sábado, 23 de novembro de 2019

Por Que é Que Eu Sou Ateu

O que é que distingue um ateu de um crente? O que é que é ser ateu?

"Falta de fé. No meu caso concreto, eu convivo com a fé desde sempre. Eu frequentei um colégio de freiras  vicentinas na escola primária, de padres franciscanos até ao nono ano, de padres jesuítas até ao décimo segundo e ainda fiz a universidade católica. Nunca frequentei um estabelecimento de ensino que não fosse religioso. 

Vive com paciência este tempo?

A crença é uma questão de fé. E eu não tenho fé. A questão é saber, por que é que umas pessoas são crentes e outras não? Basicamente, em princípio há dois tipos de ateísmo: o ateísmo positivo e o ateísmo negativo. São ligeiramente diferentes e a diferença é importante. Num caso podemos dizer "eu não vejo provas consistentes da existência de Deus", esse é o ateísmo negativo. O ateísmo positivo é "eu vejo provas consistentes da não existência de Deus". E portanto eu subscrevo sem dúvida o primeiro, e sinto que estou cada vez mais subscritor da segunda posição. E a razão pela qual isso acontece é a ala pediátrica do IPO. É claro que isso é um símbolo. Isto é um problema conhecido na filosofia, que é, o "problema do mal". Como é que, um Deus omnipotente, omnisciente e omnibenevolente como creio que é comum, permite que, por exemplo, crianças nasçam com leucemia? Eu conheço vários argumentos, por exemplo, daquilo a que a gente chama "o mal moral", que é, como é que o holocausto acontece? Deus criou os homens livres e portanto eles têm liberdade de praticar o mal e Deus não interfere porque porque se interferisse isso violaria o livre arbítrio das pessoas. Claro que isso depois não explica que haja milagres, mas enfim. É uma justificação. E a gente pode dizer "certo, isso justifica o mal moral, o mal social". Mas o mal natural, a ideia que de vez em quando um tsunami mata duzentas mil pessoas no sudoeste asiático, lá está, ou a ala pediátrica do IPO é mais difícil de justificar e também aí há vários argumentos, e ao longo do tempo, um dos quais, não se é Santo Agostinho, que fez referência ao facto de assim como os homens foram criados livres, também, digamos, anjos são criados livres e alguns caem, e esses anjos caídos estão na origem daquilo que chamamos o "mal natural". A minha questão é a seguinte: eu acho que o mundo é demasiado mau para a existência de um Deus omnipotente, omnisciente e omnibenevolente e é demasiado bom para haver demónios à solta. 

Eu conheço os argumentos a favor, e aquele que acaba de enunciar é conhecido como o argumento do relojoeiro. Nós tropeçamos num relógio na rua e pensamos "alguém fez isto". A questão é que o argumento do relojoeiro não valida a existência de um Deus omnibenevolente. Segundo, é um argumento por analogia e os argumentos por analogia apresentam algumas fragilidades. Nesse caso há uma fragilidade bastante evidente, que é, um relógio é produto da obra de várias pessoas (umas pessoas fazem a engrenagem, outras fazem a corda, outras fazem o vidro, etc) e isso também não demonstra a existência de um Deus único. Esse argumento é também aquele que se costuma chamar da prima causa, ou seja, que todas as coisas têm uma causa, portanto, o mundo também terá. Se que é um argumento que não resiste à pergunta - qual é a causa de Deus? 

Eu não estou empenhado em convencer ninguém de que Deus não existe. 

Creio que foi João Crisóstomo, o primeiro teólogo a constatar que no Novo Testamento Jesus Cristo chora duas vezes (quando vê Jerusalém e quando Lázaro morre) e não ri nenhuma. E isso acho eu, é importante. A gente olha para a Idade Média e lemos "O nome da rosa" e percebe-se claramente o modelo de ser humano para os cristãos: é uma pessoa que não riu nenhuma vez e isso faz diferença.

Um dos meus livros favoritos da Bíblia, que é o Eclisiastes, eu acho que há ali três ou quatro momentos em que me parece que o Coelet não acredita em Deus. Há ali momentos em que ele diz "que é que resta a nós debaixo do sol a não ser comer, beber e alegrar"? E o que ele diz, o acaso e o tempo acontecem a toda a gente. E isso, tendo em conta que Deus é o criador do mundo e lhe impôs uma ordem moral, se o acaso acontece a toda a gente, ou seja, se os bons como os maus sofrem... Lá está, a gente vê isso...Há aquela écloga do Camões que diz até o contrário: "eu aos bons vi sempre passar dificuldades e às vezes os maus são premiados. Tendo em conta isto resolvi ser mau e só eu é que fui castigado. Por azar o mundo está certo para mim e está errado para os outros todos". A gente olha lá para fora e nem todos os bons são recompensados, nem todos os maus são castigados, antes pelo contrário, e pronto, isso também gera perplexidade."

Ricardo Araújo PereiraE Deus Criou o Mundo - Antena 1

2 comentários:

  1. "eu acho que o mundo é demasiado mau para a existência de um Deus omnipotente, omnisciente e omnibenevolente e é demasiado bom para haver demónios à solta." Concordo tanto!

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    1. Também eu! Eu até acho que esta frase deveria ir para o Citador!
      Vamos ver o que se dirá no próximo programa. Eu dei-me ao trabalho de transcrever e partilhar porque por certo ninguém ouve este programa da Antena 2!

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