domingo, 3 de maio de 2015

O que ando a ler IV

São muitas as razões que me levam a pensar que a cultura da felicidade não pode ser considerada um bom modelo de vida. Mas serão esse motivos suficientes para invalidar radicalmente o princípio?
Dado que o homem não é Uno, a filosofia da felicidade deve fazer justiça a normas ou princípios de vida antitéticos. Devemos reconhecer a legitimidade da ligeireza hedonística, tal como a exigência da construção do indivíduo através do pensamento e do agir. A filosofia dos Antigos procurava formar um homem sábio que se mantivesse idêntico a si próprio, querendo sempre a mesma coisa mediante a coerência consigo mesmo e a rejeição do supérfluo. Será isto realmente possível e desejável? Não o creio. Se o homem, como defende Pascal, é um ser feito de "contradições", a filosofia da felicidade não deve excluir nem a edificação complexa do eu. O homem muda ao longo de toda a sua vida e não esperamos da nossa existência sempre as mesmas satisfações. Isto significa que uma filosofia da felicidade terá forçosamente de ser desunificada e pluralista: uma filosofia mais eclética do que cética, mais mutável que definitiva. 
No âmbito de uma problemática "dispersa", não é tanto o próprio consumismo, que convém denunciar, mas o seu excesso ou o seu imperialismo, que criam obstáculos ao desenvolvimento da diversidade das potencialidades humanas.  Assim, mais do que condenada, a sociedade do hiperconsumo deve ser corrigida e estruturada. Nem tudo é de rejeitar, e há muito a reorganizar e a reequilibrar para que a ordem tentacular do hiperconsumo não ponha a causa multiplicada dos horizontes da vida. Neste domínio, nada está decidido tudo pode ser inventado e construído sem um modelo assegurado. Tarefa árdua, forçosamente incerta e sem fim, uma vez que a conquista da felicidade não pode sujeitar-se a um prazo.


O que é válido para a sociedade, vale também para o indivíduo: o homem caminha para um horizonte que se evapora à medida que ele julga estar mais próximo, cada solução trazendo novos dilemas. De todas as vezes . a felicidade tem de ser reinventada e ninguém possuiu as chaves que abrem a porta da terra prometida: temos de decidir o rumo à medida que avançamos e retificar a trajetória passo a passo, com mais ou menos sucesso. Lutamos por uma sociedade e uma vida melhores, procuramos incansavelmente os caminhos da felicidade, mas nada garante que alcançaremos aquilo que nos é mais precioso: a alegria de viver. 
(Gilles Lipovetsky - A Felicidade Paradoxal)

Foi com alguma estranheza e desilusão que, depois de ter lido unicamente deste autor A Era do Vazio (de 1983) em que ele faz uma crítica feroz ao individualismo, ao narcisismo e ao alimentar do ego, uma crítica ao consumo de massas, ao prazer pelo prazer e depois cair no vazio e não sentir nada, venha em A felicidade paradoxal (24 anos depois), dar uma no cravo e outra na ferradura, conseguindo até defender esta sociedade do hiperconsumo. 

Diz ele também, defendendo o indefensável, em "Relações mercantis e sociabilidade" na página 124:

Contrariando uma ideia muito difundida, a sociedade de hiperconsumo não significa que o indivíduo se isole no seu casulo, nem que se verifique um "confinamento interativo generalizado". O equipamento audiovisual das nossas casas não suprimiu de modo algum a necessidade de estarmos em contacto com o "mundo" e de convivermos com os nossos amigos. (...)
A verdade é que são os indivíduos melhor equipados com as novas tecnologias que "saem" mais e convivem com mais pessoas. (...)
Evitemos, pois, o cliché do declínio da vida social, por agora, não existe qualquer perigo real no que respeita à sociabilidade, visto que o desenvolvimento do virtual e dos meios de comunicação têm maiores probabilidades de reforçar a importância dos contactos diretos do que degradá-los.

Acho que andas mesmo a nanar Lipovetsky! Olha que nem de propósito, uma marca de cerveja - se calhar um dos símbolos maiores da socialização moderna entre pessoas, estar num café e beber uns copos com os amigos - e esta marca de cerveja sentiu a necessidade de fazer um anúncio publicitário intitulado "O que se passa com a amizade?" alertando para os perigos de se estar completamente fechado no casulo, comunicando com os outros, mas exclusivamente por via eletrónica. E o problema é que consumidores enfiados dentro do casulo, não saem, não estão com os amigos e no fundo, mais importante, não consomem nem bebem cerveja, o que e é uma chatice para quem quer vender.



E volto a citar as sábias palavras de Ingrid Betancourt em entrevista à TSF:

Estamos a perder aquilo que é a essência da comunicação humana, que é, sentar num café a conversar com as pessoas. Hoje em dia não há tempo para se estar num café a falar com as pessoas, porque estamos sentados num computador, a falar com as imagens virtuais de muita gente. Estamos a perder o contacto pessoal. Pergunto-me como vai ser o mundo amanhã? Quando os jovens perderam a noção do que é perder tempo com uma pessoa a falar com ela. É importante que dediquemos o tempo a coisas profundas, e eu acho que não há nada mais profundo que dedicar o tempo aos outros. Não a si mesmo - porque o problema da internet - é que dedicamos tempo ao nosso ego, a vendermo-nos, a pôr uma foto bonita no perfil, a publicitarmo-nos da melhor maneira, a criar um espaço virtual onde mostrarmos uma imagem de nós mesmos, da que queremos vender.

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