quarta-feira, 22 de dezembro de 2021

Acasos da Vida: Paratleta

"Tu também jogas?
Sim, mas nunca fui federado!
Podias jogar nos paratletas. Só tens essa deficiência?
(como se já não me bastasse!)
Acho que podias jogar na classe 10.
Sabes que há mais dinheiro para os deficientes do que para os "normais"?


De 2 a 8 deste mês de Dezembro realizou-se em Gaia o Campeonato do Mundo Jovem de Ténis-de-Mesa nas categorias de Sub-15 e Sub-19. Eu não quis deixar passar a oportunidade de ver perto de casa, e bem de perto, as futuras grandes figuras da modalidade que eu gosto e pratico e por isso desloquei-me ao pavilhão de Oliveira do Douro várias vezes (conforme os horários me permitiam) para ver os jogos que estavam a decorrer. 

Fui sozinho, a entrada era gratuita e posso dizer que consolei os olhos a ver os mais jovens jogarem como gente grande. Infelizmente pouca gente se deslocou para um evento desta dimensão. É verdade que estamos em pandemia e também não convinha que o pavilhão estivesse apinhado de gente, mas às vezes era um pouco desolador ver as bancadas vazias.  

Por sorte dia 8 foi feriado e logo após o almoço rumei a Gaia para ver todas as finais. Antes, ainda fui dar uma caminhada de uma hora para esticar as pernas e então depois, sim, instalei-me confortavelmente nas bancadas, e de máquina fotográfica em punho foi registando alguns momentos. 

Mas o momento insólito aconteceu no domingo quando, depois de ter visto a portuguesa Inês Santos eliminar uma alemã, saio da bancada e vou perguntar a um dos jovens voluntários que lá estava se ainda iam jogar mais portugueses. Disse-me que sim, mas entretanto um outro senhor que estava ao lado intervém e pergunta-me se eu também jogo. Respondo que sim, apesar de nunca ter sido federado.

O mais curioso é, de imediato e não sei bem como, diz-me que, com a deficiência que tenho, posso jogar nos atletas com deficiência e conta-me que treina e tem uma academia. Diz-me para o adicionar na rede social e que um dia até posso ir lá treinar. 

quarta-feira, 15 de dezembro de 2021

Companhia na Viagem

Ponho o motor a trabalhar enquanto ligo o hotspot e coloco o telecrã no adaptador fixado no retrovisor. Chamo por ela na rede social que, apesar de estar a muitos quilómetros de distância, em segundos aparece quase milagrosamente no ecrã para falarmos enquanto vou conduzindo até casa. Gosto sempre de a ver e ouvir e sinto que também ela gosta de me ver e conversar comigo.

Mas há mais de vinte anos era muito diferente. Para começar os encontros nem sempre tinham data e hora marcadas. Muitas vezes simplesmente aconteciam. Inesperadamente. Eu e ela nem sequer tínhamos telemóveis e nem sequer havia internet móvel ou telemóveis com internet. 

O encontro dava-se quase sempre no autocarro porque connosco tudo aconteceu dentro dos autocarros. Naquele tempo o autocarro era a rede social, uma rede social real de cara-a-cara, olhos-nos-olhos.

Nem sempre tínhamos dois lugares livres para nos sentarmos um ao lado do outro. Afinal, os autocarros eram um transporte público e, apesar de transportar muitos estudantes, transportavam igualmente todas as outras pessoas. Contando o tempo que se demorava no trânsito e nas paragens até ela sair, tínhamos uns quarenta minutos para conversar. E o tempo passava sempre tão rápido. 

O tempo era precioso. Lembro bem quando passávamos por uma pequena fábrica de fundição, que recentemente reparei que entretanto fechou e, quando a passávamos, significava que já só teríamos mais uns dez minutos. A ansiedade aumentava porque o momento da despedida aproximava-se. 

Nesses tempos nem sequer saberíamos muito bem quando nos voltaríamos a encontrar de novo. Eu era mais velho cinco anos e ela estudava numa escola secundária histórica, onde antigamente só estudavam raparigas e, a poucos metros de outra secundária, onde nesses tempos só estudavam rapazes. Pouco tempo depois a escola dela haveria de encerrar portas por haver cada vez menos alunos. E não sabíamos quando nos iríamos encontrar de novo porque não sabíamos muito bem que camioneta o outro haveria de apanhar. E, mesmo assim, quando os astros todos se alinhavam e tudo dava certo e nos encontrávamos, isso, se bem me lembro, e devido aos horários dela, aconteceria à razão de uma vez por semana. 

Nesse tempo acho que ainda não me estava a dar conta que, pela primeira vez, me estava a apaixonar. Preferia negar para mim mesmo. Era assim que me defendia, porque não poderia ser. No futuro, e porque tudo acabou de se repetir na minha vida, outras porque não poderia ser haveriam de acontecer novamente.   

O tempo passa e os hábitos vão mudando. E é curioso pensar que, se há vinte e cinco anos a vida fosse como é hoje, em que os jovens passam o tempo de cabeça a olhar baixa a olhar para o telecrã eu certamente não teria conversado com uma desconhecida e depois passaríamos tantas horas a conversar, cara-a-cara e olhos-nos-olhos com aquela jovem rebelde de calças rasgadas nos joelhos. Por outro lado, se a vida de hoje fosse como era há vinte e cinco anos, eu certamente não me poderia ter cruzado com alguém tão distante mas tão familiar e poder ter a sua companhia, ainda que virtual, tal como há vinte e cinco anos, na viagem para casa. 

domingo, 12 de dezembro de 2021

Por Isso é Que o Trump Nunca Teve um Blog ou Não Há Ócio Que Não Dê em Negócio

https://www.pikist.com/

Depois de quase sete anos de outra coisa qualquer,  2021, que está agora a acabar (e parece que ainda foi ontem que tantos suspiravam em 2020 por um novo ano que findasse com a pandemia, e ainda tanta pandemia temos pela frente) tem sido um ano de mudanças para mim.

Nem que seja só nas rotinas. 

Sempre que algo acaba há necessariamente algo que muda, nem que seja nas rotinas. Todas essas rotinas de levantar e rumar a um determinado destino e estar 8h com determinadas pessoas e passamos a ter outras rotinas, nem que seja deixar de ter rotinas e ficar um pouco mais na cama ou fazer uma sesta depois de almoço. E tão bem que me soube fazê-la durante uns meses. 

Há um ditado que diz "põe-te a dormir que depois comes do sono". Como quem diz "não te mexas e espera que as coisas venham ter contigo".

Mas a verdade é que as coisas acabaram mesmo por vir ter comigo, sem eu mexer uma palha. E, de um dia para o outro, ainda que mais ou menos temporariamente, a minha vida deixou de ter quase todo o tempo livre para fazer o que me apetecesse, para passar a trabalhar de segunda a sábado. Acabou-se o bem bom do ócio para vender o meu tempo livre. 

E basicamente é isto. Ultimamente a minha vida resume-se a trabalhar e treinos de ténis-de-mesa, duas vezes por semana, quase sempre sem tempo, mas, principalmente, sem vontade, daquela falta de vontade tantas vezes transformada em "dores de cabeça", para parar um pouco e escrever aqui no diário, as minhas lamentações. Porque escrever um texto, por pequeno que seja, exige bem mais do que partilhar uma frase no Twitter. E por isso é que o Trump escrevia uns 25 tweets por dia mas nunca teve um blogue (e eu até tenho três).

quarta-feira, 1 de dezembro de 2021

Demonstrações de Afeto e Palavras Gastas

Gostei muito do último Fala com Ela, uma conversa de Inês Meneses com Gregório Duvivier, a propósito do espetáculo que veio fazer a Portugal com o seu amigo Ricardo Araújo Pereira. 

Uma conversa muito interessante em que o comediante da Porta dos Fundos aborda a sua vida pessoal, do que mudou desde que foi pai há três e falou também das diferenças que encontrou em Lisboa. 

Sentes que algo mudou cá? 

Mudou. Uma invasão bárbara de visigodos, alemães, franceses. Todo lugar novo que abriu tem "The" na frente. "The Prego", "The Tasca". Eu entro e as pessoas falam "Hello". Coisa estranhíssima. Não entendo isso.

Sendo uma espécie de ativista, falou também, da realidade política brasileira. Do inferno que tem sido o Brasil, desde o impeachment de Dilma, à eleição de Bolsonaro, aos seiscentos mil mortos de brasileiros por causa da pandemia. 

No Brasil, 90% da população adulta já se vacinou. Contra um presidente que disse que a vacina COVID provocava SIDA. É um ótimo indicador que a população brasileira não embarca mais nesse barco.

A maioria da população vê a prisão de Lula como injusta. Mesmo os que não gostam dele.
A perseguição que fizeram ao Lula, tão desprovida de direitos transformou-o num mártir. Deu-lhe uma sabedoria que ele talvez não tivesse. Ficou um ano na prisão e acho que leu uns 50 e tal livros. Ele sai maior da prisão dele.

É também muito enternecedor ver como Gregório, estrela de um país gigante como o Brasil mostra-se  sempre extremamente humilde e elogioso com Ricardo Pereira:

"Não dá nem para encher o saco dele (para fazer mais espetáculos em Portugal). Ele não tem rede social. Das coisas que mais admiro nele".

Mas no fim do programa, quando Gregório falou do seu mais recente livro "Sonetos de Amor e Sacanagem", lembra que a palavra "lamechas" não existe no Brasil.  

A Inês Meneses reflete que nós portugueses temos um problema com as demonstrações de afeto. Gregório concorda que os portugueses têm um problema a falar do amor, acham "piroso", outra palavra que não tem no Brasil.  

Ironicamente, no Brasil, gastam-se as palavras e fala-se "eu te amo" a torto e a direito. Ama-se tudo, qualquer coisa. E isso sim já está a ser importado por nós. "Eu amo esta saia, este filme, este carro". Ama-se tudo e, depois, as palavras ficam gastas. 

E como é que quando se diz "eu amo" a torto e a direito, depois damos importância quando o ouvimos estando numa relação amorosa?

Gregório remata com o poema de Eugénio de Andrade "As palavras estão gastas:

Às vezes tu dizias: os teus olhos são peixes
verdes.
E eu acreditava.
Acreditava,
porque ao teu lado
todas as coisas eram possíveis.

Mas isso era no tempo dos segredos,
no tempo em que o teu corpo era um
aquário,
no tempo em que os meus olhos
eram realmente peixes verdes.
Hoje são apenas os meus olhos.
É pouco, mas é verdade,
uns olhos como todos os outros.

Já gastámos as palavras.
Quando agora digo: meu amor,
já não se passa absolutamente nada.
E, no entanto, antes das palavras gastas,
tenho a certeza
de que todas as coisas estremeciam
só de murmurar o teu nome
no silêncio do meu coração.

Não temos já nada para dar.
Dentro de ti
Não há nada que me peça água.
O passado é inútil como um trapo.
E já te disse: as palavras estão gastas.