Há figuras históricas tão inspiradores, e talvez não haja ninguém tão inspirador quando o ex-presidente do Uruguai, Pepe Mujica. Em agosto partilhei uma entrevista que deu ao New York Time, partilho agora também a que deu hoje ao El País, depois dos tratamentos de radioterapia que fez a um cancro:
“Dediquei-me a mudar o mundo e não mudei coisa nenhuma”
Aos 89 anos, venceu o cancro e fala sobre a vida e a morte, o rancor, a felicidade e o seu legado.
Numa tarde de 1970, José Pepe Mujica conversava com outros homens numa mesa do bar La Vía, em Montevidéu. Um cliente reconheceu que eram guerrilheiros tupamaros e denunciou-os. A polícia cercou o local. Mujica levou seis tiros. No Hospital Militar foi tratado por um cirurgião que “era um companheiro, um tupa disfarçado”. “Dá-me um balde de sangue e salva-me. É daquelas coisas que nos fazem acreditar em Deus”, recorda Mujica.
Passados exatamente 54 anos, está sentado na pequena sala da sua casa rural em Rincón del Cerro, a 15 quilómetros da capital, rodeado de livros, pequenas esculturas, quadros e fotografias. Mujica recupera de um cancro do esófago. “Deram-me 31 sessões de radioterapia às sete da manhã, todos os dias. Acabaram com o cancro, mas deixaram-me com um buraco assim [desenha um círculo grande com os dedos, como uma laranja]. Agora o buraco tem de se fechar e eu sou um velho, tenho 89 anos. Até estar completamente fechado, não consigo comer. Tenho de cuidar dele até endurecer.” Não esconde o mau humor pelas sequelas da doença, que o deixam “sem energia”.
Minutos depois, Mujica volta a ser o de sempre: o político e o filósofo.
Em algum momento da vida perde-se o medo da morte?
A morte é uma senhora complicada, que não perdoa e está sempre à espreita. Mas, se não existisse, a vida não teria tanto sabor, seria uma chatice. A grande questão é onde gastamos o nosso tempo. Porque, se o desperdiçamos... Qual é o sentido?
Encontrou o sentido da sua vida?
Dediquei-me a mudar o mundo e não mudei coisa nenhuma, mas entreti-me. E fiz muitos amigos e aliados nessa loucura de tentar mudar o mundo para melhor. Dei um sentido à minha vida. Vou morrer feliz por deixar uma geração [seguidores] que me supera largamente.
O que pensa de figuras ultraconservadoras como Trump, Milei ou Bolsonaro?
São o culminar da pregação ultraliberal que se transforma em libertarismo. Se o liberalismo é isso, é um lixo.
Encontrou a felicidade em viver com muito pouco…
Em viver com sobriedade, porque quanto mais tens, menos feliz és.
Mas o mundo parece ir na direção contrária...
O mundo está a caminho do hiperconsumo, porque é regido por uma lei: multiplicar o consumo das pessoas, porque isso é o que garante a acumulação. E isso não é viver.
E o que é viver?
Viver é amar, é ter o prazer de estar a perder tempo com outra pessoa. Viver é, quando se é velho, jogar às cartas com os amigos, falar de recordações. Sou um estoico, filosoficamente falando. A minha definição é a de Séneca: ‘Pobre é quem precisa de muito’.
Quando Mujica saiu da prisão, em março de 1985, já em democracia e após 13 anos preso, sabia que queria comprar uma quinta no campo, longe da cidade. Em janeiro de 1986, ele e a mulher mudaram-se. Nunca mais saíram, nem quando Mujica foi presidente.
Por que ficaram na quinta?
O Estado dava-me um palacete com quatro ou cinco pisos, onde, para tomar um chá, era preciso fazer uma expedição. Então, decidi ficar aqui. Sei que sou um louco para os dias de hoje, mas não tenho culpa do mundo em que vivo.
O que lhe diziam os outros presidentes?
Respeitaram-me muito, mas achavam-me um bicho estranho. Quando fui falar com o rei da Noruega [em 2011], estavam à minha espera com uma gravata. Quando lá cheguei, disse à delegação: ‘Voltamos para trás’. E o tipo recuou, guardou a gravata, e fui falar com o rei. Não sou contra a gravata, mas contra ser obrigado a usá-la.
Que líder mundial mais o cativou?
Lula, de quem sou amigo até hoje. E, curiosamente, tenho de falar bem de Barack Obama.
Por que “curiosamente”?
Era um homem inteligente e que falava. Estive com ele três vezes e tivemos conversas muito interessantes. Reconheceu-me certas coisas. Disse-lhe que era preciso ajudar a desenvolver a América Central, não travar a imigração. E ele respondeu: ‘Tem razão, mas convença os republicanos disso’. Ele via os problemas.
No Brasil está o seu amigo Lula, mas também há Milei na Argentina e a crise na Venezuela. Como vê a situação da América Latina?
O panorama é, infelizmente, complicado. Porque nos unimos muito pouco e não existimos no mundo. Tivemos uma oportunidade com Lula, que é uma figura mundial com certo prestígio, mas não a aproveitámos. Na política internacional, não servimos nem para trazer o café. Precisamos de nos unir para nos defendermos, mas a agenda nacional consome todo o tempo.
Rafael Correa, Cristina Kirchner, Evo Morales, o próprio Lula… Por que não deixaram sucessores?
Cansei-me de dizer que o melhor dirigente é aquele que, ao desaparecer, deixa uma geração que o supera largamente. Porque a vida continua e a luta também, não acaba connosco. O dirigente deve semear e dar oportunidades para que o substituam. Sei que continuo a ser uma figura de peso, mas abri caminho. Agora, o que vai acontecer no futuro, quem sabe?
Por que decidiu virar a página sobre o passado?
Não viro a página; não gasto energia a cobrar, que é diferente. Não se vive de recordações. Na vida há feridas que não têm cura, mas aprende-se a continuar a viver.
Tem muitas feridas abertas?
Claro que sim, tenho coisas inesquecíveis, mas não as vou cobrar. Estive sete anos numa cela mais pequena que esta. Sem um livro, sem nada para ler. Tiravam-me uma ou duas vezes por mês para caminhar meia hora num pátio. Sete anos assim. Se fosse cobrar o que tenho para cobrar… Deus me livre.
Que mensagem deixa aos jovens?
Que a vida é bela, mas é preciso encontrar uma causa para viver. Pode ser a música, a ciência, qualquer coisa. Viver para pagar contas? Isso não é viver.
O que pede hoje à vida?
Que me cure disto. E que ainda consiga “ladrar” um pouco, dar algumas ideias.
El País17 Nov 2024 Federico Rivas Molina | Gabriel Díaz Campanella