sábado, 27 de abril de 2024

Quantas Mais Opções de Escolha Temos, Mais Infelizes Somos

 "Antes era um viajante, daqueles que pegam na mochila e dedicam-se a explorar o mundo. Depois tornou-se conferencista e participante em seminários e simpósios. “Até que um dia deixei de ver sentido em ter de atravessar continentes para partilhar ideias com os meus colegas”, reflete via Zoom Svend Brinkmann, psicólogo, filósofo e professor na Universidade de Aalborg, que se tornou num guru do JOMO, a alegria de perder coisas (por oposição ao FOMO, o medo de perder coisas). Precisamente "A alegria de perder coisas (Koan)", um exercício intelectual que fala da arte do autocontrolo numa época sem limites, é o título do novo livro do escritor dinamarquês, que se inspira na Grécia Antiga para abordar os problemas da vida moderna.


Devemos repensar a forma como vivemos?

Sim. Porque no século XX desenvolveu-se a sociedade de consumo e ficámos com a ideia de que uma boa vida consiste em consumir, experimentar e viajar o máximo possível, uma sociedade de excessos. O sociólogo Zygmunt Baugman costumava chamá-la a sociedade do cartão de crédito, a do excesso, da abundância, de forma que podes consumir e comprar coisas mesmo antes de poderes pagar por elas.

E o que propõe?

Creio que é óbvio que precisamos de mudar, mas isso é extremamente difícil. Por isso, penso que é necessário explorar uma felicidade mais profunda numa vida em que deixas de perseguir mais e mais o tempo todo.

E isso é possível a nível individual? Parece difícil...

Muito difícil. E essa é a fraqueza da minha abordagem, já que formulo isto um pouco como um livro de autoajuda e posso dar essa impressão de que cada indivíduo tem de mudar. E na realidade, parece-me um problema coletivo, que exige uma ação política. Mas, mesmo assim, precisamos de articular uma visão positiva sobre uma boa vida com menos, para que faça parte da grande conversa que uma sociedade democrática deve abordar sobre como devemos viver juntos. Claro que, como indivíduo, sempre podes fazer algo.

E enquanto promovemos essa conversa, o que sugere?

Posso falar sobre mim, sobre qual foi o meu ponto de viragem, quando comecei a estudar e a ler sobre estudos que me diziam que se ganhasse mais dinheiro não seria mais feliz porque já era suficientemente rico. A minha vida mudou.

E vi que, na realidade, ter mais opções não nos torna mais felizes. Apenas provocará que tenhamos mais dúvidas sobre o que escolher. O psicólogo Barry Schwartz já dizia que, pelo menos nos países democráticos ricos do mundo, quando ampliamos as opções materiais, as pessoas tornam-se menos felizes. Ensinam-nos que somos felizes se temos algo que é exclusivamente nosso, mas acontece que isso não é verdade. É muito melhor escolher entre três coisas boas do que entre trinta.

O que é uma boa vida?

Não consigo encontrar uma definição melhor do que a eudaimonia de Aristóteles, uma atividade da alma de acordo com as virtudes, e isso significa uma vida ativa, de fazer, de explorar, de adquirir conhecimento, de amar, de contribuir para as comunidades das quais fazes parte. Portanto, não podes ser feliz se fores uma má pessoa. Temos de agir de forma ética, com moderação, coragem e sentido de justiça.

É muito crítico em relação ao movimento de simplificar a vida.

O que acontece é que essa filosofia acabou por se tornar uma tendência e um grande negócio. E acho que isso é sintomático do que acontece na sociedade atual, que mesmo tentando ir contra os problemas acabas por te tornar parte dessa sociedade que criticas. Não tenho nada contra esse movimento em particular. Apenas acho que é um sintoma do que acontece e do que pode acontecer com o meu próprio livro, inclusive. Se a alegria de perder coisas se tornar numa nova tendência, terei perdido, de certa forma.

Espera que o JOMO se torne numa tendência?

Não sei. De repente, existe a possibilidade de que exploda e se torne algo grande, uma grande tendência. Não sei, talvez depois da sua entrevista comigo, as pessoas me convidem para Espanha para falar sobre a alegria de perder algo e me tornem milionário ensinando a viver uma vida de perder algo. Esse é a paradoxo.

Como explicaria a alegria de perder coisas?

Seria uma vida centrada no que é realmente importante, e só podes fazer isso se aprenderes a habilidade de perder coisas, de dizer não, de não sobrecarregar o teu calendário com projetos e coisas para fazer. Se viveres assim, talvez não desesperes quando vires que outras pessoas fazem mais do que tu no trabalho ou em qualquer área. O medo de perder coisas é essa ideia de que me comparo com os outros e vejo que fazem mais do que eu, que experimentam mais do que eu, que têm mais sucesso do que eu. E isso leva-me à frustração. Porque então penso que tenho de mudar de trabalho, de parceiro, de cidade, etc. E a alegria de perder algo é saber que talvez o que precisas para viver uma boa vida já está aqui. É muito provável que já tenhas o necessário se te concentrares no que já é importante.

O smartphone é o melhor instrumento para o FOMO.

Sim, sim. É uma tecnologia que nos convida a temer que estamos a perder algo. Ensina-nos a nunca estarmos satisfeitos com o que temos porque nos bombardeia com imagens de outras pessoas que são mais bonitas, mais ricas, que fazem mais coisas do que nós. É uma máquina de comparação.

Acha que já está a viver uma vida de JOMO?

Dá-se a paradoxal situação de que, graças aos livros e às coisas que faço, agora sou convidado para dar entrevistas e palestras, para escrever artigos, e assim torna-se muito difícil para mim desfrutar da alegria de perder coisas. Escrevi sobre isso e criei um problema para mim mesmo. Por isso não posso dizer que a minha vida tenha mudado para uma forma de vida mais calma e comprometida. Portanto, ainda tenho de ler o meu próprio livro para me lembrar do que é verdadeiramente importante.

Uma vida mais lenta?

Poderia dizer que sim. Muitos sociólogos têm analisado o que chamam de grande aceleração social dos nossos tempos: consumimos comida rápida, fazemos sestas energéticas, temos encontros rápidos... Realmente é difícil encontrar um aspeto da vida que não tenha acelerado o seu ritmo. Tudo está mais rápido. E temos a tentação de perguntar por que nos contentar com menos se podemos experimentar mais. Como posso saber se tenho o que me convém se ainda não experimentei tudo? Bem, nunca podes experimentar tudo. Por isso, tens de te comprometer com algo. Como sei que é o certo? Não sei, mas assim é a vida.

Defende no final do livro encontrar a beleza no simples. 

Creio que temos de desenvolver uma ecologia da ação. Sou muito cético em relação à possibilidade de resistir às tentações. A única solução passa por construir uma ecologia da tua vida na qual não sejas tentado. Por isso, em vez de te ensinares a resistir à tentação de verificar as tuas redes sociais, tenta não estar nas redes sociais. Se não conseguires resistir à tentação de olhar para o telemóvel, tira-o. Precisamos de lugares públicos, parques, bibliotecas, lugares para nos encontrarmos, para estarmos juntos, para estudarmos, para trabalharmos, para pensarmos...

“Tener muchas opciones nos hace infelices” | David Dusster | La Vanguardia (26 de Abril 2024)

domingo, 21 de abril de 2024

A Tua Mão Contra a Minha

"Os dias passam
Sem que nada mude 
As minhas palavras desaparecem 
Para pintar a constante falta 
Do teu fogo que se agita 
E do Além que nos espera

Escapando de outra hora 
Ouço a tua voz familiar 
Afogada num intenso 
Silêncio despovoado 
Longe do teu coração 
Nas manhãs geladas 
Paradas no tempo


A noite aperta-me 
Esquecer tudo 
Para finalmente lembrar-me 
Vagueio sem poder 
Encontrar o meu caminho 
Afundando-me 
Em cada vez mais escuridão

A tua mão contra a minha 
As memórias incandescentes 
Do teu rosto sorridente 
E tudo para poder revivê-las...



Flamme Jumelle / Alcest (2024)

sábado, 13 de abril de 2024

A Imparável Extinção dos Passatempos

"Na era do culto à produtividade e à otimização, há algo pior do que não fazer nada, e é fazê-lo sem um propósito económico, terapêutico ou produtivo. Fazer qualquer coisa puramente por prazer, sem método ou plano, parece ser o maior dos pecados. Aqueles que ainda mantêm um passatempo não remunerado e não têm intenção de o fazer são a resistência.


Começa a última temporada de The Crown e Clara S. [que prefere não ser identificada], de 37 anos, entra em modo turbo. Concentra-se. Dobra a velocidade de reprodução da série. Abre uma folha de cálculo no computador e a sua conta do X (antes Twitter) no telefone. No primeiro ecrã, sucedem-se as idas e vindas da nobreza britânica e nas outras duas multiplicam-se as notas, os dados, as somatórias. Clara é realmente rápida no que faz e consegue ser a primeira a encontrar falhas no guião; a separar o trigo do joio, a realidade da ficção. Ninguém o faz melhor do que ela. As suas notas irão aumentar a sua marca pessoal como especialista na realeza britânica e alimentar o guião de vários podcasts especializados em famílias reais. Ela sente-se sortuda, transformou o seu hobby num trabalho. Também escreve artigos em várias revistas e está a terminar um livro. Algum dia poderá viver disso, ela especula, mas por enquanto a sua hiperatividade apenas representa um modesto rendimento extra. Quando aparecem os créditos finais, fecha o computador abruptamente. Suspira. Está exausta

Ver uma série de televisão no dobro da velocidade, twittar e preencher uma folha de cálculo é lazer ou negócio? Quando é que um hobby deixa de ser um hobby? A Autoridade Tributária é clara a este respeito: se tiveres que declarar no IRS já não é um passatempo. É realmente uma sorte transformar o que fazemos por puro prazer numa fonte de rendimento?

Por definição, um passatempo é algo que se faz por prazer, sem prazos de entrega e sem pressão para fazê-lo bem, mas na última década as expectativas parecem estar a mudar. Somos incentivados a otimizar a nossa vida, cada minuto deve ser produtivo, e o lazer, para alguns, é quase uma perda de tempo. Plataformas como Etsy ou Instagram prometem que qualquer passatempo pode tornar-se num trabalho mais ou menos lucrativo que complemente os rendimentos cada vez mais precários do nosso emprego principal. Chama-se "economia de biscate" (gig economy). 

Segundo os dados do Banco Mundial, existem 435 milhões de pessoas em todo o mundo que fazem vários biscates para sustentar os seus rendimentos. Os trabalhadores temporários — como são chamados — aumentaram 170% entre 2019 e 2021. Aqui entram aqueles que trabalham algumas horas na Uber, aqueles que exibem partes do seu corpo no Onlyfans ou aqueles que rentabilizam os seus passatempos para ganhar algum dinheiro com um hobby que costumava ser improdutivo, ou até mesmo dispendioso (embora na maioria dos casos não melhore substancialmente a sua situação económica).

Calcula-se que mais de metade são millennials e da geração Z, os principais atores da precarização do trabalho e de uma cultura que glorifica estar sempre ocupado (cultura do esforço ("hustle") na denominação académica anglo-saxónica) numa corrida em que apenas importa o produto final: a suposta melhor versão de si mesmo

No contexto atual, o tempo livre e os passatempos são materiais para otimização: a vida social torna-se networking; ler transforma-se num turbilhão de post-its e sublinhados que impedem de desfrutar da história; bordar, numa terapia; cozinhar, num exercício estético apto para ser partilhado no Instagram, e ver uma série (visualizar, como se diz), num exercício rápido de recolha de dados.

Ananya Chaudhari estuda Economia e Finanças no segundo ano na Northeastern University e gosta de pintar. É o seu hobby, por agora. Cada vez que mostra uma das suas pinturas, costuma ouvir o mesmo: e porque não as vendes? Na opinião dela, as pessoas tornaram-se demasiado perfeccionistas e isso não as deixa desfrutar dos seus passatempos. 

"O propósito de um hobby é o prazer que nos proporciona por si só, independentemente de sermos medíocres ou virtuosos na sua prática", conta numa conversa com o EL PAÍS. Chaudhari é autora do artigo "A morte dos hobbies não é nossa culpa", publicado no The Huntington News, o jornal independente dos estudantes da sua universidade. Ela afirma que "a capitalização de cada canto da internet" é responsável, e não a geração Z. "Um espaço inerentemente pessoal [a internet] que, subtilmente, nos fez pensar em nós próprios como seres passíveis de gerar receita. Assim, se és bom a pintar, por que não vendes os quadros?, se gostas de DJing, por que não montas um estúdio?, se cozinhas bem, por que não partilhas no TikTok? Esta compulsão para mercantilizar os hobbies tem privado-os do seu propósito fundamental, a nossa realização pessoal".

As aplicações incentivam-nos a avaliar os livros e os filmes, mas também a última viagem de Uber e a música e podcasts que ouvimos. Passamos o dia inteiro a trabalhar como juízes não remunerados na economia da atenção e a acelerar a tendência de nos relacionarmos com os nossos passatempos de uma maneira quase profissional e baseada em dados.

A académica Lina H. R. Cho, professora de Literatura Comparada na Dunster House, afiliada à Universidade de Harvard, acredita que os hobbies, tal como os conhecemos, estão prestes a desaparecer. "Os resultados já estão à vista e são terríveis. A arte tornou-se conteúdo e a criatividade em produção à medida que avançamos lentamente, mas inexoravelmente, para a extinção dos hobbies. Para rentabilizar cada minuto do nosso tempo, temos que ser mais obedientes do que criativos", escreveu num artigo publicado no Harvard Crimson (um dos jornais da Universidade de Harvard). Digamos que a hiperprodutividade estimula a literalidade e mata as formas desestruturadas e caóticas de pensar que estimulam a imaginação.

Cinthya Molina é psicóloga clínica com consultório na SHA Wellness Clinic. A primeira pergunta que faz aos seus pacientes é: tens hobbies? "Não tê-los é sinal de que não se dedica tempo suficiente ao autoprazer e sobrevive-se preso na díade cíclica trabalho-família, família-trabalho. Quem tem um hobby conhece-se melhor, é mais consciente do que precisa para estar bem, e os que não têm, geralmente, não têm interesse em cultivar o seu prazer interior. Um hobby é sintoma de saúde mental. Saber que alguém come bem, dorme bem, tem bons amigos e algum hobby dá-me muita informação sobre uma pessoa".

Os hobbies tornam-nos melhores e mais felizes. Um estudo de 2016 da Universidade de Drexel mostrou que desenhar durante 45 minutos reduzia significativamente os níveis de cortisol, a hormona que regula a resposta ao stress. Noutro estudo de 2017 publicado na revista Arts & Health, ficou provado que colorir ativava a corteza média frontal e melhorava o humor, a auto-percepção e a capacidade de resolver problemas. Em 2015, uma equipa da Universidade de Merced revelou que os indivíduos que se concentravam num hobby estavam menos stressados e tinham uma frequência cardíaca mais baixa. "O que importa é como praticamos os nossos hobbies, e a chave é sair da nossa própria cabeça", escreveu Matthew J. Zawadzki, autor principal do estudo.

Das definições apresentadas no livro Hobbies. Leisure and The Culture of Work in America (1999), um texto clássico sobre o assunto de Steven M. Gelber, os círculos académicos focam sua atenção no que parece esconder um oxímoro: "o lazer produtivo" ou "lazer sério", um termo cunhado por Robert Stebbins, professor emérito de Sociologia na Universidade de Calgary. No seu enquadramento teórico, o entretenimento e a socialização são atividades demasiado passivas para merecerem a consideração de hobbies, sendo classificadas como "lazer informal". Um hobby, segundo Stebbins, deve ser "lazer sério", pois requer um esforço baseado em "conhecimentos, treino ou habilidades especiais", e aqueles que o praticam frequentemente procuram progredir e melhorar ao longo do tempo. Evidentemente, na era da otimização total, esse investimento não faz sentido sem um retorno.

De acordo com os especialistas da equipa de Stebbins, "o lazer sério" proporciona um tipo de satisfação diferente da relaxação ou do trabalho remunerado e ajuda a desenvolver uma identidade independente da profissão que nos sustenta, já que um hobby sustenta a autoestima: alguém não corre, é corredor; não só lê, é um grande leitor; e não vê séries de televisão, é um seriéfilo; não apenas desfruta da comida e do vinho, mas é um gastrónomo, e, mais recentemente, foodie. Um hobby confere prestígio e certa autoridade. Segundo Stebbins, o lazer sério é necessário para ter uma vida plena.

Alguns sinais alertam quando um hobby começa a perder-se pelo ingrato caminho da produtividade, dos prazos e das obrigações. Cinthya Molina recorda uma conversa com um paciente de vida frenética, analista de mercados financeiros. A sua via de escape, a sua paixão, era o seu barco. Recentemente, conseguiu uma amarração em Maiorca e decidiu que quando não estivesse a navegar o alugaria, assim pagaria a amarração e talvez pudesse comprar um segundo barco que tentaria amortizar o mais rapidamente possível. "Deixei-o falar e depois disse-lhe: 'Bem, já sabes que o teu barco deixou de ser uma fonte de prazer, agora é um gerador de stress, monetizaste a tua única fonte de bem-estar, agora é uma responsabilidade: tens de amortizar o investimento. No dia em que saíres no barco só pensarás que não o estás a aproveitar e que estás a perder 2.000 euros".

Aqueles que um dia se acharam sortudos pela sua capacidade de misturar lazer e negócios falam de uns primeiros tempos luminosos que se vão apagando à medida que começam a deixar de fazer o que lhes apetece para atingir objetivos, audiência ou engagement, ou até que algo corre mal - e na internet isto acontece frequentemente, concretamente, sempre que um algoritmo muda e caem o tráfego e a visibilidade -, então a sensação de fracasso contamina a capacidade de desfrutar. O sucesso perdido não é vivido como a consequência de uma mudança tecnológica da qual não somos responsáveis, mas como uma derrota pessoal, e o antigo hobby transforma-se numa fonte de frustração. Dessa forma, dificilmente se pode voltar a perder a noção do tempo enquanto se deixa levar desfrutando com o que mais se gosta. O psicólogo Mihaly Csikszentmihalyi, professor do Centro de Estudos Avançados de Ciências de Comportamento da Universidade de Stanford, descreveu nas suas experiências o "estado de fluxo" como a absorção total numa atividade que proporciona prazer e desfrute. O tempo voa, os pensamentos desaparecem, toda a energia está concentrada numa atividade que gera uma completa satisfação. "Um estado de experiência ótima" muito próximo da felicidade. Só por isso deveríamos proteger os nossos hobbies do culto à otimização. Não há mal nenhum em viver umas horas do dia sem ser produtivo.

La imparable mercantilización de los ‘hobbies’ / Karelia Vázquez / El País (31 de março de 2024)

quarta-feira, 10 de abril de 2024

O Meu Carro e o Carro dos Meus Filhos

 Obviamente que o pai escolheu melhor!

Bem os avisei para não gastarem tanto dinheiro num carro, porque é o pior investimento que podem fazer, mas, eu sei como é, afinal, também já tive vinte e poucos anos.

Fica para memória futura. Já por aqui contei a história em que dois carros, o meu e o de outra senhora, ficaram visíveis, um em frente do outro, quando, num centro comercial, e já fora de horas, toda a gente tinha saído do parque de estacionamento. 

Aqui aconteceu algo semelhante. Após um dia de trabalho, eis que vamos para os nossos carros - sim, na verdade eles não são meus filhos, são apenas colegas de trabalho (mas é como se fosse) - e de igual forma, os nossos carros ali estão, sem mais nenhuns ali pelo meio. 

Uma imagem que fica aqui para memória futura. 

segunda-feira, 8 de abril de 2024

Porque Ler Livros é Mais Importante do que Nunca

"A capacidade de leitura depende do tempo de prática. E ler livros é a única maneira de desenvolver uma linguagem avançada que permita construir algum pensamento complexo. No entanto, escreve o grande neurocientista francês Michel Desmurget, os menores lêem cada vez menos submetidos ao jugo viciante dos ecrãs0 recreativos: séries, jogos, redes sociais. Apenas 5% dos alunos de 13 anos identificam as ideias implícitas num texto não trivial. A leitura compartilhada em família é a forma de as crianças aprenderem progressivamente a ler por si mesmas.



Submetidos ao jugo viciante dos omnipresentes ecrãs recreativos (filmes, séries de televisão, jogos, redes sociais...), os nossos filhos lêem cada vez menos e, consequentemente, cada vez pior, porque, como demonstram dezenas de estudos, a capacidade de leitura depende diretamente do tempo de prática.

Em Espanha, segundo as últimas avaliações internacionais, 75% dos alunos de 13 anos do ensino secundário não passam do nível "básico", o que no máximo lhes permite compreender enunciados simples e explícitos; 51% têm mesmo um nível "baixo" e dificuldades com os textos mais básicos. Apenas 5% dos leitores são "avançados", capazes de identificar e resumir as ideias implícitas num texto não trivial.

Estes números são comparáveis à média da OCDE. Desde 2015, os alunos espanhóis do ensino secundário perderam um ano de aprendizagem. Isto significa que os jovens de 13 anos em 2022 tinham o mesmo nível que os seus homólogos de 12 anos sete anos antes.

Muitos observadores parecem satisfeitos com esta evolução, alegando que é preciso avançar com os tempos e que as crianças de hoje simplesmente aprendem "de outra forma". Enquanto no passado se usava a palavra escrita, no mundo moderno recorre-se aos meios audiovisuais. Infelizmente, este argumento ignora as características específicas da palavra escrita. Em primeiro lugar, há a linguagem. O livro está desprovido de contexto. Tem apenas palavras como suporte. A imagem (ou o vídeo) de uma paisagem, de um objeto, de uma emoção, de uma cena da vida, etc., fala por si só, até certo ponto.

O livro tem que descrever tudo. Isto explica por que, em média, a complexidade léxica e gramatical dos corpos textuais é muito maior do que a dos corpos orais. Estudos extensos de conteúdo têm mostrado que há mais riqueza linguística num álbum de pré-escolar (o mais simples dos livros) do que em todos os corpos orais comuns: discussões entre adultos cultos ou adultos e crianças, filmes, séries, desenhos animados, programas de televisão... Isto significa que a exposição à palavra escrita é a única forma de desenvolver uma linguagem avançada, sem a qual não se pode construir qualquer pensamento complexo.

Muitas vezes ouço dizer que as gerações mais jovens nunca leram tanto, graças à internet. Infelizmente, essa afirmação é enganadora. Entre os jovens dos 8 aos 18 anos, a leitura digital representa entre 2% e 3% do tempo de ecrã, enquanto as atividades audiovisuais (filmes, séries, vídeos, etc.) representam entre 40% e 50%. Além disso, este tempo de leitura inclui muito poucos livros e muitos conteúdos linguisticamente e conceptualmente pobres. Em suma, o tempo de leitura na internet (redes sociais, blogs, e-mails e tudo o mais) e, mais geralmente, o tempo total de ecrã recreativo estão negativamente correlacionados com as competências linguísticas e a capacidade de leitura das crianças.

O mesmo acontece com os conhecimentos. Quanto mais os meninos e adolescentes lêem, mais ampla é a sua cultura geral, em comparação com os meninos de ambientes socioeconómicos comparáveis que estão expostos a conteúdos audiovisuais (filmes, séries, entre outros). As crianças que lêem têm muito mais probabilidades de saber, por exemplo, o que é um carburador ou uma taxa de juro; de afirmar que o Japão foi aliado da Alemanha e não dos Estados Unidos durante a Segunda Guerra Mundial, e de afirmar que há mais muçulmanos do que judeus no planeta.

Além dessas repercussões culturais e linguísticas, existem benefícios documentados em termos de coeficiente intelectual, concentração, imaginação, criatividade, capacidade de síntese e de expressão (tanto oral como escrita). Por outras palavras, enquanto os ecrãs recreativos minam meticulosamente o desenvolvimento dos nossos filhos, a leitura constrói meticulosamente a sua inteligência. Mas isso não é tudo. A leitura de romances também estrutura fortemente as nossas habilidades emocionais e sociais.

Se vejo Don Quixote na televisão, não tenho acesso à complexidade dos seus pensamentos. Em contraste, quando leio o romance, entro literalmente na cabeça da personagem e posso compreender o funcionamento interno dos seus pensamentos e ações. Melhor ainda, posso experimentar esses últimos. Os investigadores referem-se à leitura como um verdadeiro "simulador emocional", no sentido de que as situações vividas realmente e as experimentadas literariamente ativam os mesmos circuitos cerebrais.


Quando procuro o significado da palavra traição num dicionário, entendo intelectualmente o que significa; mas quando leio Madame Bovary, não só entendo, mas também experimento a traição tanto do ponto de vista do traidor como do traído. Penetro nos mecanismos subjacentes e sinto os estados emocionais associados. No final, os leitores de ficção têm uma maior empatia e capacidade de compreender os outros e a si mesmos.

Em última análise, todos esses benefícios influenciam enormemente a trajetória educativa e profissional das crianças. O impacto é significativo tanto a nível individual como coletivo. Numerosos estudos mostram que o desenvolvimento económico de um país, o número de patentes desenvolvidas e o seu PIB estão estreitamente relacionados com os resultados educativos. Esta é uma questão crucial num contexto de crescente competição internacional, especialmente se considerarmos, à luz das avaliações PISA já mencionadas, que as diferenças de desempenho, não apenas em leitura, mas também em matemática, são cada vez maiores entre as nações da OCDE e os países asiáticos.

Claro que podemos viver sem a leitura. Esse não é o ponto. O importante é que, nesse caso, perdemos uma parte essencial da nossa humanidade. Não é por acaso que os livros têm sido alvo de tiranos de todos os tipos desde o início dos tempos. Os nazis queimaram mais de 100 milhões de livros e, como o filólogo Victor Klemperer demonstrou, embarcaram num processo de empobrecimento da linguagem digno da novilíngua de Orwell em 1984. Hitler afirmava que a literatura era veneno para o povo. Em "Admirável Mundo Novo", de Huxley, apenas uma pequena casta ainda possui as ferramentas do pensamento e da linguagem. O resto é composto por técnicos zelosos, formatados para se adaptarem com a maior precisão possível às necessidades económicas, sobrecarregados com entretenimentos absurdos, privados das ferramentas fundamentais da inteligência e felizes com uma servidão que já nem conseguem perceber. 

A leitura é o antídoto mais seguro contra este pesadelo porque, através do seu efeito no desenvolvimento intelectual, emocional e social dos nossos filhos, desenha o caminho mais seguro para a emancipação. Como disse Ray Bradbury, autor do romance futurista Fahrenheit 451: "Não é necessário queimar livros para destruir uma cultura. Basta conseguir que as pessoas parem de lê-los".

Perante este desastre iminente, muitos culpam a escola. No entanto, o ambiente familiar desempenha um papel essencial nisso, especialmente através da leitura partilhada, que é a única forma de as crianças adquirirem progressivamente a linguagem avançada da palavra escrita e, em última instância, uma vez adquiridas as bases da descodificação, lerem por si próprias. Isso não significa que a escola seja ineficaz. Significa apenas que o tempo escolar disponível e o número de crianças por professor não permitem um trabalho ótimo. Todos os estudos mostram que, no que diz respeito à língua e à leitura, a escola não consegue compensar as desigualdades sociais. Em Espanha, de acordo com os dados do PISA, a diferença de competências entre o quarto mais favorecido e o menos favorecido dos alunos do ensino secundário representa quatro anos de aprendizagem. É uma diferença colossal. O problema só pode ser resolvido através de uma ação focada, precoce e massiva dirigida às crianças menos favorecidas. Também precisamos de um amplo programa de informação para os pais, especialmente para os desfavorecidos. Quando explicamos a estes últimos a importância de falar com os seus filhos, de ler-lhes histórias desde muito cedo, de levá-los à biblioteca, os efeitos na linguagem, desenvolvimento cognitivo, concentração ou vínculo familiar são consideráveis. Tudo se resume à vontade política. Os custos incorridos seriam amplamente compensados pela poupança posterior (terapia da fala, insucesso escolar, etc.).

Este é um texto escrito para a revista Ideas por Michel Desmurget (Lyon, 1965), neurocientista, no seguimento do lançamento do seu último livro, "Fábrica de cretinos digitais".

domingo, 7 de abril de 2024

A Meritocracia é uma Justificação do Sistema



"É um dos grandes cientistas do comportamento, mas Robert Sapolsky não acredita que tenha qualquer mérito. E não diz isso com modéstia, mas com convicção. Este divulgador acredita que o livre arbítrio é uma ilusão, e que não somos mais do que a soma de uma série de fatores que escapam ao nosso controlo.

Sapolsky passou três décadas a estudar babuínos selvagens no Quénia, mas acabou por escrever livros, mundialmente famosos, o comportamento humano. Segundo a sua teoria, esta evolução estava escrita e não teve capacidade de escolha real. No seu novo livro, "Decidido", desenvolve esta ideia recorrendo à neurologia, filosofia e sociologia. Não és tu, não sou eu, é o determinismo. A frase, além de ser a melhor das desculpas, coloca questões morais sobre os conceitos de culpa, castigo, mérito ou esforço. 

Afirma que o livre arbítrio não existe. Como é então formada uma decisão sobre a qual acreditamos ter controlo?

Um comportamento é o produto final do que aconteceu no teu cérebro há um segundo. É a biologia, sobre a qual não temos controlo, a interagir com o ambiente, sobre o qual não temos controlo. A neurobiologia influencia as tuas decisões, assim como a genética, a geocronologia e as ciências sociais. Não é que todas estas disciplinas sejam diferentes, mas tornam-se numa única disciplina.

Então, o facto de ter escrito um livro não dependeu do seu esforço e vontade?

Escrever este livro exigiu muito trabalho, mas consegui fazê-lo e há um "eu" em todo este processo. Mas se realmente parar e analisar, percebo que terminei o livro devido ao tipo de pessoa que sou. E isso deve-se a muitos eventos que estão fora do meu controlo. É preciso muito trabalho para fazer isso e para refutar a crença de que tu ganhaste o que és e outras pessoas não o ganharam.

Tanto que quase ninguém o faz. Porque é que o conceito de meritocracia está tão na moda?

A meritocracia é uma justificação do sistema. As pessoas que têm mais poder são as que têm mais razões para amar e manter esta ideia. Podemos pensar que não faz sentido. Mas, por outro lado, se tiveres um tumor cerebral, queres garantir que sejas operado por um grande médico. É necessário garantir que os trabalhos difíceis sejam realizados pelas pessoas mais competentes. Mas isso deve ser feito sem lhes dizer que são melhores, que merecem estar ali, que o ganharam. O problema com esta ideia é que pode acabar com a motivação.

E pode gerar frustração. Nem toda a gente pode ser um grande médico.

Os Estados Unidos são um exemplo muito evidente disso, porque temos esta mitologia cultural incrivelmente enraizada, a ideia de que qualquer pessoa, se trabalhar arduamente, pode ter sucesso. Qualquer pessoa pode ficar rica se estiver suficientemente motivada. Qualquer criança pode vir a ser presidente. E a realidade é que, se nasceres na pobreza, há aproximadamente 90% de chances de continuares na pobreza quando fores adulto.

Se não existe livre arbítrio, o que acontece com conceitos como culpa e castigo?

Se alguém é violento, é preciso impedir que faça mal, mas isso não significa que seja culpa dele. Em vez de uma prisão, ele deveria ser colocado numa espécie de quarentena. É muito mais fácil olhar para alguém sem educação e sem sucesso e simpatizar e dizer que as circunstâncias o tornaram quem é. Mas se tiveres de olhar para um polícia que acabou de disparar contra um homem desarmado simplesmente pela cor da sua pele, porque num segundo pensou que aquela pessoa que segurava um telefone o estava a apontar com uma arma... É muito mais difícil concluir que é o produto do que viveu.

(entrevista publicada no jornal El País a 22 de Março)