Junho de 2024. Joga-se o Europeu de futebol na Alemanha. Europeu que eu vi talvez uma horita, somando os dois jogos da seleção e já não conheço metade dos jogadores. E é em Belim, na Alemanha, que está patente uma exposição sobre o futebol no tempo do nazismo, que veio descrita nos dois diários espanhóis, o El País e o La Vanguadia e que achei muito interessante:
"Os grandes eventos desportivos, como os Jogos Olímpicos de 1936, serviram ao Reich como altifalantes do nazismo. Uma exposição no Olímpico de Berlim mostra isso.Adolf Hitler elogiava as virtudes do desporto, especialmente o seu efeito entre os jovens. “Que corpos tão maravilhosos podem ser vistos hoje!”, comentou certa vez, após contemplar a foto de uma nadadora. Mas, no que toca ao exercício físico, não se pode dizer que pregasse pelo exemplo. “Recusava praticar qualquer desporto”, escreve nas suas memórias Albert Speer, o arquitecto favorito do Führer, confidente e ministro do Armamento do Reich: “Tampouco mencionou alguma vez tê-lo feito na sua juventude”.
Aos nazis, contudo, o que lhes interessava no desporto era a sua capacidade como arma de manipulação em massa. Os grandes acontecimentos desportivos, como os jogos de futebol, cenário de paixões arrebatadas, eram a ocasião ideal para inocular a ideologia fascista entre as multidões.
Um bom exemplo disso é a exposição "Sport. Masse. Macht. Fußball im Nationalsozialismus" (Desporto. Massas. Poder. O futebol durante o nazismo), que se encontra no Museu do Desporto de Berlim, num edifício construído pelos nazis dentro do complexo olímpico, cujo estádio acolherá a final do Euro 2024, num momento em que a ascensão da extrema-direita - AfD foi a segunda força mais votada nas eleições europeias do passado dia 9 - preocupa o continente.
“O futebol já era um desporto de massas nos anos 20. Todos os fins de semana, milhares de pessoas de diferentes idades e classes sociais juntavam-se nos estádios. Para os nazis, esses espetáculos eram uma forma ideal de procurar o apoio de uma maioria que ainda não tinham”, explica Julian Rieck, historiador e curador da exposição. “No futebol, criava-se uma atmosfera de unidade que permitia praticar em massa gestos e rituais como a saudação nazi”.
A exposição mostra como o desporto foi utilizado para criar uma identidade comum e como ferramenta de propaganda no estrangeiro. A partir de abundante documentação, fotografias históricas e recortes de jornais, a mostra percorre o destino de dezenas de clubes judaicos de futebol durante a ascensão do nazismo e revela um aspeto pouco conhecido dos campos de concentração nazis: como também lá se jogou futebol. E como alguns dos seus prisioneiros salvaram a vida graças a isso.
A incrível história do burgalês Saturnino Navazo destaca-se entre os muitos exemplos de vidas de desportistas truncadas pelo nazismo. Navazo tinha sido jogador de segunda divisão antes de se alistar no exército republicano durante a guerra civil espanhola. Em 1939, escapou pelos Pirenéus para França: ficou internado no campo de Argelès-sur-Mer até que o governo francês enviou os republicanos espanhóis para trabalhar na indústria de armamento nazi.
Em Mauthausen, acabou por ser capitão da equipa de futebol espanhola e provavelmente graças a isso salvou-se a si mesmo e a um órfão judeu de oito anos, Siegfred Meir, que fez passar por seu filho quando o campo foi libertado. “Biografias como a de um espanhol que chega a um campo de concentração alemão e salva um menino judeu de Frankfurt evidenciam que o nazismo nasceu na Alemanha mas afetou toda a Europa”, assegura Rieck.
Um dos casos notórios de propaganda através do desporto é o jogo entre as selecções de futebol de Inglaterra e Alemanha, realizado a 4 de dezembro de 1935 em Londres, precisamente em White Hart Lane, o estádio do Tottenham Hotspur, equipa com uma notável afición judaica. Para essa ocasião, o governo nazi organizou a deslocação de 10.000 adeptos que fariam a saudação nazi durante o encontro.
O jornal Jewish Chronicle analisou assim a intenção do evento: “Há poucas dúvidas de que o propósito ulterior é apresentar ao mundo o espectáculo de uma confraternização anglo-nazi, para silenciar os protestos contra a tirania nazi [...] e para dar a impressão de que este país se reconciliou com o nazismo e tudo o que isso implica”. Assim que se soube da convocatória, o jogo desatou uma onda de protestos. Organizaram-se concentrações e difundiram-se cartazes. Um pode ser visto na exposição: “Propaganda para a guerra, propaganda para o ódio racial e o selvajismo é o propósito que Hitler vê cumprido com esta visita”.
Em 1938, proibiu-se por lei aos judeus participar em atividades desportivas. Com a invasão da Polónia pelo Terceiro Reich e o avanço da Segunda Guerra Mundial, os nazis destruíram clubes de futebol judaicos em toda a Europa ocupada. A exposição exibe reproduções das camisolas de 11 clubes destruídos pelos nazis e permite ler exemplos dos chamados parágrafos arianos, textos acrescentados aos estatutos dos clubes que vetavam sócios “não arianos”.
Durante a guerra, os atletas também viveram histórias de heroísmo e de miséria, que a exposição resgata brevemente. Como a de Otto Harder (1892-1956), bicampeão da Liga alemã com o Hamburgo e internacional pela selecção alemã, reconvertido em comandante de um campo de concentração onde morreram centenas de pessoas. Os visitantes também podem ver cinco atletas atuais apresentar em vídeo as biografias de outros tantos desportistas de elite (Lili Henoch, Heinz Kerz, Béla Guttmann, Eddy Hamel e Julius Hirsch) cujas carreiras e vidas foram destruídas pelos nazis. As suas histórias representam milhões de vítimas em toda a Europa.
El País, 16 de junho de 2024, ELENA SEVILLANO
"Em alguns campos nazis de tortura e morte, jogava-se futebol. Era um futebol precário como as vidas dos prisioneiros, que, no entanto, tinham mais hipóteses de sobrevivência se chutassem uma bola. Uma exposição no recinto do estádio Olímpico de Berlim, intitulada Desporto. Massas. Poder. Futebol sob os nazis, explora a utilização do futebol pela Alemanha de Adolf Hitler e, entre outros aspetos, detalha a paradoxal situação nos campos de concentração. A exposição, situada no Museu do Desporto, um edifício construído pelos nazis perto do estádio onde Hitler inaugurou os Jogos Olímpicos de 1936 e onde no próximo dia 14 de julho se disputará a final do Campeonato Europeu, pretende ir além da história.
“Aqui mostramos como os nazis pensavam que deviam ser os atletas e que tipo de pessoas podiam ser alemães; e se queríamos mostrar como o nacional-socialismo praticava a exclusão de determinadas pessoas, também devíamos refletir que a sua forma de excluir ainda tem continuidades pessoais e ideológicas em certa gente do desporto, embora, claro, não seja igual ao que era durante o nazismo”, explica o politólogo e historiador Julian Rieck, comissário da exposição, coorganizada pela Câmara Municipal de Berlim e pela entidade What Matters, dedicada a projetos contra o antissemitismo, racismo e outros tipos de discriminação.
Com copiosa documentação, reproduções de fotografias históricas e recortes de imprensa, réplicas de troféus realizadas com impressora 3D e camisolas de clubes judeus proibidos, a exposição percorre um tempo em que o futebol funcionou como uma peça mais do mecanismo nazi, e explora também reminiscências que afloram por vezes no desporto atual.
A imagética nazi desenvolveu-se como propaganda, e o desporto, que já nos anos vinte apresentava características de fenómeno de massas, foi sempre importante para o Terceiro Reich. “O desporto era central na ideologia nazi. Comunicava o ideal de masculinidade marcial. A ideia de uma comunidade nacional ariana ou Volksgemeinschaft podia ser gravada na psique alemã através do desporto. Além disso, os eventos desportivos, tal como outras reuniões de massas, proporcionavam um lugar para praticar rituais simbólicos como a saudação nazi”, relata um dos painéis da exposição. Mais ainda, o desporto deveria preparar a população, física e psicologicamente, para a guerra.
Tal como outras atividades da sociedade, o desporto serviu ao regime nazi para decidir quem pertencia à Volksgemeinschaft e quem não. Onze camisolas feitas para a exposição – não existem originais – lembram os onze clubes de futebol judeus proibidos a partir de 1933, como o Bar Kochba de Frankfurt ou o Hakoah de Essen. Também estrelas do desporto foram perseguidas ou assassinadas ou viram as suas carreiras truncadas, como a atleta Lilli Henoch ou os futebolistas Heinz Kerz, Béla Guttmann, Eddy Hamel e Julius Hirsch, cujas vidas são relatadas na exposição. Todos eram judeus, exceto Kerz, que foi perseguido por ser negro. Kerz e Guttmann sobreviveram.
Nos campos de concentração onde os nazis internaram milhões de pessoas em condições desumanas que levaram tantas à morte, algumas puderam jogar futebol. “As histórias de prisioneiros a jogar contra guardas são material de Hollywood, não se encontrou nenhuma evidência histórica disso; e não eram onze contra onze, os jogos faziam-se com o que estivesse disponível: bolas de trapos, os das cozinhas contra os carpinteiros, ou por nacionalidades… e fazê-lo dependia de se o comandante do campo gostava de futebol – explica Rieck. Também influía uma lógica cruel nazi: a partir de 1942 o exército precisava cada vez mais de munições, muitas eram fabricadas por trabalhadores forçados dos campos de concentração, e para que pudessem trabalhar ainda mais começaram a maltratá-los um pouco menos e a deixar-lhes o domingo livre para descansar.”
Na exposição, uma grande foto panorâmica mostra os barracões do campo de Sachsenhausen com uma baliza de futebol na esplanada, em algum momento de maio ou junho de 1945, após a libertação. Também podemos conhecer a história de dois republicanos espanhóis, prisioneiros em Mauthausen (Áustria), que deixaram marca a jogar futebol.
O socialista Saturnino Navazo (Hinojar del Rey, Burgos, 1914-Haute Garonne, França, 1986) ia ser contratado pelo Betis quando estalou a Guerra Civil. Lutou na contenda e, após a vitória franquista, fugiu para a França, onde se alistou sob bandeira francesa, foi capturado pelos alemães e enviado para Mauthausen. Lá, graças ao futebol, foi transferido da pedreira para a cozinha e organizou ligas para entretenimento dos guardas, uma oportunidade de salvação e acesso a mais alimentos para os que jogavam. Protegeu um menino judeu de Frankfurt, Siegfried Meier, que após a guerra adotou como filho –o menino passou a chamar-se Luis Navazo para que os aliados não o enviassem para um orfanato.
Também em Mauthausen e no campo anexo de Gusen jogou futebol o republicano Manuel García Barrado (La Calzada de Oropesa, Toledo, 1918-Mauthausen, 2006), que lutou na Guerra Civil, fugiu para a França e no campo nazi foi enviado para escritórios como desenhador. Treinou-se nos juvenis do Real Madrid e continuou a jogar no cativeiro, desenhando ainda cenas desportivas. Após a libertação, escolheu ficar a viver na Áustria, onde trabalhou como guia do campo de Mauthausen para visitantes espanhóis.
O pós-guerra na Alemanha não implicou desnazificação, tampouco no futebol. Um caso flagrante é o de Josef Sepp Herberger, treinador nacional durante o nazismo (numa fotografia de 1938 vê-se com suástica na camisola), que em 1950 foi nomeado selecionador da Alemanha Ocidental. Na RDA comunista, Heinz Krügel, ex-membro das SS nazis, fez carreira como treinador. “Nos anos oitenta e noventa havia muito racismo e antissemitismo nos estádios alemães, e ainda hoje se produzem incidentes – recorda o historiador Rieck. Mas hoje há muitos adeptos e futebolistas que lutam contra a discriminação; é uma tarefa de todos no futebol.
Fútbol en los campos nazis |Maria-Paz López | La Vanguardia
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