domingo, 16 de janeiro de 2022

O Altruísta

Muito sucintamente, "O altruísta", romance de 1884 de Bernard Shaw, (An Unsocial Socialist, no original) o primeiro livro que li este ano, é uma sátira, a história de Sidney Trefusis que herda um império mas que, percebendo que tudo foi roubado pelo seu pai, que escravizou os trabalhadores, acaba por desprezar a sua classe e privilégios em que nasceu e abraça a causa socialista na luta e defesa dos mais pobres. Para isso, por vezes assume assume uma outra identidade, Smilash, um humilde e cómico trabalhador, para se aproximar das pessoas que entende e tentar persuadi-las à sua causa. 

"A sociedade inglesa moderna, a parte brilhante, a esfera na qual nasci , afigura-se-me tão corrompida como o consentem o sentimento da  sua cultura e a sua ausência de honestidade . É uma multidão de hipócritas que admira a mentira, detesta a realidade, garatuja, palreia, procura a riqueza, os prazeres, a celebridade. Já perdeu o temor do inferno e não substitui este temor pelo amor da justiça. Por isso ela deseja sòmente a parte de leão das riquezas arrancadas, pela ameaça da fome, das mãos das classes que as produzem.


Tu sabes o que sou, segundo a descrição convencional: um senhor que tem muito dinheiro. E conheces a origem de todo este dinheiro e do meu nascimento ilustre?

Vou dizer-te por que razão somos ricos. Meu pai era um homem de Manchester, espertalhão, enérgico e ambicioso, para quem uma troca qualquer era uma transação em que um homem deve ganhar e o outro perder. O seu objetivo na vida foi fazer tantas trocas quantas lhe foi possível, mas sendo sempre a ganhar (...) Além disso o meu pai adquiriu conhecimentos sobre a manufatura do algodão. Economizou dinheiro, pediu mais de empréstimo sobre a sua reputação de homem de homem conhecedor de negócios e estabeleceu-se por sua conta, como mais tarde me contou. Comprou uma fábrica de algodão bruto (...)

Quando o meu pai começou a trabalhar por sua conta, havia muitos homens em Manchester que gostariam de trabalhar como ele, mas esses homens não tinham fábricas onde trabalhar, nem máquinas, nem algodão bruto, pela simples razão de que esta planta indispensável, como os materiais para a produzir, tinham sido açambarcados por outros homens chegados antes deles. Encontravam-se portanto com o estômago vazio, os braços trémulos, as suas mulheres e os seus filhos cheios de fome, num lugar chamado a sua terra, onde igualmente cada parcela de terra e todas as origens possíveis de subsistência estavam em mãos de outros. Em circunstâncias tão lamentáveis, os pobres diabos dispuseram-se a mendigar o acesso à fábrica e ao algodão bruto por um preço que pelo menos lhes permitisse viver. Meu pai acedeu nas seguintes condições: os homes deveriam trabalhar ativamente desde manhã cedo até entrada a noite, para criar um valor novo ao algodão que manufaturavam. Com o valor assim criado por elesdeviam indemnizar meu pai do que lhes tinha fornecido: abrigo, gás, água, máquinas, algodão, etc., e pagar-lhe os seus servios como diretor, administrador e vendedor. Mas, depois disto tudo pago, ficava um saldo proveniente do trabalho desses homens exclusivamente. E o meu pai impôs: "Vocês retiram deste saldo o suficiente para não morrerem de fome e fazem-me presente do resto para me recompensar do mérito de que dei provas economizando dinheiro. É esta a minha proposta. Na minha opinião é justa e sere para encorajá-los a adquirir o hábito da economia. Se não concordam com o meu ponto de vista procurem um fábrica e algodão para vocês, que na minha fábrica e no meu algodão não põem as unhas". Por outras palavras podiam ir para o diabo e morrer de fome, porque todas as outras manufaturações pertenciam a pessoas que não ofereciam melhores condições (...)

Em seguida comprou mais máquinas e como as mulheres e crianças podiam fazê-las trabalhar tão bem como os homens, mais barato e eram mais dóceis, despediu cerca de sessenta por cento das suas "mãos" - era assim que chamava aos homens - e substituiu-os pelas mulheres e crianças, que ganhavam dinheiro para ele mais depressa do que até então (...)

Numa palavra, se Josephs Tréfusis, membro do Parlamento, que morrer milionário no seu palácio de Kensington, tivesse sido um ladrão de estrada, eu não o detestaria mais a ordem social que tornou a sua carreira não só possível, mas eminentemente honrosa aos olhos dos seus semelhantes. A maior parte dos homens esforça-se por imitá-lo na esperança de se tornarem ricos e ociosos nas mesmas condições. É por isso que lhes volto as costas. Não posso tomar parte nos seus festins sabendo o que estes custam de miséria humana e vendo que magra margem de humana felicidade eles produzem. Qual é a tua opinião a este respeito, meu tesouro?

"O Altruísta" - Bernard Shaw (1884)

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