Numa overdose de idas ao hospital consecutivas, e com uma dia ao centro de vacinação pelo meio, tropeço em duas coisas que julgava que já estariam erradicadas no nosso país, hábitos que julgaria extintos, e, se não fosse pelo senso comum, então, ao menos que tivesse sido pelo poder da lei, mas parece que estava a só a ser ingénuo porque parece que há hábitos que custam a ser extintos.
A questão tem que ver com os símbolos religiosos nos hospitais. E logo à partida há dois interesses que podem parecer colidir: o da liberdade religiosa e o da laicidade do Estado. Vivemos num país com liberdade religiosa. Cada um pessoa professar a religião que quiser, acreditar no Deus que melhor lhe convier, que não pode ser discriminado por isso. Tudo bem, nada contra. Mas também vivemos num país que, supostamente (e é mesmo supostamente mas pronto, façamos de conta) é laico. E isto quer dizer que já não vivemos num país onde a religião é lei, como ainda há tão pouco tempo acontecia em que era obrigatório, ao lado do quadro com a fotografia do ditador, um belo crucifixo. Portanto, o Estado nem é católico, nem protestante ou testemunha de Jeová; o Estado não tem religião nenhuma e, cada pessoa é livre de ter ou não ter nenhuma religião.
E como é que um Estado se exibe verdadeiramente laico? É simples, não tomando nenhum partido religioso, não exibindo símbolos que violem essa imparcialidade. Para tratar todos por igual, as diferentes religiões, os ateus e agnósticos, é manter uma neutralidade religiosa.
Como vivemos demasiado tempo num Estado religioso, esses resquícios de parcialidade eram olhados sem estranheza, afinal, a quase totalidade da população era católica. Mas, libertados desse jugo de 48 anos de ditadura fascista e católica, em que os crucifixos eram obrigatórios, as coisas começaram a mudar e era preciso que o Estado se mostrasse, efetivamente, laico, e que não o fosse só no papel.
Foi então que, por exemplo, os crucifixos nas escolas e hospitais começaram a incomodar, não porque pessoas como eu não respeitam a liberdade religiosa dos outros, mas porque consideramos que, quando vamos a um departamento público, seja uma escola, hospital, ou repartição de finanças, estando em espaço neutro, este tem que ser isento e livre de manifestações religiosas. Cada pessoa, individualmente, pode levar o seu terço ao pescoço, uma burka, ou o que lhe apetecer, mas o espaço em si, bem como todos aqueles que representam o Estado, não, porque o Estado tem o dever e obrigação de representar todos por igual, sejam da religião da maioria, de outra religião qualquer, ou, como eu, que não têm religião nenhuma.
Disse que nós vivemos num Estado "alegadamente laico" porque não o é na prática. Diz-se laico mas é só mesmo para constitucionalista ver. Um Estado verdadeiramente laico começa logo por não poder ter feriados religiosos! E um Estado verdadeiramente laico, não pode ter uma RTP, televisão pública, a transmitir em direto, todas as semanas, celebrações católicas! É uma completa aberração! A televisão pública até poderia ter programas sobre diferentes religiões, sobre diferentes pensamentos filosóficos, ouvir a voz dos agnósticos e dos ateus, mas um Estado laico não pode, de todo, exibir celebrações religiosas seja de que religião for! Talvez lá chegaremos um dia, quando a religião se extinguir na Europa, e cada vez está mais perto disso, mas, entretanto lá temos que gramar com este absurdo.
Contudo, convém lembrar que a questão dos crucifixos, já fez jurisprudência em 2009, quando o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, deu razão e decretou uma indemnização a uma mãe italiana que reclamou do crucifixo na escola dos filhos.
É então um pouco incompreensível para mim, quando entro numa enfermaria de um hospital público, e deparo-me com uns quantos bonecos da santinha da Fátima. Eu, se quiser ver arte sacra vou à igreja, ainda que a bíblia, ironicamente, condene o uso de imagens, mas não tenho de levar com bonequinhos religiosos quando vou ser tratado num hospital! Eu se fosse crente ia rezar à igreja porque tendo fé certamente que Deus me salvaria da doença; mas sendo um herege sem religião vou-me tratar ao hospital, por isso cada macaco no seu galho. À religião o que é da religião, ao hospital o que é do hospital.
Mas, ainda não refeito ainda desta surpresa, qual não é o meu espanto quando, no dia seguinte me dirijo ao centro de vacinação da minha região, no pavilhão multiusos de Gondomar, e, enquanto aguardo aqueles trinta minutos depois de levar a segunda dose da vacina para a COVID-19, fico boquiaberto quando, num grande televisor aparece o autarca do PS a fazer propaganda eleitoral!
Mas que merda é esta? Um centro de vacinação é num pavilhão para permitir maior afluência e vacinar o maior número de pessoas, mas é na mesma como se fosse um hospital, é um sítio do Estado, e portanto deve ser neutro e isento de manifestações ou propagandas políticas!
Mas isto não deixa de ser ainda mais gravede, quando o senhor presidente da câmara de Gondomar, Marco Martins, se mostrou, pasme-se!, muito incomodado, com as bandeiras vermelhas do Partido Comunista Português, aquando este celebrou os cem anos do partido.
Vivemos num país plural, de liberdade religiosa e política, e, felizmente, que longe vão os tempos do partido único fascista da ditadura religiosa, mas um autarca que se mostra muito incomodado com a propaganda política dum outro partido, ironicamente, não se sente incomodado por violar as regras da Comissão Nacional de Eleições e andar a fazer propaganda eleitoral num centro de vacinação público!
Acho que é admirável o que o nosso país evoluiu, a todos os níveis, nestes últimos quarenta e sete anos de democracia. Nas infraestruturas, acessibilidades, do ponto de vista da educação, no acesso aos cuidados de saúde, na cultura, etc. Mas, infelizmente, ainda há velhos hábitos, tão entranhados e até olhados com normalidade, que parece que custa muito ser erradicados duma sociedade plural, democrática e respeitadora de todos.
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