domingo, 8 de agosto de 2021

Ironias de um País Ingrato que Não Merece os Seus Heróis


Se há algo que a História nos tem ensinado é que não aprendemos nada com a História.  

Otelo Saraiva de Carvalho, arquiteto do 25 de Abril, morreu a 25 de Julho. António Costa e Marcelo Rebelo de Sousa, que são primeiro-ministro e presidente da república graças a Otelo ter derrubado a ditadura, acharam por bem que acabar com 48 anos de ditadura não era feito suficiente para o militar de Abril merecer o dia de luto nacional. 

Só que, se olharmos para trás, parece que tudo merece dia de luto nacional: cantar o fado mereceu dia de luto a Amália. Jogar à bola mereceu dia de luto nacional a Eusébio. Até uma religiosa mentirosa compulsiva, sim, um país laico meteu-se nesses assuntos da religião, e achou por bem conceder-lhe dia de luto nacional! Já o fazedor do 25 de  Abril não teve direito à homenagem de um mísero dia de luto nacional para lembrar a memória do seu feito.

Ah, mas ó Konigvs, tens de compreender que ele foi uma figura polémica...

Claro que compreendo. Otelo manteve-se sempre fiel aos princípios que levaram os militares a fazer o 25 de Abril. Devolver o poder ao povo, construir um país socialista, fazer a reforma agrária. Compreendo também que o grande mal de Otelo foi lutar pelo seu sonho e não arranjar um tacho num qualquer partido, e teria sido tão fácil ir para qualquer um deles, até porque, se calhar, foi convidado por quase todos. E certamente que se estivesse filiado no PS ou PSD, aí sim, certamente teria sempre direito ao seu diazinho de luto nacional, porque afinal foi o herói de Abril! Mas Otelo teve o descaramento de não se deixar corromper e a política tem sempre muito medo de pessoas com coluna vertebral. 

Diz-se que Otelo foi polémico. Se calhar foi, polémico principalmente para todos aqueles, que não são poucos, e que odeiam o 25 de Abril e os cravos vermelhos.

Mas se Otelo foi "polémico", o que dizer então da figura do terrorista Spínola? Spínola tudo fez, depois do 25 de Abril, para instalar uma nova ditadura de extrema-direita. Spínola liderou em 1975 um movimento terrorista, o Movimento Democrático de Libertação de Portugal (MDLP), que andou a colocar bombas em sedes do partido comunista (e socialista), que mataram diversas pessoas, incluindo o famoso padre Max e Maria de Lurdes e tantos anos volvidos ninguém foi responsabilizado. 


Mas ser um terrorista e ter a ousadia de querer, de novo, instalar uma ditadura fascista em Portugal, não foi polémico o suficiente para negar a Spínola o direito de ter também o seu diazinho de luto nacional. Otelo é que foi polémico por se manter fiel aos princípios do 25 de Abril.

Fez-se o 25 de  Abril, mas rapidamente meteu-se essa ideia romântica de devolver o poder ao povo na gaveta. O povo rapidamente ficou a chuchar no dedo e o dinheiro novamente começou a ser desviado do esforço de todos, para o bolso de alguns, muito poucos, ficarem com o dinheiro todo. 

Cavaco Silva, ex-primeiro-ministro e ex-presidente da república, que nos tempo do fascismo foi dar o nome de bom comportamento à PIDE, também negou a pensão a Salgueiro Maia, outro herói do 25 de Abril (que também não teve direito a dia de luto nacional) enquanto a concedia a dois ex-PIDE pelos "altos serviços prestados". 

Mas depois há coisas, de facto, muito irónicas. Faz-se o 25 de Abril, acabou-se com 48 anos de ditadura, inscreveu-se na Constituição que os partidos fascistas são proibidos, mas o Tribunal Constitucional não viu nada de errado com o racista, homofóbico e xenófobo partido Chega. Nem viram nada de errado na entrega de milhares de assinaturas falsas para fundar o partido, processo que ainda está a ser investigado pelo Ministério Públiico. Nem ninguém viu nada de errado com a lista que permitiu a Ventura ser eleito deputado e que não cumpria os critérios.

E, ironia das ironias. Dias depois da morte de Otelo Saraiva de Carvalho, ficamos a saber que, pela primeira vez, na recente história da democracia portuguesa, um bombista terrorista de extrema-direita do MDLP vai sentar o cu na suposta casa da democracia, eleito por um partido ilegal. Um bombista terrorista de extrema-direita vai substituir um deputado racista eleito por um partido ilegal. 

Otelo (e os militares) acabaram com a ditadura salazarista devolvendo-nos a liberdade, mas nunca devemos tomar a Liberdade por garantida. E a mim revolta-me ver este estado de coisas. Revolta-me ver um país ingrato com quem nos libertou dum jugo de repressão, de fome e de morte. E revolta-me que, apesar de teros tido quarenta e oito anos de ditadura repressiva, apareça um partido fascista ilegal, que os juízes do Tribunal Constitucional simplesmente não viram nada de errado, e que tenha levado 500 mil portugueses a votar no seu líder racista, homofóbico, xenófobo e fanático religioso nas últimas presidenciais. 

 São tudo sinais a que deveríamos estar muito atentos, porque, como se sabe, "quem adormece em democracia, acorda em ditadura".

# Spínola e Os Ataques À Bomba Patrocinados pela Igreja Católica em 1975

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