domingo, 26 de janeiro de 2025

Convite a uma Revolta

Sobre a pressão social, as modas, o sentimento de pertença e a cobardia de não querer passar por diferente. Artigo de  Antonio Muñoz Molina, publicado no  El País a 25 de janeiro de 2025:

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O remorso por algumas tolices cometidas no passado pode não ser estéril se nos servir para agir com mais sensatez no presente. Uma tolice pode também ser um erro, mas nela há algo de banal e supérfluo que agrava o dano que produz, em vez de o aliviar. Uma desculpa parcial é que os acertos, os atos de nobreza e o esforço no trabalho levam o selo do que há de melhor em cada um de nós. Já a tolice tende a ser coletiva, não fruto de uma escolha consciente, mas da submissão atarantada ou cobarde a uma moda. Algumas das maiores tolices das quais me arrependo na vida surgiram não de uma vontade puramente minha, mas do medo de ficar para trás em algo que os outros celebravam, da ansiedade de partilhar algo prestigioso que pairava no ar.

Quando eu tinha cerca de 18 anos, as drogas começaram a chegar ao mundo provinciano onde me movia, envoltas numa perigosa e tentadora lenda de clandestinidade que as tornava mais atraentes. Associar a emancipação ao consumo de haxixe era uma tolice colossal, ainda mais se fosse adornada com a capacidade de abrir as "portas da perceção" ou de libertar a criatividade. Também se dizia na época que o álcool e o tabaco eram ferramentas tão necessárias para a literatura como o papel, a caneta e a máquina de escrever. Eu ficava até altas horas a escrever à máquina na mesa da sala, sob a luz débil do aquecedor, e pela manhã a minha mãe encontrava, ao lado da máquina e dos papéis, um cinzeiro cheio de beatas. Com tal método, era pouco provável escrever uma obra-prima precoce, embora fosse fácil adquirir uma respeitável tosse brônquica antes dos 20 anos.

Sendo medroso por natureza, o haxixe assustava-me. Comecei a fumá-lo pela mesma razão que me levou a fumar tabaco alguns anos antes: para imitar outros mais audazes do que eu, porque, de repente, toda a gente o fazia. Toda a gente falava usando os novos termos associados à gíria prisional —o “costo”, o “pasote”, o “talego”, etc.— e eu tinha vergonha de ficar antiquado, como ficaram antiquadas, alguns anos depois, as jaquetas de bombazina, as botas de montanhista ou metalúrgico e as barbas compridas. Eram os finais dos anos 70 e os primeiros dos anos 80, e tudo acontecia muito depressa. Tão depressa que o haxixe também passou de moda, porque de repente o novo, o último grito e o obrigatório era a cocaína. Agora, as jaquetas tinham ombreiras dignas de filmes policiais, as calças eram largas e pendiam abaixo do cinto, e alguns dos heróis barbudos de bombazina tinham-se barbeado e exibiam patilhas à altura das têmporas, fazendo o gesto vaidoso de tapar uma narina com o dedo indicador e respirar fundo pela outra, indicando que ainda lhes restava um pouco da cocaína consumida pouco antes.

O haxixe e a marijuana tornaram-se antiguidades de hippies tardios ou, como se começou a chamar depois, “cães-flautistas”. O moderno era a cocaína. A coca era um símbolo de status, como o design ou os restaurantes de nova gastronomia, onde os beneficiários dos ventos descontrolados de dinheiro público celebravam os seus pequenos ou grandes êxitos, trazidos pelos grandes projetos da era socialista, culminando nos Jogos Olímpicos e na Expo de 1992, autênticos fogos de artifício galácticos.

Diziam que a coca animava a vida e exaltava todas as faculdades, inclusive as eróticas, e que, além disso, não era viciante. Parte da tolice da minha época, também a consumi ocasionalmente, sobretudo quando me convidavam. Nunca me ocorreu então que estava a alimentar um negócio criminoso que, já na altura, afogava em sangue, terror e corrupção uma parte do mundo. O que nem eu nem ninguém podíamos ignorar eram os efeitos atrozes que começou a ter em muitas pessoas aquela substância aparentemente tão benéfica e inócua, que não deixava cheiros persistentes nem marcas como o haxixe, nem rastos de sangue e seringas pisadas em casas de banho públicas.

Talvez tenha sido o castigo dessas antigas tolices e vícios que me deixou vacinado contra a moda de muitos anos depois, que agora atingiu o seu paroxismo destrutivo: as redes sociais. Tal como o haxixe ou a cocaína, chegaram com o prestígio de uma novidade imperdível, na grande onda do messianismo tecnológico, que também trazia o seu vocabulário, os seus propagandistas e os seus gurus, todos eles disfarçados de jovens benfeitores boémios. Agora parece que o Facebook é uma distração para reformados, como o jogo de cartas ou o crochet, mas há uns 15 anos não abrir uma conta ou perfil —ou lá como se chamasse— era tão imperdoável como não aspirar uma linha de cocaína numa reunião de políticos ou empresários corruptos. Homem do meu tempo, passei algumas horas nessa rede e percebi de imediato como poderia tornar-me dependente e da extraordinária quantidade de tempo que ela me roubava sem que eu notasse e sem qualquer proveito.

O fundador era, na altura, um jovem simpático, com ar de adolescente desajeitado e algo rebelde, mas bem-intencionado, com a sua camisola de capuz e o seu desembaraço de recém-chegado à universidade e a sua simpática máxima: “Move-te rápido e quebra coisas”. E como quebraram! O dano causado pelos senhores da droga empalidece perante a pandemia de distúrbios mentais entre crianças e adolescentes que a empresa deste indivíduo promove nas suas várias plataformas, cada vez mais viciantes, propagadoras conscientes de ansiedade e mentira.

A droga de Zuckerberg experimentei-a um pouco e deixou-me o mesmo desagrado dos primeiros charros. A que Elon Musk trafica agora com tanto sucesso tenho a modesta satisfação de nunca ter experimentado. Nunca entrei no Twitter ou no X.

Sei que recebo toda a informação que preciso através de jornais, rádios e plataformas digitais confiáveis. Ao mesmo tempo, poupo-me à crispação e imundície desse lodaçal. Quebrar a nossa dependência desses fabricantes de vícios é das poucas liberdades reais que nos restam.

sábado, 25 de janeiro de 2025

O Amigo Canídeo


 Mudei de rotina. Passei a ir almoçar a outro tasco que até por acaso se chama Adega. Sopa, pão prato e bebida por 7€. No regresso venho por um local mais longo para caminhar um pouco mais e ver, ao longe, a Serra do Pilar e a Ponte Dom Luís. Até criei a rotina de, de vez em quando colocar uma fotografia da paisagem no Blusky, com a legenda: "Estado do tempo". 

Passo por várias vivendas, cada uma com o seu cão, cada um mais barulhento do que o anterior. Mas o cão da última casa não me late. Deixa-me fazer-lhe festinhas e tudo. Sempre atento ao que se passa. Até dá para lhe tirar umas boas fotografias como esta. 

domingo, 19 de janeiro de 2025

Só Não Acabamos com a Pobreza Porque Não Queremos

"O pior inimigo de um pobre é outro pobre que se acha rico e que defende aqueles que os tornam pobres", Pepe Mujica. 

E sobre a pobreza em Portugal, esta foi provavelmente a melhor entrevista que li esta semana, e os preconceitos associados, como a discriminação em relação às pessoas que recebem o rendimento mínimo, e lembrar que Portugal foi dos últimos países da Europa a ter este tipo de apoio.


"Há décadas que Carlos Farinha Rodrigues estuda as questões da pobreza e das desigualdades sociais. É, por isso, uma espécie de economista contracorrente. Foca-se nos excluídos, naqueles que estão à margem e que continuam a “não ter voz”. Todos os anos, este especialista analisa os dados divulgados pelo Instituto Nacional de Estatística (INE), a partir do Inquérito às Condições de Vida e Rendimento (ICOR), e atualiza o estudo Portugal Desigual, da Fundação Francisco Manuel dos Santos. Os números mais recentes revelam que, em 2023, viviam em Portugal 1,8 milhões de pessoas com menos de 632 euros por mês. O combate à pobreza deve ser um desígnio nacional, defende o professor do ISEG, porque os níveis de desigualdade e de pobreza que temos acabam também por ser “um obstáculo ao crescimento e ao desenvolvimento sustentado” do país.

Enquanto académico, como é que começou a interessar-se pelas questões da pobreza e das desigualdades sociais?

Fui fortemente influenciado no início da minha carreira por uma pessoa que me marcou muito – a professora Manuela Silva –, que me deu aulas no mestrado. Foi ela que me despertou para este tipo de questões. Hoje, não consigo conceber uma visão da economia que não tenha as pessoas em primeiro lugar. Os números são importantes, mas para melhorarmos as condições de vida das pessoas. Sinto-me muito bem nesta pele de um economista que pretende ser o mais rigoroso possível, mas com preocupações sociais. Pugno por uma sociedade mais justa. Esse é o meu ponto de partida.

Por defender isso, põe-lhe um rótulo político?

Não. Mas sei que há quem considere que estas questões da pobreza não têm a ver com o discurso económico, são marginais à economia. Eu continuo a achar que o [David] Ricardo tinha razão – o principal problema da economia é a distribuição dos recursos. E, portanto, pugnar por uma sociedade mais justa não é só uma questão de equidade. É também uma questão de eficiência. Hoje estou convencido que uma sociedade com os níveis de desigualdade e de pobreza que temos, é também um obstáculo ao crescimento e ao desenvolvimento sustentado. Pugnar por uma sociedade mais justa, com a menos pobreza e menos desigualdade, é também pugnar por uma economia mais eficiente e mais ao serviço das pessoas. Mas sei que o discurso que acabei de fazer não é aceite por uma parte muito significativa dos economistas. E a verdade é que o problema das desigualdades e da pobreza tem estado muito afastado do discurso principal da economia nos últimos anos.

Há 50 anos, era fácil ilustrar um artigo sobre a pobreza em Portugal. Havia muitos bairros de barracas, com miúdos sujos e descalços, em ruas onde o esgoto corria a céu aberto. Hoje, felizmente, já não é assim. Se tivesse de escolher uma fotografia para ilustrar a pobreza no país, qual seria? O que a representa melhor?

É verdade que a nossa situação não tem qualquer semelhança com o que acontecia antes do 25 de Abril. Demos passos muito grandes em termos das condições de vida da população portuguesa e dos residentes no país. Se eu quisesse ter uma fotografia que ilustrasse de forma mais vincada o que é a realidade da pobreza em Portugal, escolheria uma que retratasse crianças que têm dificuldade no acesso à escola e que têm dificuldades no acesso a uma alimentação fundamental. O nosso problema principal, em termos de pobreza, continua a ser a pobreza das crianças e dos jovens. Temos mais de 300 mil crianças em situação de pobreza. É algo horrível! Mas também é o principal problema, porque potencia a reprodução da pobreza para os anos futuros. É aí que temos de atacar se queremos resolver o problema.

Há quem diga que são precisas cinco gerações para sair do ciclo de pobreza.

Sim, é verdade. Existem estudos que apontam nesse sentido. Demorar mais ou menos tempo depende da vontade política para encarar o problema a sério. É verdade que combater a pobreza das crianças e dos jovens é muito mais difícil do que, por exemplo, combater a pobreza dos idosos. Quando combatemos a pobreza dos idosos, temos claramente identificada uma questão de recursos económicos. Podemos ter, simultaneamente, um conjunto de necessidades em termos de integração social e de acesso a bens e serviços de primeira necessidade, mas tudo isto está muito centrado na população em situação de pobreza que é idosa. Quando olhamos para as crianças, temos um problema mais complicado. Uma criança não é pobre em si mesma. É pobre porque vive numa família pobre. Isso significa que tem de haver, simultaneamente, medidas para as crianças e medidas para as famílias onde elas estão inseridas. É uma visão muito mais integrada de como abordar as condições de vida das crianças.

É mais oneroso?

É mais difícil e também mais oneroso, possivelmente. É por isso que tem sido mais difícil de combater. Deixe-me ser também um pouco cínico. Dá menos votos no imediato. Mas não tenho dúvidas nenhumas, e é isso que está consagrado na Estratégia Nacional de Combate à Pobreza, que reduzir a pobreza das crianças e dos jovens deve ser o nosso principal objetivo, se quisermos ter uma redução efetiva da pobreza no médio e longo prazo.

Do seu ponto de vista, quais foram as medidas que mais permitiram combater a pobreza?

Temos, infelizmente, em Portugal uma sociedade que ainda é muito tolerante em relação à pobreza. Quando há uma tragédia, a sociedade evidencia uma solidariedade enorme, uma disponibilidade quase imediata de participar. Mas, em relação à permanência de fatores de pobreza, existe uma tolerância muito grande. Costumo dizer que há uma frase assassina no nosso país, que é: pobres sempre houve e sempre haverá. Não é verdade! Haverá enquanto nós quisermos. Nós, enquanto sociedade, temos os recursos, temos as condições para acabar com a pobreza. É fundamental quebrar esta mentalidade. Nesse sentido, a existência de um conjunto de medidas implementadas nestes últimos anos representou um salto muito grande. A existência do Rendimento Social de Inserção (RSI) e do Complemento Solidário para os Idosos (CSI) são medidas, que poderemos discutir a sua eficiência, mas que, acima de tudo, traduzem um conceito muito importante que é: a pobreza não é um problema exclusivamente dos pobres, é um problema de todos nós, é um problema do conjunto da sociedade. Ter uma sociedade com os níveis de pobreza e de desigualdade que temos torna-nos a todos, coletivamente, uma sociedade mais pobre, mais enfraquecida na sua vivência democrática, nos seus valores, na sua coesão social.

Na mensagem de Ano Novo, o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, disse que “a pobreza, nos dois milhões de portugueses, é um problema de fundo estrutural que a democracia não conseguiu resolver”. Porque é que tem sido tão difícil acabar com a pobreza em Portugal? Há pouco, referiu a falta de vontade política. É só isso mesmo?

Acho que esse é o primeiro aspeto. Houve falta de vontade política ou, se quiser, falta de uma perceção muito clara, de que nós, ao reduzirmos a pobreza e as desigualdades, estamos também a contribuir de forma muito importante para ter um crescimento e um desenvolvimento económico mais acentuado. Esta separação entre o que parecem ser variáveis económicas e variáveis sociais, é algo que nos custa muito caro. Aliás, isso traduz-se muitas vezes naquela frase que muitos economistas gostam de dizer e de que discordo: é preciso crescer primeiro, para distribuir depois.

Essa é a retórica que impera.

Sim. É a retórica oficial. Na minha opinião, essa frase está errada. O processo de criação de riqueza não é independente do processo da sua distribuição. E, portanto, temos de olhar para as duas coisas em simultâneo. E é isso que tem faltado também.

Há, então, uma responsabilidade que não é só do Estado, é também dos privados.

Claramente. Quando falo na necessidade de tornar o combate à pobreza um desígnio nacional, não estou nem a desculpabilizar o Estado em relação ao pouco que tem feito, nem a dizer que todo esse combate passa pelo Estado. Como lhe digo, a ideia de tornar o combate à pobreza um desígnio nacional, é que todos somos responsáveis pela situação de pobreza que temos. Claramente, isso implica, em primeiro lugar, a intervenção do Estado a nível central e implica um trabalho e uma intervenção do poder local que é fundamental no combate à pobreza porque está mais próximo, conhece a realidade. Implica ainda um trabalho profundo das instituições de solidariedade social, que muitas vezes atuam só como forma complementar da segurança social. E implica a própria intervenção das empresas.

De que forma?

Hoje já existem empresas que têm uma intervenção social muito grande. Eu faço parte da coordenação científica do Proinfância, que é um programa da Fundação la Caixa, que tem um papel importantíssimo no combate à pobreza. Quando falamos em responsabilidade social das empresas, há duas componentes. Uma primeira é a responsabilidade social com os próprios trabalhadores dessas empresas. E a segunda é uma responsabilidade social com o conjunto da sociedade. Também aí têm sido dados passos muito positivos. Há um conjunto significativo de empresas que têm não só uma preocupação acrescida com as questões sociais, mas uma intervenção direta, e muitas vezes uma intervenção em termos financeiros, de participação em ações concretas, para tentar reduzir a pobreza e a exclusão social.

Não corremos o risco de estar cada um a trabalhar para o seu lado?

É por isso que é necessário uma Estratégia Nacional de Combate à Pobreza a funcionar a sério, para criar todas essas sinergias.

Ainda não está a funcionar a sério?

A comissão liderada pela Sandra Araújo, que é a coordenadora nacional, tem feito um bom trabalho, tentando a ligação com a sociedade civil e a coordenação com os vários organismos da Administração Pública, o que nem sempre é fácil. Mas a ideia da estratégia era ser uma forma de pôr em diálogo e em colaboração os vários intervenientes no combate à pobreza e à exclusão social.

Uma medida emblemática de combate à pobreza foi, como já referiu, o Rendimento Social de Inserção (RSI). Houve muita discussão pública em torno deste apoio social. Os beneficiários ficaram estigmatizados?

Eu fiz parte do grupo que discutiu inicialmente a criação do RSI, ainda no tempo do Governo do engenheiro António Guterres. Nessa altura, eu estava convencidíssimo que a medida ia ser profundamente consensual pelos objetivos e pelos valores envolvidos. Acho que nunca me enganei tanto na vida, em termos de avaliação de uma política pública. Essa medida gerou um profundo debate político que, em muitos casos, não foi nada elegante. E, acima de tudo, gerou uma estigmatização sobre os beneficiários do RSI, que ainda perdura. Quando olhamos para uma medida como o RSI, devemos perceber em primeiro lugar que somos dos últimos países da União Europeia a adotar uma medida semelhante.

Existe também noutros países?

Existe em praticamente todos os países da União Europeia, com variantes na sua forma de implementação. É uma medida de primeira necessidade em relação às pessoas que não têm quaisquer recursos. Ninguém deixa de ser pobre por receber o RSI. O valor de referência do RSI é bastante abaixo do valor do limiar de pobreza. Portanto, não foi feito para tirar as pessoas da pobreza. Foi feito para aliviar as condições de vida dos mais pobres entre os pobres. Nesse sentido, é uma medida extremamente generosa. Acima de tudo, permite, simultaneamente, a transferência de alguns recursos financeiros para as famílias e, ao mesmo tempo, um processo de integração social. A essência do RSI tem muito a ver com aquele provérbio, que dizem que é chinês: se uma pessoa tem fome, não lhe dês o peixe, ensina-a a pescar. O objetivo do RSI era fazer as duas coisas ao mesmo tempo. Era dar o subsídio e, acima de tudo, ter um processo de integração das pessoas.


E funcionou?

Eu diria que o processo de integração das pessoas foi o que funcionou menos bem. Há muito a fazer aí. Deveríamos pensar o RSI em termos de reforçar esta segunda componente.

Precisa de uma reforma?

Precisava de ser repensado para que estas duas componentes tivessem papel ativo. A discussão política e a estigmatização dos beneficiários do RSI é, de facto, algo extremamente preocupante. Se me perguntarem: existe fraude no RSI? Certamente que existe, como existe em todas as prestações sociais. Mas estou convencido que a fraude no RSI é muito menor que em outras prestações sociais. Por um lado, os montantes envolvidos são extremamente baixos e, em segundo lugar, nunca houve uma medida tão vigiada quanto esta em Portugal. Toda a gente tem os olhos em cima do RSI. Em síntese: o RSI, na minha opinião, é importante, porque reduz a intensidade da pobreza. Não é uma medida que resolva o problema da pobreza em si mesmo, porque ninguém deixa de ser pobre por receber o RSI. Nós, claramente, deveríamos reforçar a componente de inclusão e de inserção social dessas pessoas, para se tornar uma medida transitória.

Quando lhe perguntei que fotografia escolhia para retratar a pobreza, escolheu as crianças. Mas os dados divulgados pelo INE, no inquérito às condições de vida e rendimento, mostram que há uma redução significativa da incidência de pobreza nas crianças e jovens. O que é que contribuiu para isso?

Esse talvez seja o aspeto mais positivo dos dados mais recentes publicados pelo INE. Explica-se, por um lado, com o reflexo de algumas políticas que foram implementadas. Isto são dados referentes a 2023 e houve um conjunto de medidas implementadas ao nível das creches e dos apoios às crianças. Claro que têm um efeito sempre muito limitado, mas com a vantagem de serem muito dirigidos ao público-alvo. Espero que isto se prolongue no futuro porque, de facto, este é o elemento mais importante deste inquérito em termos de resultados. É o caminhar na direção correta a redução da pobreza infantil.

Em contrapartida, temos um aumento da pobreza nos idosos. Como é que se explica, tendo havido medidas também específicas para esta população, nomeadamente o aumento das pensões?

Não sabemos ainda. Uma explicação possível é que houve alterações da metodologia de cálculo das pensões de velhice. Nos inquéritos, as famílias são inquiridas sobre os seus rendimentos para calcularmos o seu rendimento disponível, os indicadores de pobreza, etc. De há uns anos a esta parte, o INE tem aperfeiçoado a forma de recolha de informação, fazendo o cruzamento da informação declarada pelas famílias com dados administrativos, nomeadamente com os dados fiscais do IRS. O ano 2024 foi o primeiro em que esse processo chegou às pensões de velhice. Isso traduziu-se numa redução ligeira do nível de pensões. Estamos perante um caso que pode ser claramente uma quebra de série estatística e, portanto, os dados não são diretamente comparáveis.

Mas, com essa nova forma de cálculo, os números são mais reais?

São números mais reais. Mas tem de ser averiguado se, de facto, a razão é exclusivamente esta. Se for, não é muito preocupante, porque não se vai repercutir para o futuro. É um recomeçar da série. Mas há outras explicações possíveis. Ainda não posso demonstrar, porque só vamos ter acesso aos microdados deste último inquérito lá mais para o meio do ano. Mas a linha de pobreza passou de 591 para 632 euros por mês, entre 2022 e 2023. Esta é a linha que separa os pobres dos não pobres. Ou seja, a linha de pobreza subiu 7%. Nesse intervalo de rendimento, entre os 591 e os 632 euros, em 2022, estavam milhares de pensionistas. Eram pessoas com pensões muito baixas, mas que lhes permitiam estar um bocadinho de nada acima da linha da pobreza. Uma das questões que pode ter acontecido e que tem de ser investigado, é que algum deste acréscimo da pobreza dos idosos tenha resultado de pessoas que anteriormente estavam ligeiramente acima da linha de pobreza, mas porque os seus rendimentos subiram menos do que a linha de pobreza, agora passaram a ser pobres. É expectável que, em 2024 e 2025, o conjunto de medidas que foram implementadas tenham um impacto significativo na pobreza dos idosos. Os aumentos do CSI repercutem-se mais tarde.

Outro problema que salta à vista é a proporção da população empregada que vive em situação de pobreza (9,2%). O que é que mais contribui para esta situação? Os salários baixos? Ou há outros fatores?

O salário mínimo está sempre acima do limiar de pobreza e tem tido aumentos significativos. Isto significa que, quando temos um trabalhador em situação de pobreza, desde que seja um trabalhador normal, que ganhe pelo menos o salário mínimo, ele não deveria ser pobre. Mas a questão da pobreza não diz respeito só a ele, diz respeito à sua família. Se eu tiver um trabalhador que é casado, tem três filhos e o único rendimento dessa família é o salário mínimo dele, obviamente que essa família é pobre. Mas, quando tentamos encontrar as principais razões para a existência destes trabalhadores que são pobres em Portugal, mais uma vez, o que temos é um indicador de disfuncionalidades no nosso mercado de trabalho. O nosso mercado de trabalho, em alguns aspetos, não funciona bem. Isso tem a ver com o facto de termos ainda largos assentes em baixos salários. Temos, em muitos casos, condições laborais extremamente deficientes do ponto de vista da qualidade do trabalho. E, em alguns casos, temos a não valorização das qualificações dos trabalhadores. Quando vamos ao supermercado e vemos nas caixas muitos jovens licenciados, perguntamos: como é que isto é possível? O mercado de trabalho ainda não está a ser capaz de valorizar integralmente essa melhoria das qualificações.

Mas os dados mostram que ainda vale a pena estudar.

Esse é talvez o aspeto mais indiscutível de todos os estudos que eu tenho feito e de todos os estudos que conheço em Portugal. Os níveis de qualificação, os níveis de ensino, são o principal fator de combate à pobreza em Portugal.

A educação ainda é o principal elevador social?

Não tenho dúvidas nenhumas sobre isso. Claramente, a educação continua a ser o principal fator de proteção em relação às situações de pobreza. Vale a pena estudar. Mas hoje começamos a ter uma situação que há uns anos era completamente residual. Existem 6,5% de pessoas com nível de qualificação superior, em situação de pobreza. Há 15 anos, isso era impossível. Começamos a ter alguma dificuldade de ajustamento neste processo de passagem do sistema de ensino para o mercado de trabalho. Isso também nos exige, se calhar, repensar o tipo de oferta de cursos que fazemos, que não se ajustam tão rapidamente quanto deveriam às necessidades do mercado de trabalho.

O relatório global da OCDE sobre as competências dos adultos revelou que só 40% dos adultos portugueses compreendem textos simples e matemática básica. Esta iliteracia contribui para a pobreza em Portugal, ou é uma consequência da pobreza?

Acho que é as duas coisas. Fiquei um pouco surpreendido com esses dados. Não esperava que a nossa posição, em termos relativos e em termos absolutos, fosse tão baixa. De alguma forma, são dados contraditórios com o aumento das qualificações que temos tido, com os resultados que temos no PISA, etc. Não sou especialista em questões de educação, mas acho que deveria aproveitar-se para tentar perceber melhor isso. Sou professor há 40 anos e sei comparar os alunos de hoje com os alunos que tinha quando iniciei a minha carreira. Os alunos hoje não são nem mais nem menos inteligentes do que eram há 40 anos. O que às vezes temos é formas de expressar e direcionar a inteligência que não está devidamente contemplada. Reconheço que temos problemas de iliteracia. Mas acho que também falta uma política cultural que tenha em atenção a valorização do nosso património, que tenha em conta a valorização da cultura, não como instrumento imediato de progressão ou de ganhar com isso, mas como uma forma de ser uma pessoa mais completa e de ter uma maior compreensão da sociedade em que se vive. Voltando à questão de transformar o combate à pobreza num desígnio nacional, também aqui o maior desafio é o da mudança de mentalidades, que passa muito pela capacidade de perceber a realidade em que estamos inseridos nas suas várias dimensões.

E como se pode fazer isso?

Deixe-me dar-lhe um exemplo que eu acho que é muito elucidativo. Quando falamos com pessoas que são indiscutivelmente pobres, que têm mais de 35 anos, e lhes perguntamos se se consideram pobres, há uma resposta sistemática. “Não. Eu sou remediado. Pobres eram os meus pais, que uma sardinha dava para o almoço de três pessoas.” A pobreza extrema que tínhamos antes do 25 de Abril ainda está muito presente nessas gerações. Há aqui uma mudança cultural que ainda tem de ser ganha. Aquela ideia de que temos de ganhar as pessoas para a pobreza é, acima de tudo, um desafio à mudança de mentalidades.

Os pobres têm voz em Portugal?

Não. Mesmo as instituições de solidariedade social, dificilmente podem falar em nome dos pobres. Acho que até agora não temos conseguido ouvir a voz dos pobres, efetivamente. Mesmo pessoas como eu e outros investigadores que se dedicam a estas áreas, obviamente temos uma visão de fora. Muitas vezes, é difícil compreender as várias dimensões da pobreza. Dar voz aos pobres é algo que eu acho fundamental para conhecermos melhor a pobreza e, acima de tudo, para a alterarmos.

A Estratégia Nacional pretende fazer baixar a taxa de risco de pobreza para os 10% em 2030. É possível chegar aí?

O objetivo da estratégia era aproximar-nos dos países com menores taxas de pobreza da União Europeia. Eu diria que, ao ritmo que estamos para alcançar resultados, o objetivo dificilmente será alcançado. Mas é um esforço que tem de ser feito.

Carlos Farinha Rodrigues | Jornal de Negócios (revista)

sexta-feira, 10 de janeiro de 2025

Ironias Climáticas

 No ano mais quente de sempre, nunca morreram tantos americanos de frio. 




O Lobo que Alimentamos

 Como já por aqui contei quando encontrei o poema "O pavão voa para sudeste", nos últimos dias comecei (também) a passar os olhos no jornal chinês China Daily (em inglês) e ontem encontrei esta interessante crónica de Borut Pahor, antigo primeiro-ministro da Eslovénia. Aqui fica em modo tradução automática:


"A comédia romântica britânica O Amor Acontece está repleta de cenas divertidas e engraçadas. Mas, como se fosse um documentário, o realizador Richard Curtis apresenta um facto surpreendente logo no início: antes de os aviões atingirem o World Trade Center em Nova Iorque a 11 de setembro, nenhuma vítima enviou mensagens de ódio, apenas de amor.

Desde jovem, queria acreditar que o bem vence o mal. Os contos de fadas foram uma ajuda significativa na formação dessa crença. Contudo, ao crescer, fui confrontado com vários fenómenos de maldade e ódio. Assim, comecei a questionar-me se estávamos destinados a ambos, amor e ódio. Também me perguntava se poderíamos influenciar qual dos dois prevaleceria no final, o amor ou o ódio.

Na universidade, regressei várias vezes à questão da natureza do caráter humano. No seu âmago, será ele bom ou mau? Foi nessa altura que a filosofia confuciana entrou nos meus estudos, moldou a minha mentalidade intelectual e, mais tarde, política, e, de certa forma, me conquistou. Eu queria acreditar que a pessoa é fundamentalmente boa, e Mêncio justificou isso de forma suficientemente convincente para mim. Convenceram-me os seus pensamentos sobre a bondade original do espírito ou coração humano. Fiquei fascinado com o seu conselho de que devemos pensar com o coração.

Isto moldou significativamente as minhas crenças pessoais e políticas. Na verdade, decidi acreditar nisso porque achei que era bom e certo. Segui este princípio durante toda a minha carreira política de 32 anos, e este pensamento guiou-me em todas as posições políticas que ocupei na Eslovénia e na Europa.



Não odiar, mas Amar

Raramente usei citações em discursos políticos. Contudo, a que mais vezes utilizei é o pensamento inspirador de Antígona, de Sófocles: “Não para odiar, mas para amar fui colocado neste mundo.” O meu interesse pela política despertou através da história política, e interessava-me particularmente pela natureza das personalidades que tiveram uma influência decisiva no curso da história. Tentei compreender a complexidade das circunstâncias que lhes deram força extraordinária e a complexidade do poder que influenciava essas circunstâncias. Tudo o que vi ou li reforçou a minha crença de que um esforço sincero pelo bem dentro de nós e da comunidade é positivo e certo, e que ceder à tentação do mal é negativo e errado.

O meu grande modelo, Nelson Mandela, exclamou uma vez de forma inspiradora: “Ninguém nasce a odiar outra pessoa pela cor da sua pele, pelo seu passado ou pela sua religião. As pessoas precisam de aprender a odiar, e se podem aprender a odiar, podem ser ensinadas a amar, pois o amor vem mais naturalmente ao coração humano do que o seu oposto.”

Não sei se Mandela pensava assim por influência de Mêncio ou se desconhecia a sua obra, o que quase não acredito. Em qualquer caso, falavam a mesma língua e com o coração. Pensavam com o coração.

A tolerância e o perdão são expressões de força, enquanto a intolerância e a hostilidade são sinais de fraqueza. Muitas vezes fui acusado de permitir-me "virar a outra face". Isto nunca é agradável e é frequentemente mal compreendido. Contudo, a longo prazo, esta atitude teimosa e consistente funciona bem numa relação cansativa com aqueles que semeiam intolerância e procuram conflito a todo o custo. No meu livro Vencer é o Começo, que é um manual para jovens políticos iniciantes, aconselho o seguinte: “A longo prazo, será mais fácil, melhor, mais sustentável e mais bem-sucedido viver e trabalhar se fizermos tudo isso de acordo com a natureza da nossa personalidade. Gostaria de enfatizar, contudo, que não é algo destinado a nós, mas algo que nos ensinamos a nós próprios. Valerá a pena ensinarmo-nos a ser uma personalidade tolerante e amável. Prejudicar-nos-á e será prejudicial se formos guiados pelo ódio e revanchismo.”
O mundo não está necessariamente dividido

No primeiro quarto do século XXI, a humanidade, neste planeta belo mas ferido, encontra-se numa situação em que a vasta maioria da humanidade está preocupada com se resolveremos pacificamente os problemas acumulados – segurança, políticos, económicos e sociais – ou se será necessária novamente uma grande guerra para redefinir as relações internacionais.

Esta não é uma questão teórica, mas real e atual. E responderei dizendo que é nossa responsabilidade moral fazer tudo para que a paz prevaleça e a guerra seja evitada. É nosso dever moral e político dialogar. Se o diálogo não trouxer uma solução, é necessário regressar ao diálogo mais uma vez.

Encontramo-nos nesta situação geopolítica porque muita coisa mudou após o fim da Segunda Guerra Mundial. Surgiram novas grandes potências. O mundo tornou-se multipolar. Em muitos aspetos, a arquitetura política e jurídica construída sobre as ruínas deixadas pela Segunda Guerra Mundial está obsoleta.

Vejo, no entanto, que não há razão para que o Ocidente e a China não se compreendam. Mas é necessário dialogar mais do que agora. Acredito no poder do diálogo e penso que está longe de estar esgotado.

Uma lenda inspiradora

Permitam-me terminar com uma bela lenda.

Certa vez, um idoso nativo americano disse ao seu neto: “Dentro de cada homem há uma batalha entre dois lobos. O primeiro lobo representa sempre o mal: raiva, inveja, mentira, egoísmo e violência; o segundo lobo representa o bem: paz, amor, compaixão, coragem e esperança.”

Depois de refletir, o neto perguntou: “Qual dos lobos vence no final?”

O idoso respondeu: “O vencedor é sempre aquele que alimentamos!”

Desde então, em entrevistas e discursos, citei esta lenda para explicar a nossa responsabilidade coletiva em escolher o tipo de comunidade que queremos criar e o tipo de pessoa que queremos ser.

quarta-feira, 8 de janeiro de 2025

Ninguém Aprende Nada


 Disse-o desde o primeiro momento. Foi um tremendo erro os políticos terem ido debater com o porco. Resultado: sujaram-se todos e o porco adorou e foi sempre subindo nas sondagens. Admira-me que, gente tão ilustre e políticos experientes tenham normalizado debater com fascistas. Erraram pois foi um verdadeiro tiro no pé. 

De igual forma todos os políticos responsáveis e sensatos deveriam ter abandonado o Twitter quando foi comprado pelo porco fascista, que anda por aí a financiar e apoiar partidos nazis. 

Esta segunda-feira, no Jornal de Negócios, o editor escreveu o seguinte...

"Em outubro de 2022, Elon Musk comprou o Twitter e transformou-o em X. A operação foi mais do que um negócio. O multimilionário fez da plataforma um megafone para apregoar as suas opções políticas e radicalizou-a. Musk não se limita a interferir na política interna dos Estados Unidos, onde é cada vez mais notória a sua aproximação a movimentos extremistas e até aos tristes supremacistas brancos (...) 
É claro que não se pode (nem deve) impedir Elon Musk de utilizar a rede X para expressar os seus pontos de vista porque a liberdade de expressão é a essência da democracia. Todavia, está na hora de os políticos responsáveis de toda a Europa deixarem de usar esta plataforma para comunicar, seguindo o conselho do escritor britânico George Bernard Shaw: “Nunca lutes com um porco, ficas todo sujo, e ainda por cima o porco gosta”. Escolher sair do X é a melhor forma de esvaziar a relevância mediática da plataforma e deixar Elon Musk a falar sozinho".

... que vai de encontro ao cartoon de hoje no Público que ilustra este post.

domingo, 5 de janeiro de 2025

O Pavão Voa Para Sudeste


 Há dias partilhava aqui um texto do Miguel Esteves Cardoso no Público em que ele dizia: "A verdade é que tem de ser cada um a procurar o que gosta. Só procurando se encontra o que nos faz felizes".

Onde é que eu descobri o poema que dá título ao nome desta publicação? Ninguém me disse para ler ou li num livro ou sequer na net, descobri, por mero acaso, no último dia de 2024, num jornal chinês, em que o tema era o pavão-verde, que está em risco de extinção mas que, nos últimos dez anos recuperou graças aos esforços do país. Mas no mesmo artigo do jornal mencionava também: 

"Imagens de pavões-verdes podem ser encontradas em muitas obras literárias e artísticas", disse Yang, que se reformou do Instituto de Zoologia de Kunming, em Yunnan, uma instituição pertencente à Academia Chinesa de Ciências. Por exemplo, "O Pavão Voa para Sudeste" é um famoso poema narrativo longo da Dinastia Han (206 a.C.-220 d.C.).

E de imediato perguntei-me: que poema será esse? 

Na Wikipedia, podemos ler: "Em mais de trezentos versos, conta a história de um jovem que deve abandonar a esposa porque sua mãe (não?) gosta dela. A esposa divorciada é forçada a aceitar um novo casamento por parte de sua família. Ela então comete suicídio. Pouco depois, seu ex-marido fez o mesmo, enforcando-se numa árvore".


 


O ChatGPT (que deverá ser lido com muitas reservas) referiu o seguinte:

"O poema narrativo "O Pavão Voa para Sudeste" (孔雀东南飞, Kǒngquè Dōngnán Fēi), que é uma das obras mais emblemáticas da literatura clássica chinesa, datada do final da Dinastia Han Oriental (25–220 d.C.). Esse poema é considerado o mais antigo poema narrativo extenso preservado na literatura chinesa, marcando um ponto alto na poesia da época.

Resumo da História

O poema narra a trágica história de amor entre Liu Lanzhi, uma mulher virtuosa, e seu marido, Jiao Zhongqing. Devido à pressão da mãe de Jiao, que desaprova Liu Lanzhi, o casal é forçado a se separar. Liu Lanzhi retorna à casa da sua família, enquanto Jiao, incapaz de suportar a perda, tira a própria vida. Ao saber da morte de Jiao, Liu também comete suicídio, reafirmando seu amor eterno.

O título, "O Pavão Voa para Sudeste", simboliza a separação e a tristeza do casal, com o pavão representando a busca de um lar ou união perdida.

Estrutura e Estilo

O poema possui mais de 350 versos e está escrito em uma forma poética que mistura narração com diálogos e reflete a sociedade patriarcal da época, o peso das normas familiares e a luta por amor e independência. Também ilustra o papel das mulheres na sociedade Han e a rigidez das obrigações familiares.

Relevância Cultural

"O Pavão Voa para Sudeste" é considerado uma das duas grandes baladas do período Han, junto com "A Canção de Mulan" (木兰辞, Mùláncí). A obra é muito estudada como um exemplo da fusão entre lirismo poético e narrativa, além de oferecer insights sobre os valores e conflitos da sociedade da época".

Não encontrei nada em português, encontrei em inglês e fiz uma tradução automática que, logicamente não será a mais fiel nem poética mas, de qualquer forma, aqui fica:


"O Pavão voa para sudeste, parando a cada cinco milhas

Aos treze anos sabia tecer seda simples,
aos catorze aprendi a cortar roupas;
aos quinze tocava o alaúde de muitas cordas,
aos dezasseis recitava os Cânticos e a História.
Aos dezassete tornei-me tua esposa,
mas no meu coração havia sempre tristeza e dor.
Eras um funcionário na repartição pública,
guardei a minha virtude e nunca te fui infiel.
Ao cantar do galo começava o meu trabalho no tear,
noites e noites sem descansar.
Em três dias produzia cinco medidas de tecido,
mas o Grande Senhor (mãe?) queixava-se da minha lentidão.
Não é que eu seja tão lenta a tecer,
mas é difícil ser noiva na tua casa.
O trabalho é mais do que consigo suportar -
de que serve ficar aqui por mais tempo?
Por isso peço à tua nobre mãe,
que me deixe partir imediatamente!"

Quando o funcionário ouviu isto,
subiu ao salão e dirigiu-se à mãe:
"Teu filho tem pouca sorte,
mas felizmente encontrei esta esposa.
Desde que prendemos os cabelos, partilhámos o leito e o tapete,
e juntos iremos até às Fontes Amarelas.
Mas mal passaram dois ou três anos,
quase nenhum tempo desde que nos casámos.
Não há nada de errado na conduta desta mulher -
porque a tratas tão severamente?"

A mãe disse ao funcionário,
"Como podes ser tão tolo e indulgente?
Esta esposa não conhece as regras da decência,
as suas ações são egoístas e obstinadas.
Há muito tempo que ela me irrita -
como ousas tentar impor a tua vontade!
A família a leste de nós tem uma filha virtuosa -
Qin Luofu é o seu nome,
linda na forma, sem igual em beleza -
a tua mãe tratará de organizar tudo para ti.
Esta outra deve ser mandada embora imediatamente,
manda-a embora e não te atrevas a detê-la!"

O funcionário, humildemente ajoelhado, respondeu,
"Imploro para dizer isto à minha mãe:
se esta minha esposa for mandada embora,
até à morte nunca terei outra!"
A mãe, ao ouvir isto,
bateu com força na cadeira num ataque de fúria.
"Insensato, não tens juízo?
Como ousas falar a favor da tua esposa!
Já desperdicei gentileza suficiente com ela -
nunca darei permissão para isso!"
O funcionário ficou em silêncio, sem falar;
inclinou-se uma vez mais, depois voltou para o quarto,
começou a contar à esposa o que tinha acontecido,
mas os soluços impediram-no de falar.
"Não sou eu quem te manda embora -
a minha mãe força-me a isso.
Vai apenas para casa por algum tempo,
devo ir para a repartição pública,
mas em breve voltarei
e então certamente virei buscar-te.
Que estas minhas palavras acalmem os teus medos,
cuida-te e não as desobedeças!"

A jovem esposa disse ao funcionário,
"Chega de palavras confusas!
Certa vez, no início da primavera,
deixei a minha família e vim à tua nobre porta,
fiz tudo o que podia para servir a tua nobre mãe -
quando fui eu alguma vez obstinada nos meus modos?
Dia e noite mantive-me nas minhas tarefas,
embora dores e exaustão me consumissem.
Não sei de nenhuma falha ou erro meu -
esforcei-me apenas para pagar a grande dívida que lhe devo.
E agora estou a ser expulsa —
como podes falar do meu regresso?
Tenho um colete bordado
tão belo que brilha com a sua própria luz.
Tenho cortinas de cama duplas de gaze escarlate
com bolsas perfumadas penduradas nos quatro cantos.
Tenho caixas e cestos, sessenta ou setenta,
amarrados com cordões verdes, turquesa e azuis.
Cada um é um pouco diferente do outro,
e dentro deles há artigos de todos os tipos.
Mas se uma pessoa é humilde, as suas coisas também devem ser inúteis -
não serviriam para quem vier depois.
Deixo-as para que possam ser usadas como presentes.
De agora em diante não nos veremos mais -
olha para elas às vezes, se isso te agradar,
e ao longo dos anos, não te esqueças de mim!"

Os galos cantaram, o amanhecer despontava lá fora;
a esposa levantou-se, vestiu-se com cuidado,
colocou a sua saia bordada forrada,
repetindo cada movimento quatro ou cinco vezes.
Nos pés usava sapatos de seda,
na cabeça brilhava um pente de tartaruga;
à cintura enrolou uma gaze branca fluida,
nas orelhas prendeu pérolas brilhantes como a lua.
Os dedos eram finos como raízes de cebolinha,
a boca parecia forrada de vermelhão ou cinábrio.
Andava graciosamente, com passos delicados,
em beleza inigualável em todo o mundo.

Ela subiu ao salão, ajoelhou-se perante a mãe;
a mãe concordou em deixá-la partir, não fez nada para a impedir.
"No passado, quando era uma criança,
nascida e criada no campo,
não tive formação nem instrução adequada,
e acrescentei à minha desgraça ao entrar na vossa nobre família.
Recebi de vós inúmeras moedas e peças de tecido,
mas nunca consegui servir-vos devidamente.
Hoje volto para a minha antiga casa,
embora tema que a minha partida possa deixar a vossa casa desfalcada."

Depois foi despedir-se da sua pequena cunhada,
com lágrimas a cair como fios de pérolas.
"Quando cheguei aqui como noiva,
mal conseguia levantar-me segurando na cama,
Hoje, ao ser expulsa,
tu já tens a mesma altura que eu!
Peço-te que cuides bem da tua mãe,
e cuides também de ti própria.
Quando chegarem o sétimo e o vigésimo nono dias,
lembra-te dos jogos e bons momentos que tivemos juntas."

Depois saiu pelo portão, subiu para a carruagem e partiu,
as lágrimas a cair em rios intermináveis.

O funcionário tinha partido a cavalo,
a esposa partiu mais tarde na carruagem;
tum-tum, rumble-rumble iam as rodas,
quando os dois se encontraram à entrada da estrada principal.
O funcionário desmontou, subiu para a carruagem,
abaixou a cabeça e falou-lhe ao ouvido:
"Juro que nunca te deixarei -
apenas volta para casa por algum tempo.
Devo ir para a repartição pública,
mas em breve estarei de volta.
Juro ao Céu que não te serei infiel!"

A jovem esposa disse ao funcionário,
"Estou grata pela tua gentil preocupação.
Se realmente pensas tanto em mim,
posso esperar que voltes em breve.
Deves ser como a rocha sólida,
eu como o junco ou a cana.
Os juncos e as canas podem ser fortes, assim como flexíveis,
desde que a rocha não se mova.
Mas tenho um pai e um irmão mais velho
com temperamentos tão violentos quanto trovões.
Duvido que me deixem seguir a minha vontade -
só de pensar nisso, o meu coração empalidece!"

Ergueram as mãos em despedidas intermináveis,
duas almas ligadas por um único anseio.

Pelo portão, para dentro de casa entrou a jovem esposa,
sem saber como enfrentar a família.
A mãe bateu as palmas:
"Eu nunca esperei que esta filha voltasse!
Aos treze anos ensinei-te a tecer,
aos catorze já sabias cortar roupas;
aos quinze tocavas o alaúde de muitas cordas,
aos dezasseis entendias as regras de decoro.
Aos dezassete enviei-te para seres noiva,
pensando que nunca trairias os teus votos.
Mas agora, se não cometeste algum erro,
porque voltaste para casa sem ser chamada?"

Lanzhi ficou envergonhada perante a mãe:
"Juro que não fiz nada de errado!"
e a mãe sentiu grande pena por ela.

Quando estava em casa há dez dias ou mais,
o magistrado enviou o seu casamenteiro:
"É sobre o terceiro filho do magistrado,
um jovem mais belo não há no mundo,
acabado de fazer dezoito ou dezanove anos,
eloquente e cheio de talentos —"

A mãe disse à filha,
"Aqui está uma proposta digna de resposta!"
Mas a filha, sufocada por lágrimas, respondeu,
"Quando voltei para casa desta vez,
o funcionário implorou-me vezes sem conta,
e fizemos um juramento de que nunca nos separaríamos.
Hoje, se eu fosse contra esses sentimentos,
temo que nada de bom poderia advir disso!
Deixemos estas negociações de lado,
ou digamos que precisamos de tempo para pensar."

A mãe informou o casamenteiro,
"Esta filha da nossa pobre e humilde casa
acabou de ser devolvida do seu primeiro casamento.
Se ela não serviu para ser esposa de um funcionário,
como poderia ser adequada para o filho de um magistrado?
Imploro que procureis noutras paragens -
nunca poderíamos dar o nosso consentimento.

Alguns dias após o casamenteiro ter partido,
um assistente veio da parte do governador com um pedido semelhante,
dizendo que a família de Lanzhi
servira como oficiais por gerações,
que o quinto filho do governador,
um filho muito estimado, ainda não estava casado,
e que o assistente tinha sido enviado como mediador,
acompanhado de um secretário para abrir as negociações.
“Na família do governador,” relatou,
“há um jovem cavalheiro distinto -
eles desejam concluir uma aliança matrimonial
e, por isso, enviaram-me à vossa nobre casa.”
A mãe desculpou-se com o casamenteiro:
“A minha filha já deu a sua palavra a outro lugar -
o que pode uma velha como eu dizer?”

Quando o irmão mais velho de Lanzhi soube disto,
ficou perturbado e zangado no coração.
Foi falar com a sua irmã mais nova,
“Que forma imprudente de planear as coisas!
Antes estavas casada com um funcionário,
agora podes casar com este cavalheiro.
O teu destino seria tão diferente quanto o céu da terra -
poderias assegurar um futuro brilhante!
Se não casares com este distinto cavalheiro,
como planeias seguir em frente?”

Lanzhi ergueu a cabeça e respondeu,
“O que dizes é bastante razoável, irmão.
Deixei a minha família, fui servir um marido,
mas, a meio caminho, voltei para a casa do meu irmão.
Os teus desejos devem governar esta questão -
como poderia eu esperar ter a minha vontade?
Embora o funcionário e eu tenhamos feito promessas,
parece que o destino não nos permitirá voltar a encontrar-nos.
Deixemos o nosso consentimento dado de imediato
e avancemos com os preparativos para o casamento.”

O casamenteiro desceu do seu lugar,
dizendo “Sim, sim,” e depois “Ótimo, ótimo!”
Voltou e relatou ao governador,
“O vosso servo cumpriu a tarefa—
as conversações terminaram num acordo esplêndido.”
Quando o governador ouviu isto,
o seu coração encheu-se de alegria.
Consultou o calendário, verificou os livros,
decidiu que este mês era perfeito.
“Os seis acordos agora estão em harmonia,
o trigésimo é um dia auspicioso.
Hoje já é o vigésimo sétimo—
voltem e arranjem o casamento!”

As conversações foram realizadas, os preparativos apressados,
uma agitação incessante como nuvens flutuantes.
Barcos de pardais verdes e gansos brancos,
bandeiras de dragão nos quatro cantos
esvoaçando graciosamente ao vento,
carros dourados com rodas adornadas de jade,
cavalos malhados cinzentos marchando lentamente,
selas bordadas a ouro com pompons coloridos,
um presente de casamento de três milhões em dinheiro,
todas as moedas atadas com cordas verdes,
trezentas peças de tecido em tons variados,
mariscos raros comprados em Jiao e Guang,
acompanhantes, quatro ou quinhentos,
todos saindo em multidão pelos portões do governador.

A mãe disse à filha,
“Recebeste a carta do governador.
Amanhã virão buscar-te -
porque não estás a fazer as roupas que precisarás?
Não vás estragar tudo agora!”
A filha ficou em silêncio, sem dizer uma palavra,
com o lenço abafando os seus soluços,
as lágrimas a caírem em cascatas.
Moveu o sofá cravejado de cristais,
colocou-o em frente à janela,
na mão esquerda pegou na faca e na régua,
na mão direita segurou os cetins e gazes.
De manhã, terminou a saia bordada forrada,
à noite, terminou a jaqueta de gaze sem forro,
e à medida que o dia se desvanecia e a escuridão caía,
com pensamentos sombrios saiu pelo portão a chorar.

Quando o funcionário soube desta mudança de situação,
pediu licença para ir a casa por um tempo,
e quando estava a dois ou três milhas de distância,
o seu cavalo cansado começou a relinchar tristemente.
A jovem esposa reconheceu o relinchar do cavalo,
calçou os sapatos e foi ao encontro,
espreitando ansiosa ao longe,
e então soube que o seu marido tinha vindo.
Erguendo a mão, bateu na sela,
com soluços que rasgavam o coração.
“Desde que me despedi de ti,
aconteceram coisas inimagináveis!
Já não posso ser fiel à promessa que fiz antes,
embora duvide que compreendas porquê.
Tenho os meus pais a considerar,
e o meu irmão também me pressionou,
fazendo-me prometer a mim mesma a outro homem -
como poderia ter certeza de que voltarias?”

O funcionário disse à sua esposa,
“Parabéns pela tua ascensão no mundo!
A rocha é quadrada e sólida—
pode durar mil anos.
Mas o junco ou a cana - o seu momento de força
dura apenas do amanhecer ao anoitecer!
Tornar-te-ás mais poderosa, mais exaltada a cada dia -
eu irei sozinho para as Fontes Amarelas.”

A jovem esposa disse ao funcionário,
“O que queres dizer com tais palavras?
Ambos fomos forçados contra a nossa vontade,
tu foste, e eu também!
Nas Fontes Amarelas encontraremos-nos novamente -
não traias as palavras que digo hoje!”
Deram-se as mãos, depois separaram-se,
cada um voltando para a sua família.
Ainda vivos, foram separados como se pela morte,
com um pesar e arrependimento indescritíveis,
pensando agora em despedir-se do mundo,
sabendo que as suas vidas não podiam durar mais.

O funcionário voltou para casa,
subiu ao salão, curvou-se perante a sua mãe:
“Hoje os ventos sopram ferozes e frios,
os ventos frios quebram os galhos das árvores,
e uma geada dura acumula-se nas orquídeas do jardim.
O vosso filho hoje entrará na escuridão,
deixando-vos sozinha.
Faço esta coisa má por minha própria vontade -
não culpem os deuses ou os espíritos.
Que os vossos anos sejam como a rocha na montanha do sul,
e os vossos quatro membros firmes e direitos.”

Quando a mãe ouviu isso,
as suas lágrimas caíram acompanhando as suas palavras:
“Tu és filho de uma grande família
que serviu em altos cargos governamentais.
Não sejas tolo a ponto de morrer por esta mulher,
que está tão abaixo de ti!
A família a leste tem uma filha virtuosa,
a sua beleza é motivo de orgulho em toda a cidade.
A tua mãe arranjará para que te cases com ela,
e isso será feito no espaço de um dia!”

O funcionário curvou-se novamente e retirou-se,
no seu quarto vazio suspirou incessantemente,
depois fez o seu plano, determinado a segui-lo,
virou a cabeça, olhou para a porta,
a dor apertando-o mais cruelmente do que nunca.

Naquele dia, os bois mugiram, os cavalos relincharam,
quando a noiva entrou no recinto verde.
E após a escuridão da noite ter chegado,
quando tudo estava quieto e as pessoas tinham-se recolhido,
ela disse: “A minha vida terminará hoje,
a minha alma partirá, deixando apenas o meu corpo.
Levantou a saia, tirou os sapatos de seda,
e atirou-se ao lago claro.

Quando o funcionário soube disso,
ele soube no coração que deviam separar-se para sempre.
Ele deu voltas ao redor da árvore no jardim,
depois enforcou-se no ramo sudeste.

As duas famílias concordaram em enterrá-los juntos,
enterraram-nos ao lado da Montanha das Flores.
A leste e a oeste plantaram pinheiros e ciprestes,
à esquerda e à direita colocaram árvores de guarda-sol.
Os ramos juntaram-se para formar um dossel,
folhas entrelaçadas umas nas outras.
E no meio delas, um par de pássaros voadores,
do tipo chamado patos-mandarins,
levantaram as cabeças e chamaram-se mutuamente,
noite após noite até ao romper do dia.

Os viajantes paravam para ouvir,
as viúvas levantavam-se e caminhavam inquietas pelo quarto.
E isto eu vos digo, homens de gerações futuras:
tomem cuidado e nunca se esqueçam desta história!

quarta-feira, 1 de janeiro de 2025

O Cheiro a Carne Putrefacta

O abutre é um animal necrófago, precisa pois que os outros animais morram para se poder alimentar, ainda que, sentindo que determinado animal está moribundo e que poderá morrer brevemente, ronda, cerca a presa, como que pressionando-a a morrer. 

Também há humanos que se comportam dessa determinada forma e, tal como os abutres, reaparecem, trinta anos depois, avisados que poderá estar na iminência de uma morte. 

Por amor, certamente, tal como abutre ama a carne putrefacta. 

Cada Família Desafortunada é Desafortunada à Sua Maneira



O livro "Ana Karenina" de Tolstoi começa com esta frase conhecida: "Todas as famílias felizes se parecem, cada família infeliz é infeliz à sua maneira".

Não acho que tenhamos sido infelizes, talvez desafortunados à nossa maneira. Desde pequeno que o fardo da vida nunca me foi propriamente leve, mas, agora, revela-se um bocadinho insustentável. 

Quando os timorenses fugiram dos indonésios para as montanhas, lembro de passar uma reportagem na televisão, de um jornalista que os acompanhou e de ser noite cerrada e todos caminharem em silêncio e, de repente, há uma criança que cai mas resiste a chorar, não fosse poder ser ouvida pelo inimigo.

Não é bem habituarmo-nos aos fortes revezes da vida, ou talvez seja, como o marinheiro que se habitua a lidar com o mar revolto, ou então, talvez seja uma espécie de dessensibilização, como aquela criança que cai e sabe que não pode chorar. Dessensibilização não no sentido de nos tornar insensíveis, mas a nos calejar e preparar para não sentir tanta dor.