sábado, 16 de janeiro de 2021

Diários de Motocicleta

Em 1952, Ernesto Guevara (Gael García Bernal) tem 23 anos e estuda medicina. Quase no fim do curso, deixa a sua casa em Buenos Aires para seguir numa viagem com o amigo Alberto Granado (Rodrigo de la Serna). Os dois partem na temperamental Norton 500, a mota de Alberto a que chamam "La Poderosa", para realizar um sonho comum: explorar a América Latina. O mapa de viagem que desenham é ambicioso: leva-os de Buenos Aires à Venezuela, passando pelos Andes, pelas costas do Chile e pelas ruínas de Machu Picchu até Caracas, onde tencionam chegar a tempo do 30º aniversário de Alberto. Mas a viagem torna-se mais do que uma descoberta geográfica e conduz os dois amigos numa grande odisseia de descoberta interior. Os dois começam a questionar o valor do progresso dos sistemas da época, que exclui tantas pessoas, e ganham uma consciência de justiça e uma vontade de mudar o mundo para melhor. Enquanto Alberto regressa ao seu trabalho, agora com diferentes objectivos e perspectivas, Ernesto "Che" Guevara tornar-se-á num dos mais importantes líderes revolucionários do século XX.

Há filmes, livros (até pessoas) que nos passam pelas mãos e que rapidamente nos esquecemos. Outros livros e filmes há que nos deixam a pensar dias seguidos. Foi o que me aconteceu com este último filme que vi "Diários de Motocicleta" (The Motorcycle Diaries) filme de 2004 que por estas bandas decidiram, e mal, traduzir para "Diários de Che Guevara" porque, certamente venderia bem melhor. Contudo eu sou da opinião que uma tradução deve ser o mais fiel possível e, neste caso, ainda por cima o filme é de um realizador brasileiro e aborda a história de dois jovens: Ernesto e Alberto, e o filme baseia-se nos diários de ambos. Este edição especial em DVD que tenho, além do filme tem ainda o documentário "A viagem de Che Guevara" (Gianni Miná) em podemos ver as filmagens do filme e os comentários do próprio Alberto Granado ainda vivo e com oitenta anos na altura e que vai relembrando como tudo aconteceu.

Argentina, 1952. Alberto Granado, de 29 anos, bioquímico, planeia uma verdadeira odisseia pela América Latina na sua moto "la poderosa" que tinha comprado em 1946 por 3600 pesos, qualquer coisa como mil euros nos dias de hoje. De Buenos Aires à Venezuela, passando pelos Andes, pelas costas do Chile e pelas ruínas de Machu Picchu até Caracas, onde tenciona chegar a tempo do seu trigésimo aniversário. Mas tem que escolher um companheiro para a desafiante e perigosa viagem, e a escolha recai num finalista de medicina, de 23 anos, chamado Ernesto Guevara, que era conhecido por todos como "Fúser". Ernesto, ou Fúser, como Granado lhe chama, era um grande desportista, porém, sofre de uma doença crónica e tem severos ataques de asma e tem que fazer inalações com a bomba.

A longa viagem iniciática destes dois médicos, irá mudar-lhes radicalmente as vidas ao serem confrontados com tantas injustiças e repressão. Ernesto tinha um grande conhecimento da América Latina pelos livros, mas queria conhecê-la ao vivo. E esta será uma viagem espiritual, de descobrimento e do desejo de transformação do mundo. Transformar o utópico em realidade. Ernesto superará a barreira da dificuldade da doença, e a barreira social, e decidiu a margem do rio que quis ficar. 

Na casa de Ernesto habitava uma família numerosa, além dos pais, cinco filhos, em que "Fúser" era o mais velho. Pela casa podíamos encontrar estantes repletas de livros, bons discos e muitos amigos. Era uma família de intelectuais, onde se conversava e discutia todos os assuntos. O Pai, de origem irlandesa era diretor da companhia de petróleo do Estado argentino e a mãe era uma mulher culta e desde cedo incentivou o filho Ernesto a ler. No livro do pai de Ernesto, este escreveu:
Um dia o meu filho, Che, disse-me: 
"Vou para a Venezuela". 
Fiquei muito surpreendido e perguntei-lhe por quanto tempo e ele respondeu-me por um ano. Quando lhe perguntei pela namorada, respondeu-me que se gostasse dele, esperaria. A namorada chamava-se Chichina. Ernesto e Alberto passariam por Miramar para se despedirem no início da viagem.

Antes da partida, a mãe de Ernesto recomendou Alberto, que era o mais velho, que ele fizesse tudo para que Ernesto acabasse o curso de medicina, porque um curso superior dá sempre jeito. Já o pai pergunta-se, o que é que lhe poderia dizer para impedir o filho de fazer esta viagem, se ele mesmo a quis ter feito?


Alberto refere que ninguém acreditava que eles conseguissem fazer tal viagem, mas diz que que Ernesto era um teimoso duro, ao passo que ele era um teimoso brando. Mas eram os dois teimosos e seria muito difícil desistirem. Contudo "la poderosa" acabaria por chegar ao fim de vida em Los Angeles, perto de Temuco (Chile) e a partir daí a expedição como que passa a ser liderada por Ernesto. 

"A mota mostrou-me um outro lado da vida. Eu nunca fui tímido, mas a mota tornou-me mais destemido, capaz de de fazer qualquer coisa. É algo que devo à mota. E para mim deixá-la custou-me muito. Era como deixar uma velha amiga". 

Depois de terem apanhado um camião até Valparaíso, é aqui que se dá uma grande revelação para o jovem Ernesto. Foi aqui que, depois de terem sido bem recebidos por pessoas bastante acolhedoras que até lhes pagaram o almoço, descobrem uma senhora bastante doente que Ernesto resolve visitar. E o que a senhora tinha era uma pneumonia grave e, ainda por cima havia uma grande falta de higiene. Quando Ernesto chegou até junto de Granado disse-lhe que a mulher estava muito mal, que era empregada e que tinha sido despedida, e que a família a olhava como uma intrusa. Este acontecimento foi tão marcante que Ernesto escreveu no seu diário:

"Está na hora dos políticos se ocuparem mais das pessoas e dos doentes e deixarem de lado a propaganda política". 

Granado conta que, já naquela época, sem ser um revolucionário, Che, tinha essa sensibidade, que fez dele o que fez. Na carta que escreveu à mãe:

"Querida mamã, eu sabia que não poderia ajudar aquela pobre mulher, que até há um mês tinha servido à mesa, ofegando como eu, tentando de viver com dignidade. Havia naqueles olhos moribundos um humilde pedido de desculpas e uma desesperada súplica de consolo, que se perdia no vazio, como se perderá em breve o seu corpo". 

Outro dos momentos importantes no filme é a passagem dos nossos aventureiros pela minas de Chuquicamata, de exploração de cobre, que se dizia serem as minas mais ricas do mundo e que estavam sob o domínio da empresa americana Anaconda Company. Foi em Chuquicamata que despertou o desejo de justiça social. Granado diz que aprenderam muitas coisas nas poucas horas que estiveram lá. Perceberam como a indústria estava muito avançada tecnologicamente. Depois como os operários de uma zona não sabiam o que os outros faziam. Foi por causa destas minas que foram nacionalizas pelo governo eleito democraticamente, que em 1973 os americanos, num golpe organizado pela CIA, assassinam Salvador Allende e lá colocam Augusto Pinochet, um seu fantoche, que impõe uma feroz ditadura que assassinou cerca de quarenta mil chilenos. 

O momento mais marcante do filme é quando os dois jovens são colocados a trabalhar na leprosaria de San Pablo no Peru. De um lado dum braço do Amazonas ficavam as instalações das pessoas saudáveis, do outro, a leprosaria. Os doentes de lepra ou com suspeitas de terem lepra eram alvo de grande descriminação por parte da administração do hospital, porque os médicos usavam máscaras, toucas e  luvas, e quando deixavam os doentes e regressavam de barco desinfestavam-se completamente. E foram estes dois médicos estrangeiros, Ernesto e Alberto, que romperam com todas essas normas instituídas apesar de serem muito criticados porque se misturavam com eles, comiam a comida deles e jogavam futebol com eles, cumprimentavam-nos com um aperto de mão, sem luvas. E isso fez com que se criasse uma espécie de mística sobre eles. 

No documentário, uma senhora leprosa, que tinha 18 anos quando Ernesto e Alberto chegaram a San Pablo refere-se a Ernesto (futuro Che Guevara) como "muito culto e extremamente honesto". 

Até que chega o dia de aniverário de Ernesto, e já de noite, este decide atravessar o rio e ir festejar o seu 24º aniversário com os leprosos. Alberto bem tentou demovê-lo, prevenindo-o que o rio tinha piranhas e bastaria arranhar-se e sangrar para que viesse um monte de piranhas, além disso também há crocodilos e a corrente é muito forte... Mas nada o demoveu. Atirou-se ao rio e conseguiu chegar ao outro lado para gáudio de todos. 

Para o realizar Walter esta é a cena mais emblemática do filme e foi um dos motivos porque quis fazer o filme. No dia do seu aniversário, no dia em que nós fazemos um balanço da nossa vida, Ernesto deseja ir para a outra margem do rio, deixando a margem sã, das freiras católicas e de rituais desnecessários e discriminatórios, e ir para o outro lado onde estão os deserdados, aqueles que são colocados à margem da sociedade.. 

O filme deixou-me a pensar em como os pequenos pormenores podem mudar vidas. A vida destes dois médicos teria sido igual se não tivessem feito esta viagem? E Ernesto teria-se transformado no grande revolucionário do século XX, Che Guevara, se não tivesse feito esta viagem? E estes pequenos acasos, estas pequenas revelações, são coincidências ou é o destino? No documentário, Granado, depois de ter sabido que no local em que estavam a filmar, era onde vivia a viúva de Luna (uma das peripécias que o filme retrata) quando param na cidade de Temuco, disse:
"Julgo que é a força de Che. No ano passado tive um enfarte. Salvaram-me no dia 8 de Outubro, o dia em que morreu o Che. Penso que isto tem tudo a ver com tudo, e ele está metido nisto tudo". 

Independentemente do que possamos acreditar, livre arbítrio, coincidências ou destino, a verdade é que há pequenas decisões que mudam vidas. 

Diários de Motocicleta / Walter Salles (2004)

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