma terceira, que não tem lugar econômico porque não está nem na classe trabalhadora nem na classe burguesa. E a função da classe média é ideológica: espalhar as ideias da burguesia, da classe dominante.

Como a classe média não sabe muito bem onde está, ela fica insegura. Ela tem um sonho e um pesadelo. O sonho é se tornar burguesa. Pensa que se tiver um apartamento com suítes, churrasqueira na varanda, não sei o que mais, está já próxima disso. Mas ela não está.

Enquanto não receber a mais-valia, ela não entra na burguesia. Ela pode ficar rica, mas burguesa ela não é. E por isso ela tem um pesadelo, que é cair na classe dominada, na classe trabalhadora.

Então, a classe média funciona oprimindo os dominados e festejando e bajulando os dominantes. Por isso ela é odiosa. Ela é o cimento ideológico que garante que essa sociedade fique como está. É isso que acho odioso nela: não perceber que essa sociedade como está não pode ser.

Marilena Chaui | Folha de São de Paulo

sexta-feira, 26 de setembro de 2025

119 Dias Por uma Consulta, Luís?

 Aos cinquenta anos vou ser atleta federado e, como tal, preciso de um exame médico desportivo. O senhor que me viu, também ele atleta da mesma modalidade que pratico, pediu-me para fazer um exame ao coração, que pode ser pedido no centro de saúde. Hoje ligaram-me do centro de saúde a informar que necessitava de ir a uma consulta e que poderia agendar on-line.

Pois muito bem, vamos lá ao portal do SNS e agendo isso. Qual não é o meu espanto, que só tenho consulta para daqui a 119 dias!!, a 21 de Janeiro do próximo ano! Estamos em setembro mas eu nem sequer consigo tomar nota na agenda deste ano!

Isto é absolutamente ridículo. Mas as clínicas privadas agradecem. 




domingo, 21 de setembro de 2025

Deus, Pátria, Trafulhice


Do jornalista Miguel Carvalho li o livro Quando Portugal Ardeu sobre o pós 25 de Abril, e das organizações de extrema-direita que andavam a colocar bombas nas sedes do partido comunista, que mataram, por exemplo, o padre Max da UDP. Entretanto publicou outros livros e regressa agora com um livro com mais de setecentas páginas sobre os bastidores do CH. 

"Esta é a investigação que revela a face oculta do Chega.

Com recurso a milhares de páginas de documentos inéditos e largas dezenas de entrevistas exclusivas com fundadores, financiadores, atuais e antigos dirigentes e militantes, Por dentro do Chega é, sobretudo, um retrato do partido por aqueles que o criaram e o fizeram. Sem filtros."

Na promoção ao livro pude ler duas reportagens, uma na Visão e outra no Jornal de Notícias e são alguns desses excertos que aqui deixo, para abrir o apetite para quem quiser comprar o livro ou, em alternativa, a revista Visão ou o Jornal de Notícias de hoje. Comecemos pelo Jornal de Notícias:


BORRADINHOS DE MEDO

"Dos financiamentos escondidos às gravações telefónicas secretas para entalar rivais internos, esta investigação mostra como André Ventura patrocinou exércitos de perfis falsos e purgas internas para criar um Chega unipessoal que sustenta as ambições desmedidas, as vidas abastadas e as madrugadas de copos dos seus mais reputados dirigentes. Pelo meio há guerras religiosas, filiações de imigrantes brasileiros em massa e a tentativa de corrupção de um ministro de Cabo Verde.

"André Ventura e a mulher, Dina, mais um punhado de dirigentes de topo do Chega, numa lancha rápida de Lagos até à cidade marroquina de Tânger, que seria a ponte até ao exílio na Costa do Marfim. O objetivo era Ventura fugir à prisão e contornar, na clandestinidade, a já sentenciada ilegalização do partido em plena pandemia. É com esta insanidade coletiva que começa o livro “Por Dentro do Chega”.

A fuga para Tânger nunca chegou a acontecer, mas o plano existiu e André e Dina chegaram mesmo a refugiar-se “borradinhos de medo” na quinta de luxo de Arlindo Fernandes em Lagos, segundo contou este empresário admirador de Salazar. Arlindo Fernandes subiu a pulso no Chega, mas, como muitos, desencantou-se quando viu um partido podre (...)


O Chega foi fundado em 2019 para “limpar Portugal” e adotou, em 2021, no Congresso de Viseu, o lema de Salazar “Deus, Pátria e Família”, ao qual acrescentou “Trabalho”. A fuga para Tânger é exemplo de como os primeiros três anos seriam encharcados de boatos que eram gasolina para a guerra civil interna. Os telemóveis eram a principal arma e Ventura acabou com a rédea solta. Decretou que quem dissesse mal dele ou do partido, em público ou privado, seria suspenso.


ESFARRAPAR A OPOSIÇÃO INTERNA


"Para agilizar as expulsões sem contraditório, Ventura criou a Comissão de Ética liderada pelo deputado Rui Paulo Sousa que suspendeu ou expulsou mais de 100 militantes, quase todos opositores internos. “Havia decisões tomadas antes de as analisarmos”, revela Carlos Monteiro. Ao fim de dois anos, o Tribunal Constitucional declarou a Comissão de Ética ilegal. Mas o objetivo de esfarrapar a oposição interna já estava alcançado.

Miguel Carvalho não tem “qualquer dúvida” que esse será o trato a dar às oposições se Ventura chegar ao poder. “No Congresso de Coimbra, uma das declarações que ele faz, naquela estratégia de namoro/arrufo com o PSD, é que queria ter quatro pastas e uma delas era o Ministério da Administração Interna. Um partido com estas práticas que tome conta do MAI, ainda que seja só essa pasta, é absolutamente assustador. Nós estaríamos perante a concretização de um Ministério do ‘Big Brother’”

CASOS E CASINHOS

"Muitos dos que se envolveram no Chega, financiadores ou não, desencantaram-se com o partido. Mais de metade dos vereadores eleitos deixaram de se rever na estratégia. Entre os vários entrevistados há sempre um aspeto comum: o Chega pratica dentro de portas aquilo que promete combater fora delas.

Um vasto rol de “casos e casinhos”

Aos vários “casos e casinhos” já conhecidos, Miguel Carvalho junta-lhe outros como o da fatura que Pedro Pinto deixou por pagar nos Bombeiros Voluntários de Beja, a da pensão de alimentos que Rui Paulo Sousa prometeu pagar quando fosse eleito deputado, a das dívidas que Diogo Pacheco de Amorim tinha quando entrou no Parlamento. Vários dos 60 atuais deputados do Chega estavam na lista negra do Fisco poucos dias antes de serem eleitos e outros refizeram a vida com a entrada para o partido.


Entre os mais próximos de Ventura não faltam cadastros iguais aos bandidos que o líder garante combater, sem que os expulse, como promete. Hélio Filipe, que é militante do Chega, guarda-costas de André Ventura e namorado de Rita Matias, foi condenado a dois anos de pena suspensa por espancar e roubar um homem. No mesmo processo, não foi provada a acusação de sequestro e extorsão. Na semana passada, foi o segurança pessoal de Ventura na incursão pela manifestação de imigrantes.


Enquanto controlou as despesas do cartão de crédito do partido, Nuno Afonso contabilizou abastadas refeições para Ventura e os seus mais próximos, com digestivos “à la carte” e estadias em hotéis, além de um carro topo de gama para uso do presidente. As noites de copos em casas de meninas eram conhecidas. Na sede, as noitadas eram umas atrás das outras. “Era um cenário típico de final de noite num bar de terceira categoria”, descreveu Nuno Afonso, também ele autor de um livro sobre os bastidores do Chega (“Ontem éramos o futuro”, 2025).


À “Notícias Magazine”, Miguel Carvalho distingue o eleitor do Chega dos seus dirigentes, pois o partido cresceu à custa de quem se desacreditou ou se sente abandonado pelo sistema político-social e pelos serviços públicos básicos como os CTT, a escola ou o centro de saúde: “Se houver um político que não se cinja às redes sociais e for por esse país fora, de porta a porta, fazer um esforço descomunal, para ouvir e tentar perceber, e que seja absolutamente fiel à palavra dada, aí o Chega não terá grandes hipóteses, nem com redes sociais”.


Até lá, Ventura será o que as massas quiserem que ele seja, como demonstra Miguel Carvalho. Qual camaleão que sempre aparece para salvar as almas do caos das circunstâncias, algumas de fabrico próprio. Ele é, se for preciso, o seminarista mais promissor que deixou de ser padre porque encontrou o amor; o dedicado académico progressista, preocupado com os direitos humanos, que se distingue na sala de aula para agradar aos professores; o mais zeloso inspetor do Fisco e combatente dos paraísos fiscais que mais tarde lhe vão pagar a campanha; o humanitário cronista de jornal que apela a que se acolha “o maior número possível de migrantes” (2015); o enraivecido megafone dos benfiquistas em horário nobre na CMTV; o messias dos crentes, católicos ou evangélicos; o farol dos desencontrados".


REVISTA VISÃO:


"Finalmente, o Chega contrata o alugar de um Renault Talisman 1.5 dCi Zen por 36 meses, para o serviço do líder, a 400 euros mensais. Fernanda Marques Lopes, primeira presidente do Conselho de Jurisdição do partido, viu-o chegar com Luc Mombito (funcionário do Chega) ao volante. “Olha lá, André, compraste um carro para o partido?” O líder explicou: “É renting.” Mas a advogada insistiu: “E o conselho de auditoria não tem de saber?” O líder, sempre, ao longo do livro, e em diversos episódios, com pouca tolerância ao escrutínio interno, começou a impacientar-se: “Sou presidente, posso comprar o que me apetecer, não vou pedir autorização para comprar uma mesa ou um carro!”


SEMPRE A MENTIR


A fuga para a frente, sempre que Ventura é questionado, reflete-se também nos grandes temas. Ainda na semana passada, depois de ser desmascarado na “gaffe dos hambúrgueres”, contra-atacou, falando – mais uma vez, falsamente, como ficou demonstrado – de mais de 1500 viagens do Presidente Marcelo ao estrangeiro. Condenado por difamação no caso da família Coxi (do Bairro da Jamaica, a quem chamou “bandidos”) com sentença confirmada nas instâncias superiores, já após recurso, disse, na AR, em outubro de 2024: “Fui a tribunal sempre que me acusaram de difamação, racismo, discriminação. Venci em todos os processos.” Como sempre, estava a mentir.


Jornal PÚBLICO:


Chega: sexo, mentiras e Deus




Miguel Carvalho recolheu centenas de testemunhas, de dirigentes e militantes do Chega. Muitos, certamente sem conhecerem a teoria de Bannon, apontam essa explicação “Ajudei a nascer o Chega porque acreditei que era algo que Deus queria que eu fizesse. Entretanto, o André revelou-se um Saul e não um David. É um grande actor,” diz Lucinda Ribeiro, a mulher nascida em Meimoa, Penamacor, que organizou o crescimento do Chega nas redes sociais. A seu lado trabalhava outra mulher, de origem social bem diferente: Patrícia Sousa Uva gosta de se chamar a si própria de “dondoca”. O seu testemunho sobre Ventura também revela uma personagem construída: “É uma mistura de padre com chico-esperto do futebol de Mem Martins.”

O grupo que geria as redes sociais de Ventura incluía ainda Gerardo Pedro, de Santarém. “Via-o a ralhar na CMTV, no ‘Rua Segura’, e deixei-me ir naquela conversa, era música para os meus ouvidos…” Hoje, Lucinda, Patrícia e Gerardo deixaram de se rever na personagem. “Sinto vergonha de ter andado nisto. Não é o que quero, nem para a minha filha… Este homem não pode governar o país. Não pode”, diz Gerardo Pedro. Mas o seu trabalho (muitas vezes de sapa, com perfis falsos, montagens e difamações sobre outros políticos) permitiu a Ventura libertar-se da sua ajuda. O líder é a personagem, como revela o livro: 80% dos fundadores do Chega já saíram do enredo (...)

Só na região de Lisboa há mais de mil igrejas evangélicas. As mais pequenas têm menos de 100 pessoas, enquanto as maiores (como a IURD ou a Igreja Maná) organizam muitos milhares. Miguel Carvalho aponta alguns nomes curiosos de congregações: “Assembleia de Deus Fogo para a Europa”, “Igreja Baptista Cristo Vive em Células”, “Igreja do Avivamento em Portugal”, ou “Igreja Evangélica Bola de Neve”.


Estas igrejas são espaços comunitários, raros, nas nossas sociedades, quando quase todas as formas de organização (incluindo a Igreja Católica, os sindicatos, as associações culturais) estão em crise. No início deste século, os evangélicos representavam 5% da população brasileira, sendo agora quase um terço dos 212 milhões de habitantes do Brasil. Ricardo Marchi, observador (muitas vezes participante) do Chega é citado por Miguel Carvalho: “Muitos evangélicos comprometeram-se com o Chega desde o início, compartilhando vídeos e textos de fiéis brasileiros contrários à agenda da esquerda (principalmente política de género e mobilização LGBTQIA+).”

Ventura deixou nas redes o convite: “O Chega é a religião dos portugueses comuns”; “Nós somos como aquelas seitas religiosas: fortíssimos”; “Sou muito religioso e acredito que o que me aconteceu a mim e ao Chega na História de Portugal, desde o meu percurso de comentador até ao Parlamento, é um milagre”; “Quero todas as igrejas cristãs com o Chega. Todas. Sem medo nem preconceito”; “Deus no Comando!”

Em Por Dentro do Chega, Miguel Carvalho detalha as relações de Ventura com magnatas dos media (Marco Galinha e Mário Ferreira), com vendedores de armas, industriais e donos das maiores herdades do país. E, ainda assim, é visto como o político que quer acabar com o “sistema”. Nas páginas de Miguel Carvalho, constatamos que grande parte dos dirigentes, deputados e financiadores do Chega são investidores e negociantes de imobiliário. O preço das casas bate recordes e cria uma crise social profunda, mas o Chega é o partido que mais sobe nas eleições. O próprio André Ventura, imediatamente antes de se dedicar à política, aconselhava candidatos a vistos gold em negócios de compra de prédios. “Ventura provou que não é anti-sistema, é o próprio sistema”, critica uma antiga candidata do Chega em Braga.

(...)

Miguel Carvalho recolheu depoimentos que ilustram este fervor escatológico em Lisboa. A senhora que limpava a sede do partido revela que “por vezes a sede parecia uma taberna! Rasca! Enfrascavam-se de uma maneira… Se esta gente governasse o país, eu emigrava…

CORREIO DA MANHÃ

“Ventura parece ter um beliche nos estúdios de TV”



O Chega esteve envolvido em polémica desde a fundação. O livro explica, com testemunhos em ‘on’, o caso das assinaturas falsas para a constituição do partido. Face às evidências, porque é que este processo foi arquivado?

Não sou eu que devo explicar isso. O Ministério Público fez as suas diligências. E o processo acabaria arquivado, não como o Chega diz, mas apenas porque não se conseguiu identificar a pessoa que decidiu isto tudo, o autor dos crimes. Mas as assinaturas falsas existiram. Estranho, diria até escandaloso, é que André Ventura foi identificado como a pessoa que recolheu grande parte das assinaturas, que pagou a recolha das assinaturas, mas nunca foi ouvido no inquérito.

Há mais casos polémicos no livro...

Sim, e alguns, na minha opinião, têm relevância criminal. Como o das gravações ilegais no partido, por exemplo. Ou como foi feito o financiamento do partido, descrito por pessoas que estavam no centro da ação política do Chega. Mas, lá está, não sou eu que devo fazer essa avaliação. O livro está à venda ao público (...)

A questão das gravações só agora foi conhecida...
É, para mim, a questão mais grave. As gravações ilegais no partido terão surgido para afastar opositores internos. Não sei se as práticas continuam, mas, até 2021, foram feitas, colocando militantes contra militantes, dirigentes contra dirigentes, com a cumplicidade dos dirigentes nacionais. Perante estas práticas, pergunto: como será, amanhã, se o Chega for governo, se tomar conta do Ministério da Administração Interna?

Em 2020, muitos achavam que as minhas preocupações eram distopia. Agora, acho que isso é verosímil. Para mais, quem governa adotou, em parte, a agenda do Chega em vários temas. A AD quase se tornou o braço político do Chega. E o Chega quase se transformou no “braço armado” da AD. O partido de André Ventura anda a promover políticas que, a seguir, a AD vai aplicar. É um sucesso para o Chega.

No livro, critica a forma como a comunicação social levou Ventura ao colo...

Quase parece que Ventura tem beliche nas redações e estúdios das TV. Há uma espécie de “SOS: Chama o Ventura!” quando as audiências estão em baixo.

Hoje há grupos (como o 1143 de Mário Machado) que se sentem legitimados pelo discurso do Chega

E, para mais, isso é masoquista. O Ventura, várias vezes, faz ‘bullying’ aos jornalistas e à própria estação, transformando esses momentos em clips para as redes sociais. É algo que só se explica com o esboroar dos critérios editoriais dos media portugueses.


Acha que o Chega contribuiu para normalizar o discurso de ódio em Portugal?

Claramente. As pessoas começaram a perceber que este discurso de ódio era ‘mainstream’. Dizem: “Se há mais 10, 100, mil pessoas a dizê-lo, então, eu também posso dizer, não devo estar errado.”


No último capítulo do livro, descreve como o Chega é o partido mais popular entre os jovens. É preocupante?

Sim, mas, há uns anos, muitos jovens também achavam que era ‘cool’ ser do BE - que, atenção, tem um projeto político muito diferente do Chega, progressista e humanista –, também por razões disruptivas. No caso do Chega, importa destacar o papel da Rita Matias, que deu muitos seguidores e eleito- res jovens ao Chega. O Ventura e a Rita Matias fazem uma dupla que funciona bem, com aqueles vídeos nas redes sociais, fanaticamente consumidos pelos miúdos. E sempre que a Rita Matias visita uma escola, os alunos entram em ebulição – atrai os filhos das elites, mas também jovens de origens humildes, com um discurso simples, básico, por vezes mentiroso, mas que “entra” muito facilmente (...)


Também há sinais positivos. O que se tem revelado nas escolas é que as miúdas, de forma geral, são menos permeáveis às narrativas do Chega. Regra geral, conseguem refletir mais sobre certos temas – como a sexualidade, feminismo, violência, etc... –, são mais maduras, agem menos em grupo, têm capacidade para pensar pela própria cabeça. Muitas pessoas que trabalham nas escolas acham que este é o caminho para combater o extremismo: o futuro pode começar pelas mulheres.


NOTÍCIAS AO MINUTO



"Um grupo de dirigentes reuniu-se numa casa, em Setúbal, elaborou um documento com imensas perguntas – creio que até ultrapassava a centena – enviadas à direção, em que se questionava o financiamento, o que é que o partido fazia ao dinheiro, porque andavam sempre em jantares e em viagens. Aliás, as pessoas que se reuniram ameaçaram enviar aquilo para o Ministério Público (MP). A ideia de que o partido podia ser investigado e ilegalizado a qualquer momento, ou por supostos financiamentos externos, ou por ter no seu seio várias pessoas que eram oriundas de movimentos neonazis e mais violentos, criou um clima de absoluta paranoia que o Chega vai explorando até aos dias de hoje. O próprio Ventura várias vezes aludiu a situações ou episódios em que achava que o objetivo dos poderes, sejam eles quais forem, era miná-lo, porque ele luta contra o sistema. A ideia de que o partido está permanentemente sob vigilância do regime, à espera de um pretexto para o eliminar, também ajudou a unir internamente, com o tempo.

É a receita de Donald Trump e de Jair Bolsonaro, e viu-se agora também na questão dos hambúrgueres… Onde é que isto nos deixa enquanto jornalistas?

É uma resposta para uma tarde. Achámos, de uma forma geral, que isto nunca nos aconteceria. O próprio António Guterres tinha dito, uns anos antes da eleição de André Ventura, que o populismo nunca venceria em Portugal, porque tínhamos uma tradição imune a isso. Cá estamos. A própria fragilidade da generalidade dos órgãos de informação em termos de recursos humanos, técnicos e financeiros – para mim o pior período do jornalismo em democracia, e já passámos por muitos – não permite ter jornalistas disponíveis, como era normal na fase pré-Internet, a acompanhar quotidianamente um determinado partido, criando fontes, com tempo, confiança. É verdade que não tínhamos um partido como este. Tivemos o Partido Renovador Democrático (PRD). No início, em 1985, também veio com um discurso muito moralista, a falar de cima da burra, como se costuma dizer, em relação ao regime, mas o PRD era profundamente democrático nas suas práticas, e até na sua postura na Assembleia da República. Portanto, achámos que não nos aconteceria, estamos frágeis para acompanhar, estávamos já na altura bastante permeáveis a tudo o que gerasse fogo nas redes sociais e fosse disruptivo. Não parámos para pensar e foi lenha que juntámos.

Quando comecei a acompanhar o Chega, já tinha feito uma reportagem, que também está no livro, por alturas do fracasso do Basta, com jovens de alguns movimentos de extrema-direita, nacionalistas, identitários, a quem Ventura não dizia grande coisa. Eram jovens, dentro daquela área ideológica, bem estruturados, com ideias muito firmes em relação a determinados temas, e isso despertou-me para o Chega. Quando Ventura é eleito, aí sim, dedico-me [ao Chega], mas eu era um privilegiado. Estava numa revista [a Visão] que, apesar de já estar na sua fase descendente, dava-me três meses para andar entretido com aquilo, sem pensar em mais nada. Fazia algumas coisas pelo meio, mais urgentes, mas, quando acabava esse trabalho para a edição X, voltava ao Chega. Quando me perguntaram se queria ficar com isso, eu disse, 'ok, mas preciso de três meses; quero almoçar com eles, quero jantar com eles, quero conhecer isto'. Comecei a ir a tudo o que era eventos. Depois, veio a pandemia. Mantive os contactos telefónicos, mas já com alguma dificuldade, porque alguns não queriam falar ao telefone; estavam paranoicos que o Governo podia ouvir, coisas assim. Retomei quanto a pandemia abrandou pela primeira vez e isso foi absolutamente essencial para chegar a este livro. Na altura, sobretudo a partir da eleição de Ventura, já o Chega começava a contaminar os jantares de família e de amigos, e toda a gente falava disso. Levei muito nas orelhas, não só de colegas, mas de pessoas que acompanham a realidade política, que diziam, 'estás tolo, daqui a uns meses a malta vai perceber que isto não faz sentido nenhum e acaba já ao virar da esquina'. Viu-se.

A Maior Ameaça à Democracia


 
"O crescimento da ignorância é hoje a maior ameaça para a democracia e a ignorância cresce exponencialmente todos os dias". (Pacheco Pereira no programa "Vencidos" da Antena 1, que recomendo ouvirem o programa todo. 

quinta-feira, 18 de setembro de 2025

Mais uma Sardinhada de Carapaus

 A bolsa argentina é a pior do mundo. Para comemorar o feito do seu herói, Javier Milei, a Iniciativa Lacoste vai fazer mais um arraial, mas atenção!, não é um arraial qualquer. É um daqueles em que haverá sardinhada de carapaus!


A sardinhada de carapaus:


sábado, 13 de setembro de 2025

Sinistra Última Fotografia

Reparei agora a apagar fotografias que esta foi a última fotografia que tinha no telemóvel, tirada na casa onde vivi os últimos trinta anos.

quinta-feira, 11 de setembro de 2025

Conversas Improváveis (88) - Pegar numa Caneta e Unir Constelações


 Durante a tarde uma amiga mandou-me uma foto de uma parte do corpo.

Agora à noite:

"Eu tenho pintas no corpo todo. Dá para pegar numa caneta e ir ligando as constelações 

Eu: Que coisa tão bonita, vou tomar nota e um dia digo isso a uma gaja para a impressionar!!

domingo, 7 de setembro de 2025

Devemos Prestar Mais Atenção no que Diz Paulo Raimundo

 Em meados de Julho, Paulo Raimundo preveniu o presidente da república, Marcelo, que o país estava "preso por arames". 



Um mês e pouco depois percebemos que esses "arames", nem sequer estavam bem presos.


O país está completamente destravado, a caminho do precipício. Percebemos que Moedas tinha razão: "Lisboa é uma cidade insegura", mas não é por culpa dos imigrantes, é sim, por causa do presidente da câmara municipal, que de forma tão lesta pediu a demissão de Medina, mas agora, quando lhe toca a ele, agarra-se ao poder como uma lapa. 

Make Geração à Rasca Outra Vez

 Porque a Troika e o racionamento é quando o partido que tem escrito "social democrata" no nome quiser, e, como diz a Susana Romana no Jornal de Notícias "antes era uma sardinha para três, agora é o rolo de papel higiénico para três turmas"!

Se os alunos agora se quiserem agora limpar o cu na escola, que levem papel de casa!, e que aproveitem todo o stock que ainda guardam desde a pandemia! 

Já estou a imaginar a cena:

Hey, ó colegiuinha, estou mesmo a ressacar, não tens aí uma folha de papel higiénico que me arranjes? - 

- Vais fumar papel higiénico?

Não, pá, é para limpar o cu! Estou mesmo à rasca!

quarta-feira, 3 de setembro de 2025

A Sorte que Tens

Quando estiveres triste porque a vida não te corre bem, lembra-te das crianças que morrem de fome em Gaza ou das que são abatidas a tiro quando tentam arranjar comida.

Ou, ainda pior, lembra-te daquelas pessoas que perderam completamente o juízo e começam a dizer barbaridades como "o André Ventura diz as verdades". E percebes logo a sorte que ainda tens.

domingo, 24 de agosto de 2025

O Nosso Amor Nunca Morrerá

 

"Acordado ao crepúsculo
Suspenso sobre dentes farpados
Línguas insípidas
Rasgam a baía
Esculpindo um sorriso
Tento gritar
Mas os meus pulmões colapsam
Lábios trémulos
Formam súplicas mudas
Estou desonrado
Tu não estás apagado
Traçaram uma linha
Rabiscaram o nome deles
Não é o mesmo

Acordado ao amanhecer 
Membros entrelaçados 
O cheiro de fumo 
E o ar do verão 
Os nossos pulmões partilham 
O primeiro fôlego 
E o suspiro “O nosso amor nunca morrerá”
O sono desfaz
Estes nós no meu estômago
E devolve
O fumo e aquele verão
Os nossos pulmões partilham
O primeiro fôlego
E o suspiro
“O nosso amor nunca morrerá”


Disgraced - Cairiss (2016)

Outrovertido ou Antissocial Sociável

Sempre me considerei um antissocial sociável. É estranho porque não sou introvertido, bem pelo contrário! mas depois não gosto nem um pouco de festas e ajuntamentos ou até de muito barulho. 

Não sou propriamente envergonhado, sou até muito sociável e tomo a iniciativa. Sempre me achei um pouco estanho, mas, afinal, parece que há muitos outros por aí, tal como eu e agora até lhe arranjaram um nome, porque há uma necessidade muito grande de meter as pessoas dentro de gavetas.

O artigo é do The Guardian "Don’t like joining in? Why it could be your superpower" publicado hoje e a propósito também do livro "The Gift of Non Belonging" do psiquiatra Rami Kaminski.

Este texto também me lembrou de uma pessoa que chegou a dizer-me, quando eu me queixava que estava sozinho, que se sentia sozinha no meio da multidão. 

"Não consigo explicar. Ele é um doce. Um rapaz lindo, por dentro e por fora, e tão brilhante.” Foi assim que começou, há alguns anos, uma sessão com N, uma paciente minha de longa data. O filho dela, A, era um adolescente, e apesar de vir de uma família calorosa, amorosa e com pais atentos, tinha começado a ter dificuldades sociais.

Ele não estava a ser vítima de bullying, nem era excluído na escola. Não estava deprimido, mal-humorado ou ansioso. Na verdade, era popular, querido e estava constantemente a ser convidado para festas, jogos de basquetebol e convívios com grupos de jovens. O problema era que recusava todos esses convites – e N não percebia porquê.

Três semanas depois, sentei-me com A no meu consultório. Pedi-lhe que descrevesse a experiência de ir a festas e outros eventos sociais. “Sinto-me estranho”, disse ele, “como se não fizesse parte daquilo, o que é esquisito porque são todos meus amigos. Sei que gostam de mim e que ficam contentes por eu estar lá, mas continuo a não me sentir ligado. Só me sinto sozinho ou aborrecido quando estou com muita gente, e não quando estou com um ou dois amigos próximos ou quando estou sozinho.” Depois acrescentou: “Não gosto de dizer estas coisas porque faz-me soar como um extraterrestre. Acha que há algo de errado comigo?”

Não achava. Nos meus mais de 40 anos como médico e psiquiatra, trabalhei com líderes mundiais, artistas e profissionais no topo das suas áreas. Muitas vezes, surgia a mesma descrição de vida que A me dera.

São pessoas que preferem sempre jantar a sós com um amigo a participar num jantar de grupo. Quando têm de estar em grandes reuniões, ficam de lado, em conversa profunda com uma pessoa, em vez de “andar a circular”. Preferem fazer trabalhos individualmente do que em grupo, detestam desportos colectivos e acham as tradições e rituais da vida comunitária – festas de empresa, cerimónias de graduação, até feriados religiosos – difíceis ou até desconcertantes. São solistas incapazes de tocar numa orquestra. E eu conto-me entre eles.

A grande maioria destas pessoas não tem diagnóstico psiquiátrico. Não são socialmente desajustados, nem socialmente ansiosos. Depois de muitos anos a observar e a investigar estas características, compreendi que estão enraizadas num traço presente em pessoas de todas as etnias, culturas e géneros: a ausência de impulso comunitário – em outras palavras, o não-pertencimento.

Ao começar a escrever sobre isto, procurei uma palavra que descrevesse este tipo de personalidade tão mal compreendido. A maioria conhece os conceitos de Carl Jung: extrovertido (“virado para fora”) e introvertido (“virado para dentro”). Mas a orientação fundamental do não-pertencente define-se pelo facto de raramente estar na mesma direcção que os outros. Assim nasceu o termo “otrovert” (em espanhol, otro significa “outro”).

Muitos otroverts passaram a vida a assumir que a falta de interesse por festas e outras actividades sociais significava que eram introvertidos. Mas diferem destes em vários pontos essenciais: enquanto os introvertidos tendem a ser reservados e calados, os otroverts, como o meu paciente A, podem ser muito sociáveis e expansivos. Um introvertido dificilmente seria a primeira pessoa a intervir de forma assertiva numa reunião de trabalho. Já um otrovert fá-lo sem problema. Ao contrário dos introvertidos, que ficam exaustos depois de horas de conversa com um amigo, os otroverts ganham energia com essas conversas profundas. Gostam de tempo a sós, mas não para recarregar baterias: sim, para evitar a solidão e desconexão que sentem quando estão rodeados de muita gente.

Para os pais, crianças como A são frequentemente fonte de preocupação. Como a maioria foi educada para ver a pertença a um grupo como pilar de uma vida bem-sucedida, muitos pressionam os filhos a serem mais “sociais”. Na escola, onde os professores são treinados para identificar alunos “mal-adaptados socialmente”, uma criança que não se junta aos colegas no recreio pode motivar chamadas para casa, consultas com psicólogos ou mesmo terapia.

A nossa cultura valoriza imenso o “participar”. Desde cedo aprendemos a partilhar, a brincar bem com os outros e a alinhar o nosso comportamento com o dos que nos rodeiam. Quando outros fazem fila, somos ensinados a ficar nela. Quando falam baixo, somos ensinados a baixar a voz. Ao longo da vida, este condicionamento social reforça um princípio cultural imutável: a pertença a um grupo é requisito para uma vida rica e plena. Para muitos, isto é verdade – mas não para os otroverts.

Damos tanto valor à comunhão que uma postura diferente é entendida como patologia. Otroverts são vistos como estranhos ou errados por preferirem a solidão ao convívio, e sofrem pressão de colegas bem-intencionados que querem a sua companhia ou temem que “percam” a diversão. O que não percebem é que, para os otroverts, há grande liberdade e realização em ficar à margem.

Com esta consciência, podemos permitir-nos recusar o que nos causa desconforto e abraçar quem realmente somos.

Nos últimos anos, tem-se falado muito sobre os níveis recorde de solidão, alienação e polarização da sociedade. Políticos, pensadores e até o cirurgião-geral dos EUA apontam o declínio da vida comunitária como causa principal de problemas de saúde mental, sugerindo soluções como sair das redes sociais ou reforçar as redes de apoio social. Em teoria, são ideias válidas. Na prática, falamos cada vez mais da importância da comunidade, enquanto nos tornamos mais solitários e divididos do que nunca.

Os otroverts não só estão preparados para prosperar neste mundo fragmentado e zangado, como também podem mostrar o caminho aos outros. A razão é simples: vêem as pessoas como indivíduos, não como membros anónimos de um grupo. É fácil odiar um colectivo abstracto que nos ensinam a ver como diferente, inferior ou ameaçador. É muito mais difícil generalizar a hostilidade quando olhamos para as pessoas como realmente são.

Porque não se sentem obrigados a alinhar com a posição ou opinião colectiva, os otroverts são independentes, criativos e pensadores “fora da caixa”. Abordam os problemas de ângulos novos, chegando muitas vezes a descobertas originais e contributos únicos. Como definem o sucesso pelo que alcançam, e não em comparação com outros, são também mais realizados criativa e profissionalmente.

Para um otrovert, aceitar a frase feita “Está tudo bem em seres tu mesmo” representa uma mudança monumental. Muitos viveram a vida toda a sentir-se incompreendidos. Quando finalmente percebem que não há nada de errado em serem como são, é uma catarse profunda.

Com esta compreensão, podemos dar-nos permissão para recusar o que nos incomoda, criar relações ainda mais fortes e autênticas com os que nos são próximos, e abraçar quem realmente somos. Descobrimos então aquilo que Friedrich Nietzsche, o otrovert por excelência, escreveu: “Ninguém pode construir por ti a ponte sobre a qual terás de atravessar o rio da vida, ninguém a não ser tu, tu mesmo.”

Hoje, A floresceu verdadeiramente. Com 24 anos, está a fazer doutoramento em psicologia, ficou recentemente noivo da namorada da universidade e mantém-se próximo dos amigos de infância. De certa forma, continuará sempre a ser observador de grupo e não participante pleno. Mas é participante total da sua própria vida: profundamente satisfeito com o que escolhe fazer e com quem escolhe estar. Num mundo feito para os que aderem, este é o caminho ideal do otrovert.

Dr. Rami Kaminski é psiquiatra e autor de The Gift of Not Belonging