quarta-feira, 15 de dezembro de 2021

Companhia na Viagem

Ponho o motor a trabalhar enquanto ligo o hotspot e coloco o telecrã no adaptador fixado no retrovisor. Chamo por ela na rede social que, apesar de estar a muitos quilómetros de distância, em segundos aparece quase milagrosamente no ecrã para falarmos enquanto vou conduzindo até casa. Gosto sempre de a ver e ouvir e sinto que também ela gosta de me ver e conversar comigo.

Mas há mais de vinte anos era muito diferente. Para começar os encontros nem sempre tinham data e hora marcadas. Muitas vezes simplesmente aconteciam. Inesperadamente. Eu e ela nem sequer tínhamos telemóveis e nem sequer havia internet móvel ou telemóveis com internet. 

O encontro dava-se quase sempre no autocarro porque connosco tudo aconteceu dentro dos autocarros. Naquele tempo o autocarro era a rede social, uma rede social real de cara-a-cara, olhos-nos-olhos.

Nem sempre tínhamos dois lugares livres para nos sentarmos um ao lado do outro. Afinal, os autocarros eram um transporte público e, apesar de transportar muitos estudantes, transportavam igualmente todas as outras pessoas. Contando o tempo que se demorava no trânsito e nas paragens até ela sair, tínhamos uns quarenta minutos para conversar. E o tempo passava sempre tão rápido. 

O tempo era precioso. Lembro bem quando passávamos por uma pequena fábrica de fundição, que recentemente reparei que entretanto fechou e, quando a passávamos, significava que já só teríamos mais uns dez minutos. A ansiedade aumentava porque o momento da despedida aproximava-se. 

Nesses tempos nem sequer saberíamos muito bem quando nos voltaríamos a encontrar de novo. Eu era mais velho cinco anos e ela estudava numa escola secundária histórica, onde antigamente só estudavam raparigas e, a poucos metros de outra secundária, onde nesses tempos só estudavam rapazes. Pouco tempo depois a escola dela haveria de encerrar portas por haver cada vez menos alunos. E não sabíamos quando nos iríamos encontrar de novo porque não sabíamos muito bem que camioneta o outro haveria de apanhar. E, mesmo assim, quando os astros todos se alinhavam e tudo dava certo e nos encontrávamos, isso, se bem me lembro, e devido aos horários dela, aconteceria à razão de uma vez por semana. 

Nesse tempo acho que ainda não me estava a dar conta que, pela primeira vez, me estava a apaixonar. Preferia negar para mim mesmo. Era assim que me defendia, porque não poderia ser. No futuro, e porque tudo acabou de se repetir na minha vida, outras porque não poderia ser haveriam de acontecer novamente.   

O tempo passa e os hábitos vão mudando. E é curioso pensar que, se há vinte e cinco anos a vida fosse como é hoje, em que os jovens passam o tempo de cabeça a olhar baixa a olhar para o telecrã eu certamente não teria conversado com uma desconhecida e depois passaríamos tantas horas a conversar, cara-a-cara e olhos-nos-olhos com aquela jovem rebelde de calças rasgadas nos joelhos. Por outro lado, se a vida de hoje fosse como era há vinte e cinco anos, eu certamente não me poderia ter cruzado com alguém tão distante mas tão familiar e poder ter a sua companhia, ainda que virtual, tal como há vinte e cinco anos, na viagem para casa. 

1 comentário: