domingo, 19 de janeiro de 2025

Só Não Acabamos com a Pobreza Porque Não Queremos

"O pior inimigo de um pobre é outro pobre que se acha rico e que defende aqueles que os tornam pobres", Pepe Mujica. 

E sobre a pobreza em Portugal, esta foi provavelmente a melhor entrevista que li esta semana, e os preconceitos associados, como a discriminação em relação às pessoas que recebem o rendimento mínimo, e lembrar que Portugal foi dos últimos países da Europa a ter este tipo de apoio.


"Há décadas que Carlos Farinha Rodrigues estuda as questões da pobreza e das desigualdades sociais. É, por isso, uma espécie de economista contracorrente. Foca-se nos excluídos, naqueles que estão à margem e que continuam a “não ter voz”. Todos os anos, este especialista analisa os dados divulgados pelo Instituto Nacional de Estatística (INE), a partir do Inquérito às Condições de Vida e Rendimento (ICOR), e atualiza o estudo Portugal Desigual, da Fundação Francisco Manuel dos Santos. Os números mais recentes revelam que, em 2023, viviam em Portugal 1,8 milhões de pessoas com menos de 632 euros por mês. O combate à pobreza deve ser um desígnio nacional, defende o professor do ISEG, porque os níveis de desigualdade e de pobreza que temos acabam também por ser “um obstáculo ao crescimento e ao desenvolvimento sustentado” do país.

Enquanto académico, como é que começou a interessar-se pelas questões da pobreza e das desigualdades sociais?

Fui fortemente influenciado no início da minha carreira por uma pessoa que me marcou muito – a professora Manuela Silva –, que me deu aulas no mestrado. Foi ela que me despertou para este tipo de questões. Hoje, não consigo conceber uma visão da economia que não tenha as pessoas em primeiro lugar. Os números são importantes, mas para melhorarmos as condições de vida das pessoas. Sinto-me muito bem nesta pele de um economista que pretende ser o mais rigoroso possível, mas com preocupações sociais. Pugno por uma sociedade mais justa. Esse é o meu ponto de partida.

Por defender isso, põe-lhe um rótulo político?

Não. Mas sei que há quem considere que estas questões da pobreza não têm a ver com o discurso económico, são marginais à economia. Eu continuo a achar que o [David] Ricardo tinha razão – o principal problema da economia é a distribuição dos recursos. E, portanto, pugnar por uma sociedade mais justa não é só uma questão de equidade. É também uma questão de eficiência. Hoje estou convencido que uma sociedade com os níveis de desigualdade e de pobreza que temos, é também um obstáculo ao crescimento e ao desenvolvimento sustentado. Pugnar por uma sociedade mais justa, com a menos pobreza e menos desigualdade, é também pugnar por uma economia mais eficiente e mais ao serviço das pessoas. Mas sei que o discurso que acabei de fazer não é aceite por uma parte muito significativa dos economistas. E a verdade é que o problema das desigualdades e da pobreza tem estado muito afastado do discurso principal da economia nos últimos anos.

Há 50 anos, era fácil ilustrar um artigo sobre a pobreza em Portugal. Havia muitos bairros de barracas, com miúdos sujos e descalços, em ruas onde o esgoto corria a céu aberto. Hoje, felizmente, já não é assim. Se tivesse de escolher uma fotografia para ilustrar a pobreza no país, qual seria? O que a representa melhor?

É verdade que a nossa situação não tem qualquer semelhança com o que acontecia antes do 25 de Abril. Demos passos muito grandes em termos das condições de vida da população portuguesa e dos residentes no país. Se eu quisesse ter uma fotografia que ilustrasse de forma mais vincada o que é a realidade da pobreza em Portugal, escolheria uma que retratasse crianças que têm dificuldade no acesso à escola e que têm dificuldades no acesso a uma alimentação fundamental. O nosso problema principal, em termos de pobreza, continua a ser a pobreza das crianças e dos jovens. Temos mais de 300 mil crianças em situação de pobreza. É algo horrível! Mas também é o principal problema, porque potencia a reprodução da pobreza para os anos futuros. É aí que temos de atacar se queremos resolver o problema.

Há quem diga que são precisas cinco gerações para sair do ciclo de pobreza.

Sim, é verdade. Existem estudos que apontam nesse sentido. Demorar mais ou menos tempo depende da vontade política para encarar o problema a sério. É verdade que combater a pobreza das crianças e dos jovens é muito mais difícil do que, por exemplo, combater a pobreza dos idosos. Quando combatemos a pobreza dos idosos, temos claramente identificada uma questão de recursos económicos. Podemos ter, simultaneamente, um conjunto de necessidades em termos de integração social e de acesso a bens e serviços de primeira necessidade, mas tudo isto está muito centrado na população em situação de pobreza que é idosa. Quando olhamos para as crianças, temos um problema mais complicado. Uma criança não é pobre em si mesma. É pobre porque vive numa família pobre. Isso significa que tem de haver, simultaneamente, medidas para as crianças e medidas para as famílias onde elas estão inseridas. É uma visão muito mais integrada de como abordar as condições de vida das crianças.

É mais oneroso?

É mais difícil e também mais oneroso, possivelmente. É por isso que tem sido mais difícil de combater. Deixe-me ser também um pouco cínico. Dá menos votos no imediato. Mas não tenho dúvidas nenhumas, e é isso que está consagrado na Estratégia Nacional de Combate à Pobreza, que reduzir a pobreza das crianças e dos jovens deve ser o nosso principal objetivo, se quisermos ter uma redução efetiva da pobreza no médio e longo prazo.

Do seu ponto de vista, quais foram as medidas que mais permitiram combater a pobreza?

Temos, infelizmente, em Portugal uma sociedade que ainda é muito tolerante em relação à pobreza. Quando há uma tragédia, a sociedade evidencia uma solidariedade enorme, uma disponibilidade quase imediata de participar. Mas, em relação à permanência de fatores de pobreza, existe uma tolerância muito grande. Costumo dizer que há uma frase assassina no nosso país, que é: pobres sempre houve e sempre haverá. Não é verdade! Haverá enquanto nós quisermos. Nós, enquanto sociedade, temos os recursos, temos as condições para acabar com a pobreza. É fundamental quebrar esta mentalidade. Nesse sentido, a existência de um conjunto de medidas implementadas nestes últimos anos representou um salto muito grande. A existência do Rendimento Social de Inserção (RSI) e do Complemento Solidário para os Idosos (CSI) são medidas, que poderemos discutir a sua eficiência, mas que, acima de tudo, traduzem um conceito muito importante que é: a pobreza não é um problema exclusivamente dos pobres, é um problema de todos nós, é um problema do conjunto da sociedade. Ter uma sociedade com os níveis de pobreza e de desigualdade que temos torna-nos a todos, coletivamente, uma sociedade mais pobre, mais enfraquecida na sua vivência democrática, nos seus valores, na sua coesão social.

Na mensagem de Ano Novo, o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, disse que “a pobreza, nos dois milhões de portugueses, é um problema de fundo estrutural que a democracia não conseguiu resolver”. Porque é que tem sido tão difícil acabar com a pobreza em Portugal? Há pouco, referiu a falta de vontade política. É só isso mesmo?

Acho que esse é o primeiro aspeto. Houve falta de vontade política ou, se quiser, falta de uma perceção muito clara, de que nós, ao reduzirmos a pobreza e as desigualdades, estamos também a contribuir de forma muito importante para ter um crescimento e um desenvolvimento económico mais acentuado. Esta separação entre o que parecem ser variáveis económicas e variáveis sociais, é algo que nos custa muito caro. Aliás, isso traduz-se muitas vezes naquela frase que muitos economistas gostam de dizer e de que discordo: é preciso crescer primeiro, para distribuir depois.

Essa é a retórica que impera.

Sim. É a retórica oficial. Na minha opinião, essa frase está errada. O processo de criação de riqueza não é independente do processo da sua distribuição. E, portanto, temos de olhar para as duas coisas em simultâneo. E é isso que tem faltado também.

Há, então, uma responsabilidade que não é só do Estado, é também dos privados.

Claramente. Quando falo na necessidade de tornar o combate à pobreza um desígnio nacional, não estou nem a desculpabilizar o Estado em relação ao pouco que tem feito, nem a dizer que todo esse combate passa pelo Estado. Como lhe digo, a ideia de tornar o combate à pobreza um desígnio nacional, é que todos somos responsáveis pela situação de pobreza que temos. Claramente, isso implica, em primeiro lugar, a intervenção do Estado a nível central e implica um trabalho e uma intervenção do poder local que é fundamental no combate à pobreza porque está mais próximo, conhece a realidade. Implica ainda um trabalho profundo das instituições de solidariedade social, que muitas vezes atuam só como forma complementar da segurança social. E implica a própria intervenção das empresas.

De que forma?

Hoje já existem empresas que têm uma intervenção social muito grande. Eu faço parte da coordenação científica do Proinfância, que é um programa da Fundação la Caixa, que tem um papel importantíssimo no combate à pobreza. Quando falamos em responsabilidade social das empresas, há duas componentes. Uma primeira é a responsabilidade social com os próprios trabalhadores dessas empresas. E a segunda é uma responsabilidade social com o conjunto da sociedade. Também aí têm sido dados passos muito positivos. Há um conjunto significativo de empresas que têm não só uma preocupação acrescida com as questões sociais, mas uma intervenção direta, e muitas vezes uma intervenção em termos financeiros, de participação em ações concretas, para tentar reduzir a pobreza e a exclusão social.

Não corremos o risco de estar cada um a trabalhar para o seu lado?

É por isso que é necessário uma Estratégia Nacional de Combate à Pobreza a funcionar a sério, para criar todas essas sinergias.

Ainda não está a funcionar a sério?

A comissão liderada pela Sandra Araújo, que é a coordenadora nacional, tem feito um bom trabalho, tentando a ligação com a sociedade civil e a coordenação com os vários organismos da Administração Pública, o que nem sempre é fácil. Mas a ideia da estratégia era ser uma forma de pôr em diálogo e em colaboração os vários intervenientes no combate à pobreza e à exclusão social.

Uma medida emblemática de combate à pobreza foi, como já referiu, o Rendimento Social de Inserção (RSI). Houve muita discussão pública em torno deste apoio social. Os beneficiários ficaram estigmatizados?

Eu fiz parte do grupo que discutiu inicialmente a criação do RSI, ainda no tempo do Governo do engenheiro António Guterres. Nessa altura, eu estava convencidíssimo que a medida ia ser profundamente consensual pelos objetivos e pelos valores envolvidos. Acho que nunca me enganei tanto na vida, em termos de avaliação de uma política pública. Essa medida gerou um profundo debate político que, em muitos casos, não foi nada elegante. E, acima de tudo, gerou uma estigmatização sobre os beneficiários do RSI, que ainda perdura. Quando olhamos para uma medida como o RSI, devemos perceber em primeiro lugar que somos dos últimos países da União Europeia a adotar uma medida semelhante.

Existe também noutros países?

Existe em praticamente todos os países da União Europeia, com variantes na sua forma de implementação. É uma medida de primeira necessidade em relação às pessoas que não têm quaisquer recursos. Ninguém deixa de ser pobre por receber o RSI. O valor de referência do RSI é bastante abaixo do valor do limiar de pobreza. Portanto, não foi feito para tirar as pessoas da pobreza. Foi feito para aliviar as condições de vida dos mais pobres entre os pobres. Nesse sentido, é uma medida extremamente generosa. Acima de tudo, permite, simultaneamente, a transferência de alguns recursos financeiros para as famílias e, ao mesmo tempo, um processo de integração social. A essência do RSI tem muito a ver com aquele provérbio, que dizem que é chinês: se uma pessoa tem fome, não lhe dês o peixe, ensina-a a pescar. O objetivo do RSI era fazer as duas coisas ao mesmo tempo. Era dar o subsídio e, acima de tudo, ter um processo de integração das pessoas.


E funcionou?

Eu diria que o processo de integração das pessoas foi o que funcionou menos bem. Há muito a fazer aí. Deveríamos pensar o RSI em termos de reforçar esta segunda componente.

Precisa de uma reforma?

Precisava de ser repensado para que estas duas componentes tivessem papel ativo. A discussão política e a estigmatização dos beneficiários do RSI é, de facto, algo extremamente preocupante. Se me perguntarem: existe fraude no RSI? Certamente que existe, como existe em todas as prestações sociais. Mas estou convencido que a fraude no RSI é muito menor que em outras prestações sociais. Por um lado, os montantes envolvidos são extremamente baixos e, em segundo lugar, nunca houve uma medida tão vigiada quanto esta em Portugal. Toda a gente tem os olhos em cima do RSI. Em síntese: o RSI, na minha opinião, é importante, porque reduz a intensidade da pobreza. Não é uma medida que resolva o problema da pobreza em si mesmo, porque ninguém deixa de ser pobre por receber o RSI. Nós, claramente, deveríamos reforçar a componente de inclusão e de inserção social dessas pessoas, para se tornar uma medida transitória.

Quando lhe perguntei que fotografia escolhia para retratar a pobreza, escolheu as crianças. Mas os dados divulgados pelo INE, no inquérito às condições de vida e rendimento, mostram que há uma redução significativa da incidência de pobreza nas crianças e jovens. O que é que contribuiu para isso?

Esse talvez seja o aspeto mais positivo dos dados mais recentes publicados pelo INE. Explica-se, por um lado, com o reflexo de algumas políticas que foram implementadas. Isto são dados referentes a 2023 e houve um conjunto de medidas implementadas ao nível das creches e dos apoios às crianças. Claro que têm um efeito sempre muito limitado, mas com a vantagem de serem muito dirigidos ao público-alvo. Espero que isto se prolongue no futuro porque, de facto, este é o elemento mais importante deste inquérito em termos de resultados. É o caminhar na direção correta a redução da pobreza infantil.

Em contrapartida, temos um aumento da pobreza nos idosos. Como é que se explica, tendo havido medidas também específicas para esta população, nomeadamente o aumento das pensões?

Não sabemos ainda. Uma explicação possível é que houve alterações da metodologia de cálculo das pensões de velhice. Nos inquéritos, as famílias são inquiridas sobre os seus rendimentos para calcularmos o seu rendimento disponível, os indicadores de pobreza, etc. De há uns anos a esta parte, o INE tem aperfeiçoado a forma de recolha de informação, fazendo o cruzamento da informação declarada pelas famílias com dados administrativos, nomeadamente com os dados fiscais do IRS. O ano 2024 foi o primeiro em que esse processo chegou às pensões de velhice. Isso traduziu-se numa redução ligeira do nível de pensões. Estamos perante um caso que pode ser claramente uma quebra de série estatística e, portanto, os dados não são diretamente comparáveis.

Mas, com essa nova forma de cálculo, os números são mais reais?

São números mais reais. Mas tem de ser averiguado se, de facto, a razão é exclusivamente esta. Se for, não é muito preocupante, porque não se vai repercutir para o futuro. É um recomeçar da série. Mas há outras explicações possíveis. Ainda não posso demonstrar, porque só vamos ter acesso aos microdados deste último inquérito lá mais para o meio do ano. Mas a linha de pobreza passou de 591 para 632 euros por mês, entre 2022 e 2023. Esta é a linha que separa os pobres dos não pobres. Ou seja, a linha de pobreza subiu 7%. Nesse intervalo de rendimento, entre os 591 e os 632 euros, em 2022, estavam milhares de pensionistas. Eram pessoas com pensões muito baixas, mas que lhes permitiam estar um bocadinho de nada acima da linha da pobreza. Uma das questões que pode ter acontecido e que tem de ser investigado, é que algum deste acréscimo da pobreza dos idosos tenha resultado de pessoas que anteriormente estavam ligeiramente acima da linha de pobreza, mas porque os seus rendimentos subiram menos do que a linha de pobreza, agora passaram a ser pobres. É expectável que, em 2024 e 2025, o conjunto de medidas que foram implementadas tenham um impacto significativo na pobreza dos idosos. Os aumentos do CSI repercutem-se mais tarde.

Outro problema que salta à vista é a proporção da população empregada que vive em situação de pobreza (9,2%). O que é que mais contribui para esta situação? Os salários baixos? Ou há outros fatores?

O salário mínimo está sempre acima do limiar de pobreza e tem tido aumentos significativos. Isto significa que, quando temos um trabalhador em situação de pobreza, desde que seja um trabalhador normal, que ganhe pelo menos o salário mínimo, ele não deveria ser pobre. Mas a questão da pobreza não diz respeito só a ele, diz respeito à sua família. Se eu tiver um trabalhador que é casado, tem três filhos e o único rendimento dessa família é o salário mínimo dele, obviamente que essa família é pobre. Mas, quando tentamos encontrar as principais razões para a existência destes trabalhadores que são pobres em Portugal, mais uma vez, o que temos é um indicador de disfuncionalidades no nosso mercado de trabalho. O nosso mercado de trabalho, em alguns aspetos, não funciona bem. Isso tem a ver com o facto de termos ainda largos assentes em baixos salários. Temos, em muitos casos, condições laborais extremamente deficientes do ponto de vista da qualidade do trabalho. E, em alguns casos, temos a não valorização das qualificações dos trabalhadores. Quando vamos ao supermercado e vemos nas caixas muitos jovens licenciados, perguntamos: como é que isto é possível? O mercado de trabalho ainda não está a ser capaz de valorizar integralmente essa melhoria das qualificações.

Mas os dados mostram que ainda vale a pena estudar.

Esse é talvez o aspeto mais indiscutível de todos os estudos que eu tenho feito e de todos os estudos que conheço em Portugal. Os níveis de qualificação, os níveis de ensino, são o principal fator de combate à pobreza em Portugal.

A educação ainda é o principal elevador social?

Não tenho dúvidas nenhumas sobre isso. Claramente, a educação continua a ser o principal fator de proteção em relação às situações de pobreza. Vale a pena estudar. Mas hoje começamos a ter uma situação que há uns anos era completamente residual. Existem 6,5% de pessoas com nível de qualificação superior, em situação de pobreza. Há 15 anos, isso era impossível. Começamos a ter alguma dificuldade de ajustamento neste processo de passagem do sistema de ensino para o mercado de trabalho. Isso também nos exige, se calhar, repensar o tipo de oferta de cursos que fazemos, que não se ajustam tão rapidamente quanto deveriam às necessidades do mercado de trabalho.

O relatório global da OCDE sobre as competências dos adultos revelou que só 40% dos adultos portugueses compreendem textos simples e matemática básica. Esta iliteracia contribui para a pobreza em Portugal, ou é uma consequência da pobreza?

Acho que é as duas coisas. Fiquei um pouco surpreendido com esses dados. Não esperava que a nossa posição, em termos relativos e em termos absolutos, fosse tão baixa. De alguma forma, são dados contraditórios com o aumento das qualificações que temos tido, com os resultados que temos no PISA, etc. Não sou especialista em questões de educação, mas acho que deveria aproveitar-se para tentar perceber melhor isso. Sou professor há 40 anos e sei comparar os alunos de hoje com os alunos que tinha quando iniciei a minha carreira. Os alunos hoje não são nem mais nem menos inteligentes do que eram há 40 anos. O que às vezes temos é formas de expressar e direcionar a inteligência que não está devidamente contemplada. Reconheço que temos problemas de iliteracia. Mas acho que também falta uma política cultural que tenha em atenção a valorização do nosso património, que tenha em conta a valorização da cultura, não como instrumento imediato de progressão ou de ganhar com isso, mas como uma forma de ser uma pessoa mais completa e de ter uma maior compreensão da sociedade em que se vive. Voltando à questão de transformar o combate à pobreza num desígnio nacional, também aqui o maior desafio é o da mudança de mentalidades, que passa muito pela capacidade de perceber a realidade em que estamos inseridos nas suas várias dimensões.

E como se pode fazer isso?

Deixe-me dar-lhe um exemplo que eu acho que é muito elucidativo. Quando falamos com pessoas que são indiscutivelmente pobres, que têm mais de 35 anos, e lhes perguntamos se se consideram pobres, há uma resposta sistemática. “Não. Eu sou remediado. Pobres eram os meus pais, que uma sardinha dava para o almoço de três pessoas.” A pobreza extrema que tínhamos antes do 25 de Abril ainda está muito presente nessas gerações. Há aqui uma mudança cultural que ainda tem de ser ganha. Aquela ideia de que temos de ganhar as pessoas para a pobreza é, acima de tudo, um desafio à mudança de mentalidades.

Os pobres têm voz em Portugal?

Não. Mesmo as instituições de solidariedade social, dificilmente podem falar em nome dos pobres. Acho que até agora não temos conseguido ouvir a voz dos pobres, efetivamente. Mesmo pessoas como eu e outros investigadores que se dedicam a estas áreas, obviamente temos uma visão de fora. Muitas vezes, é difícil compreender as várias dimensões da pobreza. Dar voz aos pobres é algo que eu acho fundamental para conhecermos melhor a pobreza e, acima de tudo, para a alterarmos.

A Estratégia Nacional pretende fazer baixar a taxa de risco de pobreza para os 10% em 2030. É possível chegar aí?

O objetivo da estratégia era aproximar-nos dos países com menores taxas de pobreza da União Europeia. Eu diria que, ao ritmo que estamos para alcançar resultados, o objetivo dificilmente será alcançado. Mas é um esforço que tem de ser feito.

Carlos Farinha Rodrigues | Jornal de Negócios (revista)

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