Em 2013, quando este blog só tinha apenas alguns meses, escrevi um texto a que dei o título "
Educar uma geração de incapazes" porque já notava que, ao meu redor, as coisas no que há educação dos pais dizia respeito, não iam pelo melhor caminho:
"Ter morado sempre na mesma aldeia, permite-me olhar para trás e comparar como são hoje as coisas. Até aos seis anos pude brincar livremente. Não tive ama, creche, atividades de ocupação de tempos livres. Os tempos livres eram ocupados a aprender com os pais e a brincar o dia todo na rua com os vizinhos. Aos seis anos fui para a escola primária. A minha mãe levou-me à escola sim, no primeiro dia. Depois, passei a ir todos os dias para a escola, a pé, atravessando inclusive um monte, usando um quase caminho de cabras. No primeiro ano ia com a companhia do vizinho, no ano seguinte os pais mudaram-se e passei a ir sozinho" (...) Hoje em dia, na mesma pacata aldeia, onde nada se passa, tal como há trinta anos atrás, olho para os pais que têm agora agora a minha idade, que tiveram infâncias tal como a minha, e vejo a forma como tratam os filhos. Questiono-me se, este tipo de comportamento de irem levar e trazer os filhos à escola, fará deles no futuro, jovens mais confiantes, ou se pelo contrário, estão a criar uma geração de incapazes".
Temos hoje gerações de ansiosos, deprimidos, com todo o tipo de transtornos mentais e os suicídios dispararam. Os telemóveis e os algoritmos das redes sociais têm muita culpa, mas será que é só isso?
É ler este excelente artigo, publicado hoje no El País, intitulado "La calle mejora la salud mental de los niños":
"Vários estudos questionam a ideia de que os telemóveis estejam a causar um agravamento no ânimo dos jovens e centram-se na falta de contacto social físico da última geração
Algo começou a correr mal a partir de 2010. As taxas de depressão e ansiedade entre adolescentes dispararam 50%. As de suicídio aumentaram 32%. Os membros da geração Z — nascidos a partir de 1996 — começaram a sofrer de ansiedade, depressão e outros transtornos mentais, atingindo níveis mais altos do que qualquer outra geração na história. Um em cada dez crianças e jovens — ou seja, 293 milhões em todo o mundo — começaram a desenvolver um transtorno mental, segundo um estudo publicado na revista JAMA Psychiatry. Os dados são claros, os motivos não tanto.
A década de 2010 foi aquela em que os adolescentes dos países desenvolvidos trocaram os seus telemóveis por smartphones e transferiram grande parte da sua vida social para a internet. A coincidência de ambos os fenómenos fez com que muitos autores os relacionassem. Diversos estudos confirmaram esta ideia, acusando as redes sociais de piorarem a saúde mental da população, fomentando um debate social e uma certa desconfiança em relação à tecnologia. O último autor a fazê-lo foi Jonathan Haidt no seu livro "A geração ansiosa" (Editorial Deusto). Mas o seu sucesso também despertou um debate, académico e social, entre aqueles que questionam uma ideia que se tinha tornado um mantra.
Candice L. Odgers, professora de psicologia da Universidade da Califórnia, publicou uma crítica na Nature em março, argumentando que culpar apenas os telemóveis é uma ideia muito apelativa, mas que “não está respaldada pela ciência. Pior ainda, (...) esta crescente histeria poderia distrair-nos e fazer com que não abordássemos as causas reais da atual crise de saúde mental entre os jovens”, explicava. Um estudo da Universidade Dragvoll da Noruega, realizado com 800 menores de 10 a 16 anos, apontava na mesma direção. “A prevalência da ansiedade e da depressão aumentou. Também aumentou o uso das redes sociais. Por isso, muita gente acredita que tem de haver uma correlação. Mas este estudo indica que não é assim”, afirmava a sua autora principal, Silje Steinsbekk.
Também há muita literatura científica que sugere precisamente o contrário. As evidências de um lado e de outro parecem multiplicar-se, e só há um ponto em que toda a comunidade científica parece concordar: a tecnologia e as redes sociais têm um efeito negativo quando substituem o jogo e as atividades ao ar livre. Não é o excesso de telemóvel, é a falta de rua.
Segundo um estudo da OnePoll, apenas 27% das crianças brincam regularmente na rua. O dado é impressionante, mas adquire outra dimensão quando comparado com o dos seus pais e avós. 71% dos baby boomers (as pessoas nascidas entre 1946 e 1964) brincavam regularmente na rua quando tinham a sua idade. Além disso, os adultos que asseguraram ter brincado na rua na sua infância tinham uma saúde mental autoavaliada consideravelmente melhor, segundo o estudo. “Atualmente há uma sensação de perigo que, embora não seja real, faz com que as crianças usem pouco a rua. Retirámos as crianças das cidades para as meter em casa ou em urbanizações fechadas”, explica Inma Marín, licenciada em magistério e autora do livro "Jugar". Assim, os pais que na sua altura brincavam ao ar livre, proíbem agora os seus filhos de o fazer sem supervisão. As coisas mudaram, argumentam, e têm razão.
As ruas são muito mais seguras hoje em Espanha do que há 30 anos. Os assassinatos e homicídios desceram 30% (são cerca de 300 por ano), a mortalidade rodoviária caiu 80% e os sequestros de menores continuam a ser um fenómeno muito raro. Em 2021, segundo a associação ANAR, especializada nestes casos, houve 18 em toda a Espanha. No ano anterior foram 8. Mas a perceção é diferente. Um declínio do capital social — o grau em que as pessoas conhecem e confiam nos seus vizinhos e instituições — exacerbou os medos dos pais. As redes sociais virtuais ganharam força à medida que as reais, aquelas que nos vinculavam ao bairro e à cidade, a perdiam. A rua começou a ser vista como um lugar perigoso e ficou vazia de crianças.
NOVAS URBANIZAÇÕES
As novas urbanizações foram construídas com esta ideia em mente, acrescentando um espaço de jogo limitado e fechado. Começaram a popularizar-se as atividades extracurriculares para proporcionar um lazer produtivo e seguro às crianças. Na década de 1990, os pais começaram a meter os filhos em casa ou no polidesportivo. Um relatório do Ministério da Cultura já estabelecia em 2009 que 90% dos alunos do ensino básico (6-12 anos) dedicavam as suas tardes a atividades desportivas, línguas, música ou dança.
Não foi uma mudança positiva. “A privatização dos espaços não favorece tanto os vínculos e as relações”, explica Marín sobre esta nova realidade. As amizades são mais homogéneas e a possibilidade de fazer novos amigos é muito mais limitada do que num espaço público. As aulas extracurriculares podem ser divertidas e positivas para o desenvolvimento da criança, mas em nenhum caso são um substituto do jogo. “Este tem de ser livre. Pode haver regras, os adultos podem propô-las, mas as crianças deveriam submeter-se livremente a elas, o jogo não pode ser uma imposição”, afirma a especialista.
A sobreproteção da infância faz com que seja visto como uma raridade ver crianças a brincar sozinhas na rua, quando não uma imprudência. Em 2015, o Pew Research Center dos EUA assinalou que os pais, em média, acreditavam que as crianças deviam ter pelo menos 10 anos para brincar sem supervisão à frente de casa, e que não deviam fazê-lo num parque público antes dos 14 anos. Ou seja, até que já não tenham idade para ir ao parque.
Em todo este processo, a tecnologia desempenhou um papel relevante, tornando-se o substituto perfeito de umas ruas cada vez mais vazias. A televisão há 30 anos oferecia um tempo limitado de programação infantil, mas isso foi mudando com a TDT, o streaming, os vídeos e DVDs. A internet tornou-se ubíqua e os videojogos, cada vez mais populares. A alternativa às ruas tornou-se mais atrativa, pois parecia mais segura. Mas era uma falsa perceção.
“Somos muito medrosos na rua, mas não tanto no espaço digital, que é onde os menores precisam de mais acompanhamento. Dá a sensação de que a criança está parada em frente ao ecrã e parece por isso que está controlada, mas tem muitos mais estímulos ali do que no mundo real”, opina Silvia Sánchez Serrano, professora na Universidade Complutense de Madrid no departamento de estudos educativos e membro do grupo de investigação Cultura Cívica.
Sánchez não estigmatiza os ecrãs, tal como Marín. Ambas acreditam que os videojogos são formas de jogo lícitas, enriquecedoras e divertidas. Mas alertam para o perigo que representa quando estes substituem o jogo físico. “É necessário fazer alguma pedagogia digital”, explica Sánchez. “Não se deve proibir o uso do ecrã, devem ser oferecidas alternativas, porque esse impulso do jogo é inato, as crianças vão querê-lo”.
Mas não é isso que tem acontecido nos últimos anos. “Eu cresci a brincar na rua e não em casa, a menos que o tempo estivesse realmente mau”, explica Jennifer, professora de inglês de 50 anos. “Mas os meus filhos [tem dois filhos, de 14 e 20] estão sempre dentro a menos que tenham um jogo ou algo assim”. Jennifer dá aulas a adolescentes e sabe por isso que o que acontece na sua casa não é uma exceção. “Acho que todos podem ver esta tendência com as crianças. Nunca se aborrecem, nunca estão fora, a menos que seja em aulas extracurriculares. Passam o dia com os ecrãs”. Ela obrigava os filhos a passar tempo no parque quando eram mais pequenos, mas no final, também para ela, era um esforço extra. Quando os filhos tinham 12 ou 13 anos, desistiu.
Não é só que os pais tenham limitado o acesso à rua. É que aos filhos, por outro lado, cada vez lhes parece mais fácil e atrativo passar a tarde em casa, fechados e sozinhos nos seus quartos. Com o tempo, as empresas tecnológicas conseguiram acesso às crianças e adolescentes quase em qualquer momento. Desenvolveram atividades virtuais emocionantes, desenhadas para libertar grandes quantidades de dopamina e criar dependência.
As experiências virtuais têm-se diferenciado cada vez mais das reais. E isto tem tido um impacto nos cérebros dos menores: “Os anos de infância e adolescência são aqueles em que o cérebro está mais atento a adquirir conhecimentos, sobretudo de tipo socioemocional. Isto implica imitar o que veem, experimentar junto com os outros. E isso significa presença física”, afirma David Bueno, professor de biologia na Universidade de Barcelona especializado na genética do desenvolvimento.
Bueno explica que o cérebro da criança sofre certas mudanças para se transformar em adulto. Que as conexões criadas nesta época determinam o tipo de pessoa que será. E assinala como uma parte destas conexões é determinada pela biologia e pela genética, mas não todas: “O ambiente é que favorece certas conexões e não outras. E este ambiente é constituído pelas experiências que têm no seu dia a dia. O sistema educativo. Como se relacionam com os pais, entre si e com o seu entorno. E isto é o que liga à importância de sair para a rua”.
O jogo é o trabalho da infância, e todos os mamíferos jovens trabalham afincadamente: desta forma conectam os seus cérebros a brincar, praticando os movimentos e habilidades que precisarão de adultos. Os gatos arranham e trepam. Os cães perseguem a bola como se fosse uma presa. Os leões lutam entre si. Isto não é muito diferente nos humanos. As crianças jogam para praticar as suas habilidades físicas, os adolescentes fazem-no através do desporto, aumentando a competitividade e introduzindo interações sociais: seduzem, são muito físicos e desenvolvem piadas internas que unem os amigos. Muitos estudos mostram como os mamíferos — desde ratos até macacos — se deprimem quando são privados do jogo. Nada sugere que isto seja diferente nos humanos.
Substituir o jogo físico por um jogo virtual, e encontrar os amigos na rua por conversar com eles e interagir nas redes sociais não parece ser a melhor opção. Mas é exatamente isso que está a acontecer. Segundo um relatório da API Report, em menos de uma década aumentou 50% o tempo que as crianças passam em frente ao ecrã, ligando este fenómeno à inatividade dos menores. O seu autor, Aric Sigman, afirma que este relatório “confirma o que a maioria dos pais já sabe: que o tempo de ecrã (...) recreativo está a ocupar horas do seu dia, e substituiu o jogo ao ar livre”. Este seria o principal problema. Tal como reflete Bueno, “o jogo físico, o real, implica a ativação simultânea de todos os sentidos, enquanto no mundo virtual só se usam dois, a visão e a audição. Além disso, nas relações físicas lidamos com pessoas reais que têm virtudes e defeitos. O ecrã só nos mostra as virtudes dos outros”.
Crescer fechado em casa e socializar menos na rua pode ter as suas consequências, alertam os especialistas. E estas começam a refletir-se em múltiplos estudos. As sondagens mostram que os membros da geração Z são mais tímidos e têm mais aversão ao risco do que as gerações anteriores. São um grupo sério, menos dado a noitadas, a bebedeiras e à promiscuidade do que os seus antecessores. Socializam menos em pessoa e são mais propensos a sentir-se sozinhos. Estão mais consciencializados, mas têm mais problemas de saúde mental.
Há estudos que confirmam estas ideias, mas é arriscado convertê-las num mantra. Para cada geração existe uma narrativa simples e reducionista. Para os membros desta, os centennials, a opinião popular é que os telemóveis os tornaram infelizes e frágeis, que as redes sociais exacerbaram os seus problemas de autoestima. Mas diversos estudos começam a questionar estas ideias. Ou a matizá-las. É fácil e tentador culpar um fator externo e maligno. Demonizar Mark Zuckerberg, Silicon Valley ou os excessos do capitalismo tecnológico e torná-los os únicos responsáveis pela pandemia de ansiedade e depressão que afeta os mais jovens. Mas pode ser que isto seja apenas parte de um problema mais complexo que começa em casa. E se resolve na rua.
El País, 2 de junho de 2024 ENRIQUE ALPAÑÉS / BERNARDO PÉREZ