domingo, 23 de junho de 2024

O Futebol Durante o Nazismo

Junho de 2024. Joga-se o Europeu de futebol na Alemanha. Europeu que eu vi talvez uma horita, somando os dois jogos da seleção e já não conheço metade dos jogadores. E é em Belim, na Alemanha, que está patente uma exposição sobre o futebol no tempo do nazismo, que veio descrita nos dois diários espanhóis, o El País e o La Vanguadia e que achei muito interessante: 

"Os grandes eventos desportivos, como os Jogos Olímpicos de 1936, serviram ao Reich como altifalantes do nazismo. Uma exposição no Olímpico de Berlim mostra isso.Adolf Hitler elogiava as virtudes do desporto, especialmente o seu efeito entre os jovens. “Que corpos tão maravilhosos podem ser vistos hoje!”, comentou certa vez, após contemplar a foto de uma nadadora. Mas, no que toca ao exercício físico, não se pode dizer que pregasse pelo exemplo. “Recusava praticar qualquer desporto”, escreve nas suas memórias Albert Speer, o arquitecto favorito do Führer, confidente e ministro do Armamento do Reich: “Tampouco mencionou alguma vez tê-lo feito na sua juventude”.

Aos nazis, contudo, o que lhes interessava no desporto era a sua capacidade como arma de manipulação em massa. Os grandes acontecimentos desportivos, como os jogos de futebol, cenário de paixões arrebatadas, eram a ocasião ideal para inocular a ideologia fascista entre as multidões

Um bom exemplo disso é a exposição "Sport. Masse. Macht. Fußball im Nationalsozialismus" (Desporto. Massas. Poder. O futebol durante o nazismo), que se encontra no Museu do Desporto de Berlim, num edifício construído pelos nazis dentro do complexo olímpico, cujo estádio acolherá a final do Euro 2024, num momento em que a ascensão da extrema-direita - AfD foi a segunda força mais votada nas eleições europeias do passado dia 9 - preocupa o continente.

“O futebol já era um desporto de massas nos anos 20. Todos os fins de semana, milhares de pessoas de diferentes idades e classes sociais juntavam-se nos estádios. Para os nazis, esses espetáculos eram uma forma ideal de procurar o apoio de uma maioria que ainda não tinham”, explica Julian Rieck, historiador e curador da exposição. “No futebol, criava-se uma atmosfera de unidade que permitia praticar em massa gestos e rituais como a saudação nazi”.

A exposição mostra como o desporto foi utilizado para criar uma identidade comum e como ferramenta de propaganda no estrangeiro. A partir de abundante documentação, fotografias históricas e recortes de jornais, a mostra percorre o destino de dezenas de clubes judaicos de futebol durante a ascensão do nazismo e revela um aspeto pouco conhecido dos campos de concentração nazis: como também lá se jogou futebol. E como alguns dos seus prisioneiros salvaram a vida graças a isso.

A incrível história do burgalês Saturnino Navazo destaca-se entre os muitos exemplos de vidas de desportistas truncadas pelo nazismo. Navazo tinha sido jogador de segunda divisão antes de se alistar no exército republicano durante a guerra civil espanhola. Em 1939, escapou pelos Pirenéus para França: ficou internado no campo de Argelès-sur-Mer até que o governo francês enviou os republicanos espanhóis para trabalhar na indústria de armamento nazi.

Em Mauthausen, acabou por ser capitão da equipa de futebol espanhola e provavelmente graças a isso salvou-se a si mesmo e a um órfão judeu de oito anos, Siegfred Meir, que fez passar por seu filho quando o campo foi libertado. “Biografias como a de um espanhol que chega a um campo de concentração alemão e salva um menino judeu de Frankfurt evidenciam que o nazismo nasceu na Alemanha mas afetou toda a Europa”, assegura Rieck.

Um dos casos notórios de propaganda através do desporto é o jogo entre as selecções de futebol de Inglaterra e Alemanha, realizado a 4 de dezembro de 1935 em Londres, precisamente em White Hart Lane, o estádio do Tottenham Hotspur, equipa com uma notável afición judaica. Para essa ocasião, o governo nazi organizou a deslocação de 10.000 adeptos que fariam a saudação nazi durante o encontro.

O jornal Jewish Chronicle analisou assim a intenção do evento: “Há poucas dúvidas de que o propósito ulterior é apresentar ao mundo o espectáculo de uma confraternização anglo-nazi, para silenciar os protestos contra a tirania nazi [...] e para dar a impressão de que este país se reconciliou com o nazismo e tudo o que isso implica”. Assim que se soube da convocatória, o jogo desatou uma onda de protestos. Organizaram-se concentrações e difundiram-se cartazes. Um pode ser visto na exposição: “Propaganda para a guerra, propaganda para o ódio racial e o selvajismo é o propósito que Hitler vê cumprido com esta visita”.

Em 1938, proibiu-se por lei aos judeus participar em atividades desportivas. Com a invasão da Polónia pelo Terceiro Reich e o avanço da Segunda Guerra Mundial, os nazis destruíram clubes de futebol judaicos em toda a Europa ocupada. A exposição exibe reproduções das camisolas de 11 clubes destruídos pelos nazis e permite ler exemplos dos chamados parágrafos arianos, textos acrescentados aos estatutos dos clubes que vetavam sócios “não arianos”.

Durante a guerra, os atletas também viveram histórias de heroísmo e de miséria, que a exposição resgata brevemente. Como a de Otto Harder (1892-1956), bicampeão da Liga alemã com o Hamburgo e internacional pela selecção alemã, reconvertido em comandante de um campo de concentração onde morreram centenas de pessoas. Os visitantes também podem ver cinco atletas atuais apresentar em vídeo as biografias de outros tantos desportistas de elite (Lili Henoch, Heinz Kerz, Béla Guttmann, Eddy Hamel e Julius Hirsch) cujas carreiras e vidas foram destruídas pelos nazis. As suas histórias representam milhões de vítimas em toda a Europa.

El País, 16 de junho de 2024, ELENA SEVILLANO

"Em alguns campos nazis de tortura e morte, jogava-se futebol. Era um futebol precário como as vidas dos prisioneiros, que, no entanto, tinham mais hipóteses de sobrevivência se chutassem uma bola. Uma exposição no recinto do estádio Olímpico de Berlim, intitulada Desporto. Massas. Poder. Futebol sob os nazis, explora a utilização do futebol pela Alemanha de Adolf Hitler e, entre outros aspetos, detalha a paradoxal situação nos campos de concentração. A exposição, situada no Museu do Desporto, um edifício construído pelos nazis perto do estádio onde Hitler inaugurou os Jogos Olímpicos de 1936 e onde no próximo dia 14 de julho se disputará a final do Campeonato Europeu, pretende ir além da história.

“Aqui mostramos como os nazis pensavam que deviam ser os atletas e que tipo de pessoas podiam ser alemães; e se queríamos mostrar como o nacional-socialismo praticava a exclusão de determinadas pessoas, também devíamos refletir que a sua forma de excluir ainda tem continuidades pessoais e ideológicas em certa gente do desporto, embora, claro, não seja igual ao que era durante o nazismo”, explica o politólogo e historiador Julian Rieck, comissário da exposição, coorganizada pela Câmara Municipal de Berlim e pela entidade What Matters, dedicada a projetos contra o antissemitismo, racismo e outros tipos de discriminação.

Com copiosa documentação, reproduções de fotografias históricas e recortes de imprensa, réplicas de troféus realizadas com impressora 3D e camisolas de clubes judeus proibidos, a exposição percorre um tempo em que o futebol funcionou como uma peça mais do mecanismo nazi, e explora também reminiscências que afloram por vezes no desporto atual.

A imagética nazi desenvolveu-se como propaganda, e o desporto, que já nos anos vinte apresentava características de fenómeno de massas, foi sempre importante para o Terceiro Reich. “O desporto era central na ideologia nazi. Comunicava o ideal de masculinidade marcial. A ideia de uma comunidade nacional ariana ou Volksgemeinschaft podia ser gravada na psique alemã através do desporto. Além disso, os eventos desportivos, tal como outras reuniões de massas, proporcionavam um lugar para praticar rituais simbólicos como a saudação nazi”, relata um dos painéis da exposição. Mais ainda, o desporto deveria preparar a população, física e psicologicamente, para a guerra.

Tal como outras atividades da sociedade, o desporto serviu ao regime nazi para decidir quem pertencia à Volksgemeinschaft e quem não. Onze camisolas feitas para a exposição – não existem originais – lembram os onze clubes de futebol judeus proibidos a partir de 1933, como o Bar Kochba de Frankfurt ou o Hakoah de Essen. Também estrelas do desporto foram perseguidas ou assassinadas ou viram as suas carreiras truncadas, como a atleta Lilli Henoch ou os futebolistas Heinz Kerz, Béla Guttmann, Eddy Hamel e Julius Hirsch, cujas vidas são relatadas na exposição. Todos eram judeus, exceto Kerz, que foi perseguido por ser negro. Kerz e Guttmann sobreviveram.

Nos campos de concentração onde os nazis internaram milhões de pessoas em condições desumanas que levaram tantas à morte, algumas puderam jogar futebol. “As histórias de prisioneiros a jogar contra guardas são material de Hollywood, não se encontrou nenhuma evidência histórica disso; e não eram onze contra onze, os jogos faziam-se com o que estivesse disponível: bolas de trapos, os das cozinhas contra os carpinteiros, ou por nacionalidades… e fazê-lo dependia de se o comandante do campo gostava de futebol – explica Rieck. Também influía uma lógica cruel nazi: a partir de 1942 o exército precisava cada vez mais de munições, muitas eram fabricadas por trabalhadores forçados dos campos de concentração, e para que pudessem trabalhar ainda mais começaram a maltratá-los um pouco menos e a deixar-lhes o domingo livre para descansar.

Na exposição, uma grande foto panorâmica mostra os barracões do campo de Sachsenhausen com uma baliza de futebol na esplanada, em algum momento de maio ou junho de 1945, após a libertação. Também podemos conhecer a história de dois republicanos espanhóis, prisioneiros em Mauthausen (Áustria), que deixaram marca a jogar futebol. 

O socialista Saturnino Navazo (Hinojar del Rey, Burgos, 1914-Haute Garonne, França, 1986) ia ser contratado pelo Betis quando estalou a Guerra Civil. Lutou na contenda e, após a vitória franquista, fugiu para a França, onde se alistou sob bandeira francesa, foi capturado pelos alemães e enviado para Mauthausen. Lá, graças ao futebol, foi transferido da pedreira para a cozinha e organizou ligas para entretenimento dos guardas, uma oportunidade de salvação e acesso a mais alimentos para os que jogavam. Protegeu um menino judeu de Frankfurt, Siegfried Meier, que após a guerra adotou como filho –o menino passou a chamar-se Luis Navazo para que os aliados não o enviassem para um orfanato.

Também em Mauthausen e no campo anexo de Gusen jogou futebol o republicano Manuel García Barrado (La Calzada de Oropesa, Toledo, 1918-Mauthausen, 2006), que lutou na Guerra Civil, fugiu para a França e no campo nazi foi enviado para escritórios como desenhador. Treinou-se nos juvenis do Real Madrid e continuou a jogar no cativeiro, desenhando ainda cenas desportivas. Após a libertação, escolheu ficar a viver na Áustria, onde trabalhou como guia do campo de Mauthausen para visitantes espanhóis.

O pós-guerra na Alemanha não implicou desnazificação, tampouco no futebol. Um caso flagrante é o de Josef Sepp Herberger, treinador nacional durante o nazismo (numa fotografia de 1938 vê-se com suástica na camisola), que em 1950 foi nomeado selecionador da Alemanha Ocidental. Na RDA comunista, Heinz Krügel, ex-membro das SS nazis, fez carreira como treinador. “Nos anos oitenta e noventa havia muito racismo e antissemitismo nos estádios alemães, e ainda hoje se produzem incidentes – recorda o historiador Rieck. Mas hoje há muitos adeptos e futebolistas que lutam contra a discriminação; é uma tarefa de todos no futebol.

Fútbol en los campos nazis |Maria-Paz López | La Vanguardia

Boa Festa do Sol

"As preces públicas eram em Roma a Ambarvalia, e tinham também lugar em maio, através dos campos, pedindo para eles a proteção divina. No solstício do verão, celebrava-se a festa do Sol, que o cristianismo converteu na de João".

quarta-feira, 19 de junho de 2024

Conversa de Bancada - A Minha Candidata é Melhor do que a Tua

 A história mais curiosa que trago da 1a visita à INATEL de Lisboa, foi ver a boa disposição da equipa da Caixa Geral Depósitos, que tem um casal português de etnia asiática. Na bancada, enquanto o marido jogava contra o Ruben, a senhora que quase consegue falar mais do que eu e que, qual general coloca as tropas na ordem - "é assim que bloqueia"?; "e tu tens que te concentrar mais" - vira-se para mim e puxa o assunto da política.


"Então, e já sabe em quem vai votar"? Claro que sei!, respondi, e falei-lhe das minhas inclinações políticas, e comecei por dizer, "sabe, eu sou de esquerda"...

Diz-me que vai votar na Marta Temido. E querendo saber em quem eu ia votar lá lhe disse que o meu voto iria para uma mulher, mas para a Catarina Martins. "Já não é mau..." e de seguida fala-me das famílias políticas europeias e da preocupação com a extrema-direita, e diz-me que devemos reforçar a família socialista porque a direita se vai aliar à extrema-direita.

Mas eu não faço voto útil. Ou melhor, o meu voto é-me sempre útil. Útil ao que me parece melhor dentro do leque de opções que tenho disponíveis.

Desportivamente creio que obtivemos a melhor classificação possível para o nosso nível. E como referi, em tom de brincadeiras aos colegas, saímos aqui da aldeia e acabamos por ir a Lisboa derrotar dois bancos!

Fomos muito bem recebidos e eles têm lá umas belas instalações, ainda que, naquele espaço todo não haja nada de comes e bebes! Coitados dos lisboetas!

Mas o mais interessante foi, em véspera de eleições europeias do dia 9 de julho, estive em Lisboa no primeiro campeonato nacional, e acabei por estar na bancada a discutir ciência política com a capitã duma equipa adversária!

domingo, 2 de junho de 2024

Não é o Excesso de Telemóvel, é a Falta da Rua

Em 2013, quando este blog só tinha apenas alguns meses, escrevi um texto a que dei o título "Educar uma geração de incapazes" porque já notava que, ao meu redor, as coisas no que há educação dos pais dizia respeito, não iam pelo melhor caminho:

"Ter morado sempre na mesma aldeia, permite-me olhar para trás e comparar como são hoje as coisas. Até aos seis anos pude brincar livremente. Não tive ama, creche, atividades de ocupação de tempos livres. Os tempos livres eram ocupados a aprender com os pais e a brincar o dia todo na rua com os vizinhos. Aos seis anos fui para a escola primária. A minha mãe levou-me à escola sim, no primeiro dia. Depois, passei a ir todos os dias para a escola, a pé, atravessando inclusive um monte, usando um quase caminho de cabras. No primeiro ano ia com a companhia do vizinho, no ano seguinte os pais mudaram-se e passei a ir sozinho" (...) Hoje em dia, na mesma pacata aldeia, onde nada se passa, tal como há trinta anos atrás, olho para os pais que têm agora agora a minha idade, que tiveram infâncias tal como a minha, e vejo a forma como tratam os filhos. Questiono-me se, este tipo de comportamento de irem levar e trazer os filhos à escola, fará deles no futuro, jovens mais confiantes, ou se pelo contrário, estão a criar uma geração de incapazes".

Temos hoje gerações de ansiosos, deprimidos, com todo o tipo de transtornos mentais e os suicídios dispararam. Os telemóveis e os algoritmos das redes sociais têm muita culpa, mas será que é só isso?

É ler este excelente artigo, publicado hoje no El País, intitulado "La calle mejora la salud mental de los niños":


 "Vários estudos questionam a ideia de que os telemóveis estejam a causar um agravamento no ânimo dos jovens e centram-se na falta de contacto social físico da última geração

Algo começou a correr mal a partir de 2010. As taxas de depressão e ansiedade entre adolescentes dispararam 50%. As de suicídio aumentaram 32%. Os membros da geração Z — nascidos a partir de 1996 — começaram a sofrer de ansiedade, depressão e outros transtornos mentais, atingindo níveis mais altos do que qualquer outra geração na história. Um em cada dez crianças e jovens — ou seja, 293 milhões em todo o mundo — começaram a desenvolver um transtorno mental, segundo um estudo publicado na revista JAMA Psychiatry. Os dados são claros, os motivos não tanto.

A década de 2010 foi aquela em que os adolescentes dos países desenvolvidos trocaram os seus telemóveis por smartphones e transferiram grande parte da sua vida social para a internet. A coincidência de ambos os fenómenos fez com que muitos autores os relacionassem. Diversos estudos confirmaram esta ideia, acusando as redes sociais de piorarem a saúde mental da população, fomentando um debate social e uma certa desconfiança em relação à tecnologia. O último autor a fazê-lo foi Jonathan Haidt no seu livro "A geração ansiosa" (Editorial Deusto). Mas o seu sucesso também despertou um debate, académico e social, entre aqueles que questionam uma ideia que se tinha tornado um mantra.

Candice L. Odgers, professora de psicologia da Universidade da Califórnia, publicou uma crítica na Nature em março, argumentando que culpar apenas os telemóveis é uma ideia muito apelativa, mas que “não está respaldada pela ciência. Pior ainda, (...) esta crescente histeria poderia distrair-nos e fazer com que não abordássemos as causas reais da atual crise de saúde mental entre os jovens”, explicava. Um estudo da Universidade Dragvoll da Noruega, realizado com 800 menores de 10 a 16 anos, apontava na mesma direção. “A prevalência da ansiedade e da depressão aumentou. Também aumentou o uso das redes sociais. Por isso, muita gente acredita que tem de haver uma correlação. Mas este estudo indica que não é assim”, afirmava a sua autora principal, Silje Steinsbekk.

Também há muita literatura científica que sugere precisamente o contrário. As evidências de um lado e de outro parecem multiplicar-se, e só há um ponto em que toda a comunidade científica parece concordar: a tecnologia e as redes sociais têm um efeito negativo quando substituem o jogo e as atividades ao ar livre. Não é o excesso de telemóvel, é a falta de rua.

Segundo um estudo da OnePoll, apenas 27% das crianças brincam regularmente na rua. O dado é impressionante, mas adquire outra dimensão quando comparado com o dos seus pais e avós. 71% dos baby boomers (as pessoas nascidas entre 1946 e 1964) brincavam regularmente na rua quando tinham a sua idade. Além disso, os adultos que asseguraram ter brincado na rua na sua infância tinham uma saúde mental autoavaliada consideravelmente melhor, segundo o estudo. “Atualmente há uma sensação de perigo que, embora não seja real, faz com que as crianças usem pouco a rua. Retirámos as crianças das cidades para as meter em casa ou em urbanizações fechadas”, explica Inma Marín, licenciada em magistério e autora do livro "Jugar". Assim, os pais que na sua altura brincavam ao ar livre, proíbem agora os seus filhos de o fazer sem supervisão. As coisas mudaram, argumentam, e têm razão.

As ruas são muito mais seguras hoje em Espanha do que há 30 anos. Os assassinatos e homicídios desceram 30% (são cerca de 300 por ano), a mortalidade rodoviária caiu 80% e os sequestros de menores continuam a ser um fenómeno muito raro. Em 2021, segundo a associação ANAR, especializada nestes casos, houve 18 em toda a Espanha. No ano anterior foram 8. Mas a perceção é diferente. Um declínio do capital social — o grau em que as pessoas conhecem e confiam nos seus vizinhos e instituições — exacerbou os medos dos pais. As redes sociais virtuais ganharam força à medida que as reais, aquelas que nos vinculavam ao bairro e à cidade, a perdiam. A rua começou a ser vista como um lugar perigoso e ficou vazia de crianças.

NOVAS URBANIZAÇÕES

As novas urbanizações foram construídas com esta ideia em mente, acrescentando um espaço de jogo limitado e fechado. Começaram a popularizar-se as atividades extracurriculares para proporcionar um lazer produtivo e seguro às crianças. Na década de 1990, os pais começaram a meter os filhos em casa ou no polidesportivo. Um relatório do Ministério da Cultura já estabelecia em 2009 que 90% dos alunos do ensino básico (6-12 anos) dedicavam as suas tardes a atividades desportivas, línguas, música ou dança.

Não foi uma mudança positiva. “A privatização dos espaços não favorece tanto os vínculos e as relações”, explica Marín sobre esta nova realidade. As amizades são mais homogéneas e a possibilidade de fazer novos amigos é muito mais limitada do que num espaço público. As aulas extracurriculares podem ser divertidas e positivas para o desenvolvimento da criança, mas em nenhum caso são um substituto do jogo. “Este tem de ser livre. Pode haver regras, os adultos podem propô-las, mas as crianças deveriam submeter-se livremente a elas, o jogo não pode ser uma imposição”, afirma a especialista.

A sobreproteção da infância faz com que seja visto como uma raridade ver crianças a brincar sozinhas na rua, quando não uma imprudência. Em 2015, o Pew Research Center dos EUA assinalou que os pais, em média, acreditavam que as crianças deviam ter pelo menos 10 anos para brincar sem supervisão à frente de casa, e que não deviam fazê-lo num parque público antes dos 14 anos. Ou seja, até que já não tenham idade para ir ao parque.

Em todo este processo, a tecnologia desempenhou um papel relevante, tornando-se o substituto perfeito de umas ruas cada vez mais vazias. A televisão há 30 anos oferecia um tempo limitado de programação infantil, mas isso foi mudando com a TDT, o streaming, os vídeos e DVDs. A internet tornou-se ubíqua e os videojogos, cada vez mais populares. A alternativa às ruas tornou-se mais atrativa, pois parecia mais segura. Mas era uma falsa perceção.

Somos muito medrosos na rua, mas não tanto no espaço digital, que é onde os menores precisam de mais acompanhamento. Dá a sensação de que a criança está parada em frente ao ecrã e parece por isso que está controlada, mas tem muitos mais estímulos ali do que no mundo real”, opina Silvia Sánchez Serrano, professora na Universidade Complutense de Madrid no departamento de estudos educativos e membro do grupo de investigação Cultura Cívica.

Sánchez não estigmatiza os ecrãs, tal como Marín. Ambas acreditam que os videojogos são formas de jogo lícitas, enriquecedoras e divertidas. Mas alertam para o perigo que representa quando estes substituem o jogo físico. “É necessário fazer alguma pedagogia digital”, explica Sánchez. “Não se deve proibir o uso do ecrã, devem ser oferecidas alternativas, porque esse impulso do jogo é inato, as crianças vão querê-lo”.

Mas não é isso que tem acontecido nos últimos anos. “Eu cresci a brincar na rua e não em casa, a menos que o tempo estivesse realmente mau”, explica Jennifer, professora de inglês de 50 anos. “Mas os meus filhos [tem dois filhos, de 14 e 20] estão sempre dentro a menos que tenham um jogo ou algo assim”. Jennifer dá aulas a adolescentes e sabe por isso que o que acontece na sua casa não é uma exceção. “Acho que todos podem ver esta tendência com as crianças. Nunca se aborrecem, nunca estão fora, a menos que seja em aulas extracurriculares. Passam o dia com os ecrãs”. Ela obrigava os filhos a passar tempo no parque quando eram mais pequenos, mas no final, também para ela, era um esforço extra. Quando os filhos tinham 12 ou 13 anos, desistiu.

Não é só que os pais tenham limitado o acesso à rua. É que aos filhos, por outro lado, cada vez lhes parece mais fácil e atrativo passar a tarde em casa, fechados e sozinhos nos seus quartos. Com o tempo, as empresas tecnológicas conseguiram acesso às crianças e adolescentes quase em qualquer momento. Desenvolveram atividades virtuais emocionantes, desenhadas para libertar grandes quantidades de dopamina e criar dependência.

As experiências virtuais têm-se diferenciado cada vez mais das reais. E isto tem tido um impacto nos cérebros dos menores: “Os anos de infância e adolescência são aqueles em que o cérebro está mais atento a adquirir conhecimentos, sobretudo de tipo socioemocional. Isto implica imitar o que veem, experimentar junto com os outros. E isso significa presença física”, afirma David Bueno, professor de biologia na Universidade de Barcelona especializado na genética do desenvolvimento.

Bueno explica que o cérebro da criança sofre certas mudanças para se transformar em adulto. Que as conexões criadas nesta época determinam o tipo de pessoa que será. E assinala como uma parte destas conexões é determinada pela biologia e pela genética, mas não todas: “O ambiente é que favorece certas conexões e não outras. E este ambiente é constituído pelas experiências que têm no seu dia a dia. O sistema educativo. Como se relacionam com os pais, entre si e com o seu entorno. E isto é o que liga à importância de sair para a rua”.

O jogo é o trabalho da infância, e todos os mamíferos jovens trabalham afincadamente: desta forma conectam os seus cérebros a brincar, praticando os movimentos e habilidades que precisarão de adultos. Os gatos arranham e trepam. Os cães perseguem a bola como se fosse uma presa. Os leões lutam entre si. Isto não é muito diferente nos humanos. As crianças jogam para praticar as suas habilidades físicas, os adolescentes fazem-no através do desporto, aumentando a competitividade e introduzindo interações sociais: seduzem, são muito físicos e desenvolvem piadas internas que unem os amigos. Muitos estudos mostram como os mamíferos — desde ratos até macacos — se deprimem quando são privados do jogo. Nada sugere que isto seja diferente nos humanos.

Substituir o jogo físico por um jogo virtual, e encontrar os amigos na rua por conversar com eles e interagir nas redes sociais não parece ser a melhor opção. Mas é exatamente isso que está a acontecer. Segundo um relatório da API Report, em menos de uma década aumentou 50% o tempo que as crianças passam em frente ao ecrã, ligando este fenómeno à inatividade dos menores. O seu autor, Aric Sigman, afirma que este relatório “confirma o que a maioria dos pais já sabe: que o tempo de ecrã (...) recreativo está a ocupar horas do seu dia, e substituiu o jogo ao ar livre”. Este seria o principal problema. Tal como reflete Bueno, “o jogo físico, o real, implica a ativação simultânea de todos os sentidos, enquanto no mundo virtual só se usam dois, a visão e a audição. Além disso, nas relações físicas lidamos com pessoas reais que têm virtudes e defeitos. O ecrã só nos mostra as virtudes dos outros”.

Crescer fechado em casa e socializar menos na rua pode ter as suas consequências, alertam os especialistas. E estas começam a refletir-se em múltiplos estudos. As sondagens mostram que os membros da geração Z são mais tímidos e têm mais aversão ao risco do que as gerações anteriores. São um grupo sério, menos dado a noitadas, a bebedeiras e à promiscuidade do que os seus antecessores. Socializam menos em pessoa e são mais propensos a sentir-se sozinhos. Estão mais consciencializados, mas têm mais problemas de saúde mental.

Há estudos que confirmam estas ideias, mas é arriscado convertê-las num mantra. Para cada geração existe uma narrativa simples e reducionista. Para os membros desta, os centennials, a opinião popular é que os telemóveis os tornaram infelizes e frágeis, que as redes sociais exacerbaram os seus problemas de autoestima. Mas diversos estudos começam a questionar estas ideias. Ou a matizá-las. É fácil e tentador culpar um fator externo e maligno. Demonizar Mark Zuckerberg, Silicon Valley ou os excessos do capitalismo tecnológico e torná-los os únicos responsáveis pela pandemia de ansiedade e depressão que afeta os mais jovens. Mas pode ser que isto seja apenas parte de um problema mais complexo que começa em casa. E se resolve na rua.

El País, 2 de junho de 2024 ENRIQUE ALPAÑÉS / BERNARDO PÉREZ