quinta-feira, 1 de setembro de 2016

Quando as vítimas são culpadas do estado em que estão

O milénio caminhava a passos largos para o seu final. O salário mínimo eram 56 contos de réis ou 56 mil escudos se preferirem. Apesar de ter aparecido na entrevista todo vestido de preto, com uma camisola de capuz com três pentagramas nos braços e com um enorme nas costas, e de usar ao pescoço um fio com uma pequena caveira que tinha uns olhos que brilhavam, havia conseguido, fruto da reputação, da parceria ou provavelmente da extrema necessidade, um estágio numa reputada empresa alemã que precisava de estagiários para uma grande Central deste país. 

Acho que mais coisa menos coisa, entre compensação à hora mais ajudas de custo, o que estava acordado de forma verbal, depois duma visita guiada às instalações, eram cerca de 120 contos para trabalhar em regime de turnos rotativos durante o verão. E a necessidade era óbvia, a de preencher as férias dos próprios funcionários da empresa e não tanto proporcionar uma grande formação na área dos estagiários, para quem sabe, mais à frente, talvez o estagiário pudesse ficar com um emprego, e a empresa ficar com mais um trabalhador. Não, ninguém estava iludido a esse respeito. Eles precisavam de gente minimamente competente e responsável, a nós dava-nos jeito o dinheiro e a experiência para colocar no currículo.  

Eu desde criança que sempre trabalhei em casa, mas pode-se dizer que esta foi a minha primeira experiência no mercado de trabalho. E a esta distância, que estágio verdadeiramente surreal que foi! 

"Só me apetece dar peidos pela piça"! 

Retenho sempre esta frase de um dos seguranças da portaria. De noite, e quando só lá estávamos, naquela imensa Central, duas ou três pessoas, ele vinha para lá, para a sala de controlo, passar o tempo conversando connosco. Também me lembrei dele, quando os seguranças das empresas privadas que trabalham nos aeroportos fizeram greve por estes dias. O Pobre coitado tinha de fazer doze horas seguidas, e às vezes mais. Só pode ser mesmo escravatura.

E agora que estou a escrever e a pensar sobre isso, começam aos poucos a virem-me imagens desses tempos... e já lá vão quase vinte anos! Naquela sala de controlo, entre outras coisas, eu acho que até cheguei a levar um saco para pintar! É verdade, eu pintava os meus próprios sacos. Estão a ver aqueles sacos de estilo militar que se usam à tiracolo? Eu pintava os meus,  mas cheguei mesmo a pintar um saco para um colega de outro curso, ou amigo se preferirem. O Jorge foi meu amigo muito próximo durante dois, três anos no máximo. E naquela mesma sala, eu escrevia cartas a uma correspondente. E agora penso como seria interessante ir pegar nessas cartas e relembrar quem era afinal essa pessoa com quem me correspondi há quase duas décadas... Mais. Eu até terei essa tal carta que escrevi naquela mesma sala de controlo... 

Muita coisa se passava por lá.
Lembro-me também, quando mostrei aos operadores, que podiam jogar aqueles jogos do Windows95, em que o ambiente de trabalho estava escondido por aquelas páginas de dados, bastando para isso carregar em determinadas teclas de atalho! E pronto, a partir daí, de noite, enquanto eu pintava ou escrevia - tudo a ver com a área do curso! - alguém passava horas a jogar às cartas. 

Mas lembro também como odiava os turnos. Os turnos, como referi, eram rotativos e os colegas também rodavam, e aos poucos ia-os conhecendo a todos. Sei que detestei os turnos rotativos e naquele momento disse a mim mesmo que nunca mais votaria a trabalhar naquele regime. Aquilo não é vida para ninguém. Ninguém deveria ser obrigado, seja qual for o dinheiro que paguem, a ter de trabalhar de noite. Nós somos um animal diurno, não somos mochos nem morcegos. E é uma aberração ter de trabalhar de noite, e depois, passado umas horas ter de trabalhar de dia, e andar a rodar entre três horários e daí a algum tempo o nosso cérebro está completamente fodido. 

Até me lembro agora do Hugo, um ex-colega de trabalho, que quando trabalhava comigo, me disse que se ia despedir, para trabalhar, precisamente numa outra Central, com os mesmos turnos rotativos que eu havia experienciado. Mas ele estava muito agradado por ir ganhar mais do dobro. Mas o dinheiro não é tudo disse-lhe. E quando me lembro dele, lembro talvez um dos gaijos mais calmos que conheci. Ele tinha mais ou menos a minha altura, olhos azuis, corpo robusto, e algum cabelo já a rarear. Era o típico betinho-certinho de sapatinho de vela que qualquer mulher poderia apresentar aos pais, na certeza que o sucesso estaria garantido. Lembro-me também do que ele mudou mal casou! O Hugo sempre foi certinho e cumpridor. Pois não é que a partir do dia em que casou, nunca mais conseguiu entrar a horas? Lembro-me até, quando certo dia lhe telefono do trabalho, e ele ainda estava na cama! E conversei com ele sobre isso, sobre como com os turnos rotativos ele quase nunca se iria encontrar com a mulher na cama... Talvez ele ache que o dinheiro pague tudo isso. Eu acho que não paga.
De volta ao estágio, dizer que tudo foi correndo bem. Era era cumpridor, mostrava interesse em aprender e dava-me bem com os colegas. Não tinha por isso porque correr mal. 

Eu era tão responsável, mas tão responsável, que faltei ao próprio casamento da minha mãe. Se estou arrependido? Oh pá, foi como teve de ser. Se calhar bastaria ter trocado com outro colega ou avisado, ou sei lá, agora também já não lembro dos detalhes e também já não interessa. Estive com ela e o futuro marido em casa, e ainda cumprimentei os convidados, mas depois, quando todos foram para a cerimónia e para os comes e bebes, eu fui almoçar a um restaurante sozinho e depois fui trabalhar normalmente. E lá na empresa nunca ninguém teve nada que me pudesse apontar. E como eu costumo dizer, eu prefiro sempre que tenha de dizer dos outros, que os outros tenham alguma coisa a dizer de mim.

Mas infelizmente eu tive que dizer. O dinheiro lá foi sendo pago, mas depois parecia que afinal que nós tínhamos compreendido mal. Afinal já não eram 120 contos, parece que era só metade! E não fomos só nós, os estagiários, que tínhamos estado em reunião com o diretor lá da Central. Não, também lá tinha estado connosco o responsável do estágio por parte da instituição de ensino. 

E foi aí que o caldo ficou literalmente entornado. Sei que fiquei a saber da novidade num sábado. Pois bem, no domingo seguinte, simplesmente não apareci. E depois liga-me o responsável, todo exaltado, que não podia ser, que não podia ter faltado que só lá tinha ficado uma pessoa e mais não sei o quê. Fiz-lhe ver os meus motivos e homem já me queria pagar o táxi e tudo para ir para lá. Sim, porque na altura eu nem sequer tinha carta nem carro. Mas não, não mais lá pus os pés, pelo menos durante o período de estágio (haveria de lá voltar mais tarde). Não, eu não queria que me pagassem a merda do táxi, queria simplesmente que assumissem o que disseram e que não faltassem à palavra. Porque eu sempre aprendi em pequeno, que a palavra de honra vale mais do que um contrato assinado, mas logo ali, na primeira experiência profissional, aprendi que hoje em dia a palavra vale muito pouco. A vida está cheia de irrevogáveis.

E eu creio que seríamos uns cinco estagiários, em duas centrais distintas. Querem adivinhar quantos tomaram a posição que eu tomei?

Eu lembrei-me destes tempos, agora, porque por estes dias se tem falado muito na comunicação social, sobre esses grandes filhos da puta, desses patrões, que pisam e aproveitam-se das pessoas mais fragilizadas: os estagiários. Segundo as notícias, muito empresário obriga os estagiários a devolver o dinheiro da comparticipação da empresa no valor a receber. Se primeiro declaram que pagam ao estagiário e esse dinheiro entra no balanço das contas da empresa, depois, quando o estagiário é coagido a devolver o dinheiro, este é entregue pela porta do cavalo. 

Mas logo quando ouvi a notícia, e pasmem-se, à data da notícia não havia qualquer queixa por parte das vítimas que isto acontecia! Só depois das notícias é que começaram a aparecer as queixas! Assim ao género da Casa Pia, só depois da reportagem da Cabrita é que afinal havia gente a apresentar queixas que foram abusados. Será que também ainda vou a tempo de acusar alguém que fui violado e receber uns 50 mil euros? Quem é que querem que eu acuse?!

Mas quando ouvi a notícia, veio-me logo à memória o que tenho comentado a algumas pessoas próximas e que até certamente já terei comentado aqui no blogue: que muitas vezes a vítima é o principal culpado do seu estado. 

Pois o que eu acho é que, ninguém se deve deixar pisar. Já sei. Vão-me dizer que as pessoas sujeitam-se porque precisam, nas neste caso, nem é de todo o que está em causa! É só a merda dum estágio! Não é o trabalho de uma vida! E uma coisa é precisar, outra é que deixemos que nos roubem e que não façamos nada contra isso. Porque eu pergunto: e se um dia os estagiários chegassem ao trabalho, e o patrão também lhes dissesse: olha, agora sempre que me apetecer vou-te enrabar, se não acaba-se o estágio! Será que eles também se iam sujeitar? (excluindo os que iriam gostar como é óbvio)

Não. Se não queremos ser pisados nem humilhados, então não podemos deixar que nos pisem e nos humilhem. Se ninguém aceitasse ser roubado e denunciasse a situação, por certo mais nenhum patrão ousaria roubar os próximos estagiários. Deixar ser roubado é abrir a porta e incentivar que os próximos estagiários também o sejam. E se as pessoas aceitam ser roubadas e humilhadas, então, como digo mais uma vez, as vítimas é que são as principais culpadas do estado em que estão. 

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