"O prior resolveu, então, fazer-lhe ler o Novo Testamento. O ingénuo devorou-o com grande prazer; mas, não sabendo nem em que tempo, nem em que país, tinham acontecido as aventuras relatadas neste livro, não duviidou que o cenário da ação fosse a Baixa-Bretanha, e jurou que havia de cortar o nariz e as orelhas a Califaz e a Pilatos, se encontrasse esses patifes (...)
Por fim, a graça atuou: o Ingénuo prometeu fazer-se cristão; mas meteu-se na cabeça a certeza de que era indispensável, em primeiro lugar, fazer-se circuncidar, pois, dizia ele:
- Não encontro, no livro que me deram a ler, uma única personagem que o não tenha sido, portanto, é evidente que devo fazer o sacrifício do meu prepúcio, e quanto mais cedo melhor (...)
O prior retificou as ideias do huroniano, explicando-lhe que a circuncisão estava fora de moda, que o batismo era muito mais saudável e suave, e que a lei da graça não era como a lei do rigor. O ingénuo, que tinha muita retidão e bom senso, discutiu, mas acabou por reconhecer o seu erro, coisa muito rara, na Europa, entre pessoas que discutem: por fim, prometeu que se batizaria quando quisessem.
Primeiro era preciso que se confessasse e foi isto o mais difícil. O Ingénuo trazia sempre na algibeira o livro que o seu tio lhe tinha dado; não encontrava aí um único apóstolo que se tivesse confessado e isto tornava-o muito reclacitrante. O prior tapou-lhe a boca mosstrando-lhe, na epístola de São Tiago Menor, aquelas palavras que causam, aos hereges, tantas complicações : Confessai os vossos pecados uns aos outros. Calou-se o huroniano, e foi confessar-se a um recoleto. Mas, assim que acabou, tirou o recoleto do confessionário, meteu-o no lugar dele e, agarrando o homem com o seu braço vigoroso, fê-lo ajoelhar, à força, na sua frente:
- Vamos, meu amigo, está escrito: Confessai-vos uns aos outros; eu contei-te os meus pecados, tu não hás-de sair daqui sem que me contes os teus.
Ao dizer isto, apoiava o seu enorme joelho contra o peito da parte adversa. O recoleto dava gritos que ribombavam pela igreja. Acudiram ao barulho e viram o catecúmero que aperreva o monge em nome de São Tiago Menor. Mas a alegria de batizar um baixo-bretão huroniano e inglês era tal, que passaram por cima destas singularidades. Houve até muitos teólogos que pensaram que a confssão não era absolutamente necessária, pois o baptismo supria tudo.
Aprazaram o dia com o bispo de Saint Malo (...) A igreja estava magnificamente adornada, mas, quando foram buscar o huroniano para o levar à pia batismal, ninguém conseguiu encontrá-lo (...) quando avistaram, no meio da ribeira, uma figura grande e bastante branca, com as duas mãos cruzadas sobre o peito (...) Acorreram, por fim, o prior e o abade, que perguntaram ao Ingénuo o que estava ali a fazer.
- Ora essa senhores! Estou à espera do batismo! - disse ele. - Há uma hora que estou metido dentro de água e não é bonito deixarem-me aqui a enregelar (...)
- Desta vez não me me fareis acreditar, como da outra; tenho estudado muito o meu livro, desde então, e estou certíssimo de que ninguém se batiza de outro modo (..) e desafio-vos a que me mostreis, no livro que me destes, um exemplo de outra maneira de batizar: ou me batizo aqui no rio, ou não me batizo mesmo.
"O Ingénuo" - Voltaire (1767)
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