segunda-feira, 19 de fevereiro de 2024

A Maldição do Skincare

 



"A cultura da dieta é algo que conhecemos há décadas. Refiro-me a essa norma higiénica que associa a magreza à boa saúde e que faz com que todas as pessoas que habitamos este século já tenham feito dieta alguma vez. Que todas tenhamos relacionado o nosso peso com a nossa autoestima em algum momento e que tenhamos distorcido a imagem da comida, chegando ao ponto de transformar o alimento em inimigo do corpo. Hoje sabemos que a cultura da dieta não só não é saudável, como também é perigosa para a saúde mental. Pois bem, agora que começávamos a condenar o bodyshaming [gozar alguém por causa da sua figura], chega a maldição do skincare [cuidado facial] para nos amargar a vida e o gesto.

Se a cultura da dieta desencadeou a anorexia, uma doença com clara inclinação de género, a cultura do skincare impôs-se entre as mulheres mais jovens, que já começam a sofrer de cosmeticorexia, o novo distúrbio que associa a compra de cosméticos à ansiedade. Atualmente, milhões de meninas seguem uma rotina de "cuidado facial" - conhecida como skincare - a partir dos nove anos de idade. A hashtag #SephoraKids acumula 400 milhões de visualizações no TikTok e mostra meninas a prescrever cosméticos como se fossem brinquedos. No entanto, o pior de tudo é que as mulheres adultas caíram na armadilha. Pensamos que algo que começa com a palavra "cuidado" não pode ser mau.

Que começar a "cuidar da pele cedo" poderia ser uma boa ideia para as nossas filhas. Por isso, quando pisas na Primor da Gran Vía ou na Sephora da rua Fuencarral em Madrid, tens que abrir caminho entre o frenesim consumista das adolescentes, pobres meninas entregues ao sacrifício facial, patrocinado pelos seus pais.

Assim, passamos de esculpir o corpo para esculpir o gesto, um exercício destinado ao fracasso e à deceção que temos maquilhado com a palavra cuidado. Para além da acne, das linhas de expressão, dos poros dilatados e dos dezenas de novos fantasmas que nos assombram a alma, a skincare é a última promessa de exteriorizar quem cada uma deseja ser. Por consequência, a cultura da dieta relaxou um pouco. Agora é possível que uma adolescente possa comer quando tem fome sem culpa, mas terá de conseguir adaptar o seu rosto ao ideal que tem de si mesma. Uma ambição condenada ao fracasso.

Porque quando uma adolescente (ou uma pessoa adulta) se olha ao espelho, não se está a ver a si mesma, mas sim como pensamos que os outros nos veem. O problema é que o que o nosso rosto e gesto dizem de nós é um poço psicológico sem fundo, já que as pessoas, nem quando crianças nem quando adultas, sabemos totalmente quem somos. E a pior forma de descobrir é olhar para o espelho. O problema da cosmética é que está a deixar de ser um disfarce para conter a promessa de uma revelação. O rosto, já sabem, é o espelho da alma. Mas que essa descoberta tenha de ser concedida por um produto cosmético ou por hábitos estéticos é uma loucura. A skincare é, portanto, na minha opinião, sinónimo de doença. A desgraça é que, mais uma vez, caímos na armadilha. Pensávamos que era uma forma de cuidado, mas era uma maldição, típico de nós.

Nuria Labari | El País

domingo, 18 de fevereiro de 2024

Achei Mas Não Quis Ver

 Estávamos como que meio entediados. Talvez mais ela do que eu, porque é da geração-estímulos-constantes. E vai daí lembramo-nos, ou melhor, ela lembrou-se de procurar pessoas do passado no telecrã. Procura este e aquele, e até encontrou um ex colega de trabalho, mas, já agora, já que estamos numa de procurar, vê se encontras aí a senhora minha ex...

E quem procura acha...


Não é de agora que, de vez em quando, pergunto-me o que terá sido feito da vida dela. E não é só dela, é de quase todas as pessoas que me foram próximas e que, por este ou aquele motivo, acabaram por seguir outros caminhos, bem distantes dos meus. 

Soube que casou, que teve filhos, e que, ao que parece (como a larga maioria das pessoas que casa) que se terá divorciado e, provavelmente passou a estar com outra(s) pesssoa(s), tal como eu fui estando ao longo destes anos todos.

Mas e da vida profissional, o que terá feito? Uma das frustrações na altura era, depois de ter sido a primeira pessoa da família a ir para a universidade, não estar a conseguir encontrar uma oportunidade de trabalhar na área em que se formou. É verdade que nunca baixou os braços, ia-se mexendo bem (e respondendo aos anúncios que eu lhe selecionava de jornais como Expresso, que comprava quase especificamente para o efeito) e antes até foi trabalhando e estudando, mas simplesmente as coisas não estavam a acontecer. 

Quem procura acha e a minha colega achou-a.

A profissão dela agora tem um nome todo pomposo, em estrangeiro e tudo que é para parecer mais moderno, e ainda por cima porque hoje em dia ninguém sabe inglês nem nada e assim impressiona mais, e ao que parece ela é chefia em empresa da área que estudou. E fiquei, sinceramente, contente que tenha atingido os seus objetivos profissionais.

A minha colega achou-a e vinha já para me mostrar mas eu não quis ver. Ainda deu para ver que tinha o cabelo curto (quer-me parecer que a única fase da sua vida em que teve os cabelos compridos foi enquanto namorou comigo) mas eu não quis ver mais do que esse vislumbre distante. Talvez porque vê-la agora num telecrã seria matar definitivamente a pessoa que eu conheci há quase trinta anos... 

Meses depois destas linhas que estavam aqui guardadas nos rascunhos (e eu devo confessar que tenho mais de 400 rascunhos guardados!) a minha colega recebeu novamente uma notificação da senhora em questão - sim, porque passou a seguir o seu perfil privado - e ainda que me tenha mostrado novamente a alguma distância, a verdade é que aquilo depois acabou por mexer comigo, mais do que deveria. 

Eu certamente não sou o Florentino Ariza nem ela é Fermina Daza, as personagens de Amor em Tempos de Cólera, que esperaram 51 anos para se acertar definitivamente, isto depois dela ter sido uma cabra e ter casado com outro. 

As coisas não se esquecem, estão simplesmente adormecidas e, por vezes, basta uma pequena ignição para trazer de novo tudo à tona. Nesse mesmo dia fui para casa, no carro, a remoer novamente esse passado já tão distante. E, de noite, e logo eu que quase nunca me consigo lembrar dos meus sonhos, acordei por volta das 4 e meia de um sonho, e apercebi-me que antes tinha estado a sonhar com ela, de novo, com os mesmos longos cabelos...

Ainda assim, se me perguntassem (e acho que a minha colega perguntou e acho também que outra pessoa próxima já me perguntou): se quisesses reencontrar alguém do passado, que ex namorada seria?

Bom, seguramente, não seria uma ex-namorada.

Seria certamente uma outra pessoa...

... que eu cá sei. 

Dia dos Namorados do Poliamor

 Esta semana que passou tivemos novamente a praga do dia dos namorados que, ainda por cima, calhou na mesma semana da outra praga que é o Carnaval.

Escusado será escrever (porque quem aqui me lê já conhece a minha opinião) que, por todos os motivos e mais alguns, acho o Dia dos Namorados uma verdadeira palermice e uma enorme falta de gosto e de originalidade. Cinquenta dias após a hipocrisia do Natal temos mais um dia dedicado ao comércio, para faturar prendinhas e jantares a rodos. É como se todos os casais do mundo fizessem anos nesse mesmo dia, tivessem que trocar prendas, ir jantar fora e dar a trancada da misericórdia. 

Mas porque me interesso por todas as formas diferentes que as pessoas têm de se relacionar, ocorreu-me a pergunta: e como funcionará nas relações poliamorosas? Como é o lado prático da coisa?


Para não complicar muito, vamos supor que eu tenho duas namoradas. Uma dessas namoradas tem outros dois namorados e a outra tem mais. Mas, como é lógico, estes três namorados das minhas namoradas também têm outras namoradas e, certamente também quererão jantar com elas... Muito facilmente temos dez ou vinte pessoas a namorar umas com as outras! 

E depois como é faz? Não dá para marcar dois ou três jantares na mesma noite com várias pessoas, primeiro porque não haveria tempo e depois porque só se janta uma vez! Então quê, marca-se um jantar para todos, estilo jantar da empresa? Acaba também por ser chato, porque depois eu quereria ficar junto das minhas duas namoradas, mas os namorados delas também quererão o mesmo. E depois da troca de prendas e do jantar? Faz-se uma orgia para todos ficarem satisfeitos? Mas e se algumas pessoas estão numa cena de sexo exclusivo só com uma pessoa, como é que é?

Ou é como nas famílias por altura do Natal e Passagem de Ano em que este ano passo o Dia dos Namorados com a namorada A e depois para o ano troco e passo com a namorada B? 

Admiro estas novas formas de amar mas, talvez por ser um gajo muito prático, intriga-me sobre como será que se faz a gestão destas pequenas coisa numa sociedade que está organizada de forma diferente e que, parece que o tempo é cada vez menor. 

O Problema deste País São os Ricos

O problema deste país não são os ciganos nem o Rendimento Mínimo. Nem os africanos ou os brasileiros que vêm para cá ser explorados na agricultura ou que por aí andam a transportar comida e dão milhões à Segurança Social para pagar os nossos subsídios de desemprego e as reformas de país mais envelhecido da Europa. O problema deste país são os ricos que, apesar de serem ricos, roubam o pouco que está destinado, exclusivamente, a todos aqueles que são verdadeiramente carenciados.

Jornal de Notícias | 2011

quarta-feira, 14 de fevereiro de 2024

Bem-Vindos ao Tecnofeudalismo

A propósito do lançamento que acontece hoje em Espanha do livro "Tecnofeudalismo", o seu autor, Yanis Varoufakis, escreveu um texto para o El País, que saiu no domingo passado para abrir o apetite para o livro e que nos deve fazer refletir a todos.


"Olhemos para onde olharmos, estamos a presenciar o triunfo do capital. Em armazéns, fábricas, escritórios, universidades, hospitais públicos, meios de comunicação, até mesmo no espaço, mas também no microcosmo das sementes patenteadas. Como ousaria, então, afirmar que o capitalismo morreu assassinado? Quem o matou? A resposta é deliciosamente irónica: o capitalismo morreu assassinado pela sua própria mão: pelo capital.

Se estiver correto, o preocupante não é o que a Inteligência Artificial (IA) nos fará no futuro, mas o que já fez: o capital tornou-se tão dominante e mutou para uma variante tão tóxica que, como um vírus estúpido, acabou por matar o seu hospedeiro, o capitalismo, para substituí-lo por algo muito pior.

Este novo capital mutante que matou o capitalismo reside na famosa nuvem, portanto chamemo-lo de capital na nuvem.

O capital na nuvem, claro, não reside verdadeiramente na nuvem, mas sim na Terra; reside em equipamentos ligados em rede, centros de dados, torres de telemóvel, programas, algoritmos baseados em inteligência artificial e no fundo dos nossos oceanos, onde se estendem inúmeros quilómetros de cabos de fibra ótica.

Ao contrário do que acontece com os meios de produção do capital tradicional, como motores a vapor ou robôs industriais modernos, que são meios fabricados, o capital na nuvem não fabrica coisas, mas é composto por dispositivos concebidos para modificar o comportamento humano. É isso que são a Alexa da Amazon ou o Assistente do Google: um meio de modificação de comportamento construído precisamente para isso. É uma máquina, uma peça do capital, que treinamos para nos treinar para treiná-la para decidir o que queremos. E, uma vez decidido o que queremos, a mesma máquina vende-nos diretamente, sem passar pelos mercados.

Para piorar, essa mesma máquina consegue que sustentemos a enorme rede de modificação de comportamento à qual pertence com o nosso próprio esforço, de forma voluntária e gratuita. Quando publicamos avaliações, valorizamos produtos ou partilhamos vídeos, diatribes e fotos online, estamos a ajudar a reproduzir o capital na nuvem sem receber um cêntimo pelo nosso trabalho. Em última análise, a máquina transformou-nos em servos da nuvem. Entretanto, nas fábricas e armazéns, os mesmos algoritmos que modificam o nosso comportamento e nos vendem produtos  usados — geralmente, através de dispositivos digitais no pulso do trabalhador — para fazê-los trabalhar mais rapidamente, dirigindo-os e monitorizando-os minuto a minuto.

Impressiona ver como o capital na nuvem consegue desempenhar cinco funções que antes estavam fora do alcance do capital tradicional. Captura a nossa atenção. Fabrica os nossos desejos. Vende-nos diretamente, sem passar pelos mercados tradicionais, aquilo que nos fez desejar. Fomenta o trabalho proletário nos locais de trabalho. E cria uma enorme mão de obra gratuita (os servos da nuvem).

Alguém se surpreende que os proprietários deste capital na nuvem — chamemo-los de nuvelistas — tenham um poder até agora inimaginável para obter uma mais-valia gigantesca dos proletários, um volume incalculável de trabalho não remunerado de quase todo o mundo e, dos capitalistas vassalos, umas rendas da nuvem inconcebíveis? Como é que não seriam muito mais poderosos do que jamais poderiam ter sido Henry Ford ou Rupert Murdoch?

"Um momento", dirão vocês. "Como é que Jeff Bezos é diferente de Henry Ford? Não são todos monopolistas?". Não. A Amazon.com não é uma empresa capitalista monopolista. No momento em que entramos na amazon.com, saímos do capitalismo. É verdade que é um local cheio de compradores e vendedores, então é uma enorme plataforma comercial, mas não é um mercado. O dono de tudo é um homem chamado Jeff, que é muito mais do que um monopolista.

Jeff não possui as fábricas onde são produzidos os artigos que os capitalistas tradicionais não têm outra opção senão vender na sua plataforma. O que ele possui é o algoritmo que decide quais produtos vemos, o mesmo algoritmo que nós treinamos para nos conhecer perfeitamente e nos combinar com um vendedor — que também conhece perfeitamente — de forma a que cada combinação tenha as maiores probabilidades de permitir a Jeff extrair a maior margem possível do vendedor por cada coisa que é comprada: até 40% do que pagamos.

A mente revolta-se perante uma exploração de tal dimensão e tão radicalmente nova. O mesmo algoritmo que ajudamos a treinar em tempo real para nos conhecer de alto a baixo modifica as nossas preferências e gere a seleção e entrega dos produtos que vão satisfazer essas preferências. Se duas pessoas escreverem "bicicletas elétricas" na amazon.com, obterão recomendações totalmente diferentes. É como se, num mercado ou centro comercial tradicional, as duas pessoas estivessem a andar uma ao lado da outra, olhando na mesma direção, mas vendo coisas diferentes com base no que o algoritmo de Jeff quer que cada uma veja.

Todos os que entram na amazon.com navegam num isolamento construído pelo algoritmo, como se estivéssemos num panóptico onde não podemos ver uns aos outros, apenas o algoritmo que tudo vê ou, para ser mais exatos, o que o algoritmo nos permite ver para tirar o máximo dividendo da nuvem, a versão atual da renda que os senhores feudais cobravam pelas terras aos seus vassalos e camponeses.

Isto não é capitalismo. Senhoras e senhores, bem-vindos ao tecnofeudalismo.

O capitalismo, não nos esqueçamos, tinha dois pilares: os mercados e os lucros. Claro, os mercados e os lucros continuam omnipresentes. Mas o capital na nuvem deslocou-os do centro do nosso sistema socioeconómico, empurrou-os para as margens e substituiu-os.

Os mercados, o meio onde o capitalismo se desenvolve, foram substituídos por feudos na nuvem, plataformas de comércio digital como a amazon.com ou Alibaba que, como vimos, parecem mercados, mas não o são.

E os lucros, que são o combustível do capitalismo? Bem, foram substituídos pelas suas antecessoras feudais: as rendas. Especificamente, as rendas da nuvem, uma nova forma de aluguer que se paga pelo acesso a esses feudos ou plataformas digitais.

Como surgiu o capital na nuvem? Nasceu no final dos anos noventa, quando a internet original, que era um bem comum — funcionava como uma zona livre de capitalismo —, essa internet 1.0, por assim dizer, caiu nas mãos das grandes empresas tecnológicas que estavam a surgir, as quais a privatizaram.

Quem pagou os trilhões de dólares que custou fabricar e acumular o capital da nuvem tão rapidamente nas mãos de alguns poucos nuvelistas? O surpreendente é que foram, sobretudo, os bancos centrais dos países do G-7. Como é possível? Bem, por acidente, ou, para ser mais exato, por culpa da crise.

Após o colapso do setor financeiro em 2008, os banqueiros centrais imprimiram nada menos que 35 trilhões de dólares para resgatar os bancos enquanto os nossos governos sujeitavam o povo a duras medidas de austeridade. Os capitalistas foram suficientemente astutos para prever que as pessoas não teriam um centavo e não poderiam comprar os seus produtos. Então, em vez de investir, levaram o dinheiro do banco central para a bolsa de valores e para os mercados de títulos, onde compraram ações, títulos e, de passagem, iates, arte, bitcoins, NFTs e qualquer "ativo" que conseguiram encontrar.

Os únicos capitalistas que realmente investiram em capital foram os donos das grandes tecnológicas. Por exemplo, nove em cada dez dólares investidos na criação do Facebook vieram desse dinheiro dos bancos centrais. Assim foi financiado o capital na nuvem e assim os nuvelistas se tornaram na nossa nova classe dominante.

Como resultado, o verdadeiro poder hoje não está nas mãos dos donos de maquinaria, edifícios, ferrovias, companhias telefônicas ou robôs industriais. Estes capitalistas terrestres ultrapassados ainda estão a obter mais-valias do trabalho assalariado, mas já não são os que mandam. Tornaram-se vassalos dos donos do capital na nuvem, dos nuvelistas. Quanto aos outros, voltámos à nossa antiga condição de servos e contribuímos para a riqueza e poder da nova classe dominante com o nosso esforço não remunerado, que se soma ao trabalho assalariado que fazemos quando temos a oportunidade.

Ainda não estão convencidos? Sim, é difícil abandonar a palavra capitalismo. Os liberais não são os únicos para quem é como a água para os peixes. Nós, socialistas, também precisamos sentir que o nosso propósito na vida é derrubar o capitalismo. É difícil aceitar que o capital nos ultrapassou e o substituiu por algo pior. De facto, os meus amigos de esquerda são os que mais tentam dissuadir-me e convencer-me de que sim, talvez o capital na nuvem seja importante, mas "isto continua a ser capitalismo, camarada".

Chamemos-lhe capitalismo rentista ou capitalismo monopolista, sugerem-me. Mas não é suficiente. O aluguer da nuvem não é como o aluguer do solo, porque exige um enorme investimento em novas tecnologias. E também não são rendas provenientes de um monopólio, porque Bezos e Zuckerberg não monopolizam mercados para vender o que produzem (como faziam Ford e Edison), mas sim substituíram os mercados e não estão interessados em produzir nada (ao contrário de Ford e Edison).

Que tal capitalismo de vigilância? Também não. Os nuvelistas não se limitam a utilizar algoritmos para nos lavar o cérebro em nome dos anunciantes num ambiente capitalista. Não, o capital na nuvem reproduz-se graças ao nosso trabalho gratuito, explora diretamente o trabalho assalariado e espreme as rendas da nuvem dos capitalistas vassalos em plataformas comerciais que não são mercados. Isto não é capitalismo, senhores.

Mas e a afirmação de que o tecnofeudalismo é parasitário do setor capitalista integrado nele? É verdade. Se os capitalistas convencionais se extinguirem, os nuvelistas desapareceriam, incapazes de cobrar rendas da nuvem aos fabricantes. E daí? Quando o capitalismo acabou com o feudalismo, os capitalistas passaram a ser parasitas dos senhores feudais, no sentido de que, sem terras privadas que produzissem alimentos, o capitalismo teria desaparecido. Agora, o setor capitalista tradicional também alimenta o tecnofeudalismo, mas os que dominam são o capital e as rendas da nuvem.

O conceito de tecnofeudalismo demonstra que o facto de os trabalhadores automobilísticos e enfermeiros se organizarem, embora continue a ser essencial, é insuficiente. Explica o que vai custar mobilizar-se contra o cartel dos combustíveis fósseis quando os nossos meios de comunicação funcionam graças a um capital na nuvem preparado para envenenar a opinião pública. Explica por que a transição para carros elétricos causou a desindustrialização da Alemanha, à medida que os lucros da engenharia mecânica de precisão são substituídos pelos dividendos que os proprietários do capital na nuvem obtêm ao observar as rotas e hábitos dos condutores. De repente, faz muito mais sentido a decisão de Elon Musk de comprar o Twitter, como interface entre suas ações de capital mecânico na Tesla e SpaceX e o capital na nuvem. A nova guerra fria entre os Estados Unidos e a China, especialmente desde o início da guerra na Ucrânia, é explicada como o reflexo de um confronto de fundo entre dois tecnofeudalismos com rendas da nuvem, um em dólares e outro em yuanes.

Não é alucinante? Todos esses avanços científicos incríveis, essas redes neuronais fantásticas e esses programas de inteligência artificial inimagináveis, para conseguir o quê? Para criar um mundo onde, enquanto a privatização e o capital de risco esvaziam o nosso ambiente de toda a riqueza física, o capital na nuvem dedica-se a esvaziar os nossos cérebros. Para que possamos ser donos individuais da nossa mente, devemos ser donos coletivos do capital na nuvem. Quando recuperarmos a nossa mente, poderemos trabalhar todos juntos para encontrar a maneira de criar um novo capital comum na nuvem. Será extremamente difícil, mas é a única forma de fazer com que os nossos dispositivos baseados na nuvem deixem de ser um meio fabricado para modificar o comportamento e se tornem um meio para a colaboração e emancipação humanas.

Bem-vindos ao Tecnofeudalismo | Varoufakis | El País | 11 de Fevereiro de 2024

domingo, 11 de fevereiro de 2024

Conversas Improváveis (80) - Quando a Geringonça do PSD-CH€GA Vier Isso Acaba


Há uns meses uma amiga perguntou-me se tinha interesse em ir ver um determinado concerto em meados deste ano. Como não sou muito de fazer fretes digo que não, mas, se precisar de companhia, é uma questão a ver-se, ainda que até lá, em meio ano, muita coisa possa acontecer!

"Daqui até Maio tem tempo... De qualquer forma é preciso arranjar bilhete.  Isso é que não vai ser fácil. Deve ser o caos no site, como habitual. Vou ver...

Sim, está tudo em crise mas há uma classe média que esgota tudo que é evento!

Deixa lá. Quando vier a geringonça PSD-CH€GA isso acaba".

quarta-feira, 7 de fevereiro de 2024

Conversas Improváveis (79) - Como se Cura uma Neura?


No refeitório da empresa noto que uma colega, em silêncio, está metida nos seus pensamentos e pergunto:

Que se passa Marisa? Estás bem?

Estou com a neura.

- Estás com a neura? 

Sim!

- "Como se cura uma neura?", pergunta a Juliette. 

"Fácil", respondo eu. "Com um vibrador"!

domingo, 4 de fevereiro de 2024

Danças Comigo Novamente?


 Jantar com os cães-grandes, que é como quem diz, com todas as chefias da empresa. Durante a tarde já tinham passado pela nossa loja. Ninguém deve ter reparado mas o meu apurado radar detetou imediatamente. Lá fora, ainda na rua, vi a trespassar o cabelo da N. a rodar, com um volume diferente do que eu tinha visto quando a conheci. "Mmm, cortaste o cabelo", pensei para com a minha braguilha. E por acaso foi logo algo que não pude deixar de reparar quando a conheci, aquele cabelão preto, pelo fundo das costas, ancorado pela curva das nádegas. 

Entretanto lá nos vieram cumprimentar: o diretor geral austríaco, o alemão responsável da logística, o húngaro cara-pálida com cabelo à Tintin, que, agora que penso nem sei bem o que é que ele faz na empresa!, bem como a sul americana de aspeto doce que está em Paris e que o meu colega acha que tem uma voz sexy. Todos vestidos de forma muito descontraída. 

E depois lá veio ela, que vive na Madeira. Não creio que eu tenha sido inconveniente, quando lhe disse: "deu um belo corte de cabelo" e, como é óbvio, ela não estava à espera de ouvi-lo. Na verdade nem foi assim um corte de cabelo tão grande. ela simplesmente escadeou o cabelo e dá a sensação de ter ficado com um pouco mais de volume. Mas eu acho que as mulheres gostam que reparemos nelas. Bom, e foi só isso. 

Mas, para dizer a verdade, a nossa vontade nem era muita de ir ao jantar. Os meus colegas até tinham cenas lá da religião deles e, no meu caso é sempre chato nem poder ir a casa e tomar banho. Tenho que me limitar a trazer uma muda de roupa e a lavar-me como um gato e a fazer tempo por ali até à hora combinada do jantar. E depois porque são sempre situações forçadas em que está sempre implícita uma certa dose de hipocrisia e subserviência. Desta vez até fiquei a fazer companhia à colega que fica sozinha na empresa na sua última hora de trabalho (porque assim preferiu) e, passado mais um bocado, também chegaram os meus colegas mais novos. 

De tarde os 'cães grandes' foram fazer um passeio pela cidade, enquanto que nós, os cães pequenos, ficamos a trabalhar. É a eterna luta de classes, como bem diria Marx. Mas a hora chegou e lá fomos nós a pé até ao restaurante que fica a poucas centenas de metros da nossa loja. 

Chegados ao restaurante, a nossa colega que fica até mais tarde e que reporta diretamente à menina que deu um corte de cabelo (e não ao nosso chefe cá do Porto) colou-se e ficou sentada em frente dela. Tudo certo. Elas falam imenso durante todos os dias mas nunca estão juntas Nós os três fomos para a outra ponta da mesa. Ao meu lado esquerdo não ficou ninguém, e em frente também não, o que deu imenso jeito porque ali ficou uma bela travessa de comida e era só abastecer para o meu prato! Os meus colegas ao meu lado direito e, na diagonal em frente, o alemão (de quem ouço falar todos os dias) e, ao seu lado, o tal carinha de bebé húngaro com cabelo à Tintim e o meu chefe anfitrião a meio com o restante pessoal. 

Fui falando com os colegas, mantendo-me outro tempo mais calado. Até que, mais à frente fui começando a falar com o alemão até porque, como seria normal, falou-se um pouco do trabalho e todos trabalhamos para o mesmo. O S. deve ter uns cinquenta e tal, cabelos brancos, compridos e apanhados num rabo de cavalo, olhos arianos azuis, óculos e uma barriga de trigémeos porque, como se sabe pelos estudos científicos mais recentes, a cerveja não faz engordar. E já me tinham dito que se calhar gostaria de conversar com ele. 

Disse-lhe que, normalmente, não sou calado e falo até de mais. Mas que não me sinto muito confortável com o inglês. Que entendo mais ou menos bem mas, porque não pratico e não falo em inglês com ninguém (ao contrário, por exemplo, do meu colega que fala muitas vezes com ele e outros estrangeiros) acabo depois por não me sentir confortável porque não sou extremamente fluente. Ao que ele me disse que na Alemanha têm uma expressão que é qualquer coisa como isto "learning by doing", aprender fazendo. Disse-lhe também, em jeito de curiosidade que há uma frase em alemão que ainda hoje me lembro da primeira namorada dizer: "es regnet heute", e ele confirmou "that's correct, it´s raining today"!

O S. é muito sequioso. Os copos bem grandes de cerveja desapareciam quase tão rapidamente quando chegavam à mesa. Já o húngaro de cabelo à Tintim preferia copos mais pequenos. (se calhar deveria ter avisado antes que não percebo nada de cervejas, e nem sei a diferença entre cerveja, finos ou grossos!). 

Acho até que conversa começou por ai. Foi o quebrar do gelo. Comecei por lhe dizer que sou um metaleiro estranho, porque não bebo bebidas alcoólicas, nem fumo ou tomo café. Nem fumas uma ervita?, perguntou-me! Não, nem isso!

E a partir daí lá fomos conversando, maioritariamente sobre heavy metal. Ele é um metaleiro da velha guarda, que gosta muito de Slayer, mas falou-me também de Ozzy Osborne bem como de outras bandas, e também gosta bastante de Nirvana (que não é metal). Falou-me de quando foi ver um concerto de AC/DC exclusivo para mil pessoas e em que era preciso apresentar o passaporte e conferir com o número do bilhete e que ficou a um metro da banda. Mas agora não tem ido muito a festivais porque, e até ele, alemão, com um salário bem diferente do meu, acha que está tudo demasiado caro. 

Apesar do cansaço, e também do sono, até acabou por ser uma noite agradável. Quase se fez ali uma amizade circunstancial. O alemão sugeriu-me uma banda alemã de punk rock: Broilers. 


E a primeira música que ouvi foi esta: Tanzt Du noch einmal mit mir? que em português quer dizer qualquer coisa como: "danças comigo novamente"?