"A ditadura perfeita terá a aparência da democracia, uma prisão sem muros na qual os prisioneiros não sonharão sequer com a fuga. Um sistema de escravatura onde, graças ao consumo e ao divertimento, os escravos terão amor à sua escravidão."
quarta-feira, 22 de dezembro de 2021
Acasos da Vida: Paratleta
quarta-feira, 15 de dezembro de 2021
Companhia na Viagem
Ponho o motor a trabalhar enquanto ligo o hotspot e coloco o telecrã no adaptador fixado no retrovisor. Chamo por ela na rede social que, apesar de estar a muitos quilómetros de distância, em segundos aparece quase milagrosamente no ecrã para falarmos enquanto vou conduzindo até casa. Gosto sempre de a ver e ouvir e sinto que também ela gosta de me ver e conversar comigo.
Mas há mais de vinte anos era muito diferente. Para começar os encontros nem sempre tinham data e hora marcadas. Muitas vezes simplesmente aconteciam. Inesperadamente. Eu e ela nem sequer tínhamos telemóveis e nem sequer havia internet móvel ou telemóveis com internet.
O encontro dava-se quase sempre no autocarro porque connosco tudo aconteceu dentro dos autocarros. Naquele tempo o autocarro era a rede social, uma rede social real de cara-a-cara, olhos-nos-olhos.
Nem sempre tínhamos dois lugares livres para nos sentarmos um ao lado do outro. Afinal, os autocarros eram um transporte público e, apesar de transportar muitos estudantes, transportavam igualmente todas as outras pessoas. Contando o tempo que se demorava no trânsito e nas paragens até ela sair, tínhamos uns quarenta minutos para conversar. E o tempo passava sempre tão rápido.
O tempo era precioso. Lembro bem quando passávamos por uma pequena fábrica de fundição, que recentemente reparei que entretanto fechou e, quando a passávamos, significava que já só teríamos mais uns dez minutos. A ansiedade aumentava porque o momento da despedida aproximava-se.
Nesses tempos nem sequer saberíamos muito bem quando nos voltaríamos a encontrar de novo. Eu era mais velho cinco anos e ela estudava numa escola secundária histórica, onde antigamente só estudavam raparigas e, a poucos metros de outra secundária, onde nesses tempos só estudavam rapazes. Pouco tempo depois a escola dela haveria de encerrar portas por haver cada vez menos alunos. E não sabíamos quando nos iríamos encontrar de novo porque não sabíamos muito bem que camioneta o outro haveria de apanhar. E, mesmo assim, quando os astros todos se alinhavam e tudo dava certo e nos encontrávamos, isso, se bem me lembro, e devido aos horários dela, aconteceria à razão de uma vez por semana.
Nesse tempo acho que ainda não me estava a dar conta que, pela primeira vez, me estava a apaixonar. Preferia negar para mim mesmo. Era assim que me defendia, porque não poderia ser. No futuro, e porque tudo acabou de se repetir na minha vida, outras porque não poderia ser haveriam de acontecer novamente.
O tempo passa e os hábitos vão mudando. E é curioso pensar que, se há vinte e cinco anos a vida fosse como é hoje, em que os jovens passam o tempo de cabeça a olhar baixa a olhar para o telecrã eu certamente não teria conversado com uma desconhecida e depois passaríamos tantas horas a conversar, cara-a-cara e olhos-nos-olhos com aquela jovem rebelde de calças rasgadas nos joelhos. Por outro lado, se a vida de hoje fosse como era há vinte e cinco anos, eu certamente não me poderia ter cruzado com alguém tão distante mas tão familiar e poder ter a sua companhia, ainda que virtual, tal como há vinte e cinco anos, na viagem para casa.
domingo, 12 de dezembro de 2021
Por Isso é Que o Trump Nunca Teve um Blog ou Não Há Ócio Que Não Dê em Negócio
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Depois de quase sete anos de outra coisa qualquer, 2021, que está agora a acabar (e parece que ainda foi ontem que tantos suspiravam em 2020 por um novo ano que findasse com a pandemia, e ainda tanta pandemia temos pela frente) tem sido um ano de mudanças para mim.
Nem que seja só nas rotinas.
Sempre que algo acaba há necessariamente algo que muda, nem que seja nas rotinas. Todas essas rotinas de levantar e rumar a um determinado destino e estar 8h com determinadas pessoas e passamos a ter outras rotinas, nem que seja deixar de ter rotinas e ficar um pouco mais na cama ou fazer uma sesta depois de almoço. E tão bem que me soube fazê-la durante uns meses.
Há um ditado que diz "põe-te a dormir que depois comes do sono". Como quem diz "não te mexas e espera que as coisas venham ter contigo".
Mas a verdade é que as coisas acabaram mesmo por vir ter comigo, sem eu mexer uma palha. E, de um dia para o outro, ainda que mais ou menos temporariamente, a minha vida deixou de ter quase todo o tempo livre para fazer o que me apetecesse, para passar a trabalhar de segunda a sábado. Acabou-se o bem bom do ócio para vender o meu tempo livre.
E basicamente é isto. Ultimamente a minha vida resume-se a trabalhar e treinos de ténis-de-mesa, duas vezes por semana, quase sempre sem tempo, mas, principalmente, sem vontade, daquela falta de vontade tantas vezes transformada em "dores de cabeça", para parar um pouco e escrever aqui no diário, as minhas lamentações. Porque escrever um texto, por pequeno que seja, exige bem mais do que partilhar uma frase no Twitter. E por isso é que o Trump escrevia uns 25 tweets por dia mas nunca teve um blogue (e eu até tenho três).
quarta-feira, 1 de dezembro de 2021
Demonstrações de Afeto e Palavras Gastas
Gostei muito do último Fala com Ela, uma conversa de Inês Meneses com Gregório Duvivier, a propósito do espetáculo que veio fazer a Portugal com o seu amigo Ricardo Araújo Pereira.
verdes.
E eu acreditava.
Acreditava,
porque ao teu lado
todas as coisas eram possíveis.
Mas isso era no tempo dos segredos,
no tempo em que o teu corpo era um
aquário,
no tempo em que os meus olhos
eram realmente peixes verdes.
Hoje são apenas os meus olhos.
É pouco, mas é verdade,
uns olhos como todos os outros.
Já gastámos as palavras.
Quando agora digo: meu amor,
já não se passa absolutamente nada.
E, no entanto, antes das palavras gastas,
tenho a certeza
de que todas as coisas estremeciam
só de murmurar o teu nome
no silêncio do meu coração.
Não temos já nada para dar.
Dentro de ti
Não há nada que me peça água.
O passado é inútil como um trapo.
E já te disse: as palavras estão gastas.