sábado, 22 de dezembro de 2018

O Acaso de Pitigrilli

Como já aqui contei, foi por mero acaso que conheci a escrita Pitigrilli. E de imediato me viciei. É fascinante o que se absorve, página após página. Eu não sou de sublinhar os livros pois, para mim, um livro, como tantas outras coisas, é quase como se fosse um altar: sagrado. Mas se fosse como muitas pessoas que são de sublinhar, então não seria fácil encontrar páginas dos livros de Pitigrilli que não estivessem riscadas com chamadas de atenção.

Há de tudo, sejam pensamentos, críticas, argumentos, ideias ou informação de interesse que nos enriquece.  Depois da "Virgem de 18 Quilates" acabei por ler vários livros seguidos dele e, aos poucos comecei a apanhar-lhe a repetição de algumas mesmas ideias, aqui e ali, como por exemplo a admiração da inteligência e da memória dos elefantes. Ainda assim, mais do que as vezes que Pitigrilli se refere aos elefantes, são as inúmeras vezes que se refere ao "acaso".  Aqui deixo alguns excertos:



Tôda a vida é regulada pelo acaso. Um médico salva-nos mercê duma magistral intervenção cirúrgica, outro mata-vos com uma simples picada. O encontro de uma dama no "café" pode ser  causa de uma bifurcação na vida. Essa mulher pode envenenar-vos o sangue com uma doença, levar-vos à loucura, dar-vos um filho, tornar-vos feliz, tornar-vos mau, tornar-vos melhor. Basta olhar em volta de nós: dentistas que por enganam arrancam um dente são, críticos que com um único epíteto arruínam um artista ou uma êmpresa, engenheiros que se enganam num cálculo de resistência. E querem que só o juiz seja justo! Mas tôdas as injustiças do mundo contribuem precisamente para repetir os acasos vários de que resultam as múltiplas aparências do mundo e o imprevisto da vida. É a mistura do perfeito e do imperfeito que forma a beleza das coisas e que indica a colaboração entre Deus e os homens. Todo o acusado tem o seu destino escrito antecipadamente e coisa alguma o pode mudar.: sejam quais forem os argumentos subtis que os advogados invoquem, o que quer que seja de inevitável preside à sorte dos acusados. As razões pelas quais se absolve ou se condena são quási sempre diferentes das previstas pelos requisitórios ou pelas defesas. 

Pegue num caso grave de êrro judiciário, analise-o da origem à conclusão, da prisão aos trabalhos forçados: que série impressionante de acasos desfavoráveis que levam um inocente à grilheta! No mundo meu amigo, tudo é aparência, tudo é apenas representação. A verdade? Oh! Quem é que alguma vez soube o que é a verdade? É uma coisa bem miserável, se são suficientes dois pequenos copos de conhaque para a dissimular ou a transformar. E a Justiça? Basta um sapato que incomode, para mudar uma maneira de sentir e, por conseqüência, de julgar.
- E então?
- E então, é preciso acreditar exclusivamente no acaso. A concordância dos acasos favoráveis chama-se fortuna; a concordância dos acasos desfavoráveis, infortúnio. Quando a êsses acasos se associa a vontade dos homens, chama-se a isso o bem ou o mal, e quando êsses homens fazem profissão de julgar, então fala-se em justo ou injusto. Mas o bacilo que nos fulmina, o automóvel que nos esmaga, o homem que nos calunia, o juiz que nos condena, são apenas variantes dum mesmo fenómeno: o acaso...

(Pág. 87 / "O Homem que procurava o amor" / 1929)

Sete anos depois, no livro "Loura Delicocéfala" de 1936:




- Interessante. 
- Não é interessante - disse Teodoro. - É o acaso

(...)

As coisas parecem singulares quando as vemos do avesso; se um motorista da Cruz Vermelha, depois de vinte anos a transportar feridos do lugar do acidente para o hospital, sofre um acidente mecânico, o episódio é mais do que normal; são coisas que acontecem pelo menos uma vez na vida a todos os automobilistas. Mas para o ferido que justamente daquela vez que estava na ambulância, a coisa tocará as raias do inverosímil; depois de ter sido vítima de um acidente na estrada, é muito esquisito, para ele, ser vítima de um segundo acidente de carro. O mesmo facto que para o motorista não tem importância, para o ferido é uma probabilidade que na matemática se representa com um, dividido por um número seguido de três ou quatro mil zeros. 
Juju acendeu um cigarro. Teodoro tomou-lhe das mãos o isqueiro:
- Para si - continuou - não é esquisito que este objeto esteja cheio de gás. Mas se pensar que o gás foi extraído do petróleo e que o petróleo é a transformação de jazidas imensas de peixes que ficaram nas depressões da terra quando as águas dos oceanos se deslocaram há centenas de séculos atrás, parecer-lhe-á esquisito que para acender o cigarro, queime o que se tem conservado, através dos milénios, de um peixe que ficou a seco em qualquer planalto da Pensilvânia. 

Pág. 81...
... e doze páginas diante:

- Afinal - disse ela - compreendeste que te amo. É inútil que to confesse ou que to oculte. Mas nem te amo pelos teus olhos frios nem pelas tuas têmporas grisalhas, nem porque fazes parar os enterros e tens familiaridade com a raiz de mandrágora. Amo-te porque surgiste num momento propício. Tu compreendes estas coisas. 
- Sim, compreendo essas coisas; nós julgamos que os nossos atos têm grande importância, como os nossos méritos e a nossa vontade, e ao invés somos vítimas ou beneficiários do acaso. Se o "mycoderma aceti" pousa numa ferida, nada acontece, mas se cai num copo de vinho transforma-o em vinagre ; se o bacilo de Nicolaïer cai num copo de vinho nada acontece, mas se pousa numa ferida aí está a morte por tétano. 

(e já a caminhar para o fim do livro na página 317)

Quando Zweifel voltou para casa, não quis ver o quarto que fora de Cinci. Foi procurar a última carta de Juju: "Hoje estou bela... querem vender-me  uma plantação de borracha, em Madagascar..." Mas onde estava? Em Madagascar? Como econtrá-la? Onde encontrá-la?
Queria que Juju lhe desse uma nova Cinci.
Mas uma nova Cinci não se faz por encomenda; não se faz por medida; as coisas mais belas não nascem pela vontade dos homens; nascem por acaso.
Nascem por acaso como o jovem pessegueiro, ao longo da via férrea, florescido entre as pedras engorduradas de lubrificantes, entre os restos das cestinhas de viagem; aquele jovem pessegueiro, nascido de um caroço atirado pela janela por um viajante distraído. 
Por um viajante distraído, como Bob. 

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