domingo, 2 de dezembro de 2018

Vai-te Despedindo Dela Porque Eu Vou Levá-la Comigo

Imagem emprestada da net
As folhas quadriculadas com linhas azuis que tenho aqui comigo foram escritas por mim já no milénio passado. São meros rascunhos e anotações que bem que podiam ter ido para o lixo. Mas mantive-as sempre guardadas. Talvez para servirem de prova. Não foi sonho. Tudo aquilo foi bem real. E eu escrevi-o na altura em que o estava a viver, para que mais tarde, como hoje por exemplo, não duvidasse das minhas próprias memórias. 

Quis a vida que certo dia nos cruzassemos na rua e tu perguntaste-me se podíamos ser amigos. Disse-te que sim e tornamo-nos correspondentes. E depois amigos. Só amigos, se calhar, durante tempo demais. Mas foi o tempo que teve de ser até não ter dado mais para sermos só amigos. Até eu ter deixado de resistir e de mentir para mim mesmo, achando que éramos como irmãos. Até ao dia em que, sozinhos na traseira de um autocarro, disseste-me: "abre os braços". Eu abri e tu aninhaste-te no meu peito e disseste: "agora fecha". E eu fechei. E os abraços, como eu já imaginava que seriam, e fui depois aprendendo ao longo da vida, são muito intensos e perigosos quando gostamos muito de alguém.

Correspondentes. Amigos. Namorados.
Parece que passou tanto tempo entre a altura em que éramos meros desconhecidos, que nos cruzávamos nos transportes, e o tempo em que te tive pela primeira vez nos braços. Mas em boa verdade terão sido quê, dois anos? Mas quando somos novos dois anos é um tempo que nunca mais acaba.

Mas qualquer coisa aconteceu com o nosso encontro que despertou algo para o qual eu não estava preparado. Ninguém está não é? Porque ninguém nos  ensina a lidar com este tipo de coisas. Poucos dias depois de termos passado a ser mais do que amigos, abateu-se sobre nós, mais sobre sobre mim se calhar, qualquer coisa de diabólico, porque uma qualquer força que os meus olhos não conseguiam ver, queria-me afastar de ti.

Eu sou uma pessoal comum, não sou nenhum "special one" como o outro que se acha especial. Eu não tenho informação privilegiada do além. Eu não rezo aos santos; não sou religioso; não falo nem consigo ouvir o meu anjo da guarda, que se me fala eu não o ouço; nem ouço nem vejo ninguém que não seria suposto ver. A minha linha telefónica com o além está sempre desligada. Chama mas ninguém atende, ou ligam-me mas eu nunca consigo ouvir. 

O primeiro verdadeiro choque que tive foi quando percebi, sem sombra de dúvidas, que alguém falava por ti. Escondido no teu corpo, sabe-se lá durante quanto tempo, alguém nos observava. Alguém me observava a mim de perto sem eu me aperceber. Mas aos poucos foi saindo do armário. E é verdade que eu não sou nenhum special one, mas mesmo parecendo distraído, que o sou na verdade, sou também atento. E na sequência de várias ocorrências que não faziam grande sentido,  um dia percebi-o claramente. O choque foi ter percebido que, por vezes, não era contigo que estava a falar. Alguém te manipulava, alguém que me queria manipular, fazendo crer que eras sempre tu que falavas comigo. E nesse momento sim, assustei-me um bocadinho. 

Eu não sei há já quanto trarias aquilo contigo, nem há quanto tempo aquilo te manipulava. Não sei porquê, mas só se começou a manifestar quando começamos a namorar. Estava tudo bem enquanto éramos só amigos, ficou tudo mal quando começamos a namorar. E quando somos jovens e não temos grandes experiências nestes assuntos do foro sobrenatural, vamos aprendendo a estar muito atentos a tudo. Foi assim que fiz. Sempre atento e aprendendo aos poucos como as coisas funcionam na prática, e claro, procurar ajuda. Chamar reforços.

Chegamos a conversar os dois sobre o que poderia ter originado aquilo que se estava a passar contigo. E chegamos à conclusão que, uns anos antes, uma certa brincadeira ao jogo do copo que não correu muito bem, poderia ter estado na origem, mas na verdade, sei lá o que pode ter originado aquilo. Há coisas que muitas vezes simplesmente se identificam connosco e se colam a nós, ou que não gostam de todo de nós. Sei lá...

Mas foi curioso que, a partir do momento que aquela coisa se apercebeu que eu sabia da sua existência, então não precisou mais de camuflar e de se esconder atrás dela. Passou mesmo a falar diretamente comigo. E chegaram os primeiros avisos:

"Ela é minha, ou a deixas ou levo-a comigo. Nunca ninguém gostou dela, vens agora tu e estragas tudo? És um estúpido, estou-te a dar a oportunidade de saíres. Faço com ela o que quiser. Não acreditas"?  

Uma das coisas que percebi na altura, é que há coisas sobrenaturais muito mal educadas! E temos que ter noção que eu só vi a miúda do Exorcista possuída, a torcer a cabeça e a insultar toda a gente anos depois!

E durante vários meses passei a conversar com duas entidades diferentes: ela e outra coisa qualquer, em que a única coisa que queria era que eu a deixasse. Mas eu sou um bocadinho de ideias fixas e nunca a deixei. No desespero da coisa até acho que por vezes consegui achar alguma graça. Afinal, eu andava a ter grandes conversas não sei bem com quem lá do além! "Ele" começou inclusive a telefonar-me! E percebi que só se mostrava para mim. Uma vez ele estava a falar comigo ao telefone,  a mãe chamou-a, e de imediato ele desapareceu e respondeu ela. E ainda bem que naquele tempo não havia internet, senão sei lá, ainda vinha para aqui para os meus blogues tentar aterrorizar-me com mensagens ameaçadoras para toda a gente ler! Era o que me havia de faltar! 

Certo dia, depois dela ter ido comigo ao hospital porque eu fui fazer análises, passeávamos de autocarro porque eu ainda não tinha tirado a carta. E lembro-me bem deste pormenor que não está nas folhas quadriculadas azuis. Tu ias do lado da janela e passávamos pela Praça da Liberdade no Porto. Eu olhava para ti e estavas serena, parecias muito feliz. Eras tu. Mas de repente, as tuas feições e os teus olhos já não eram os teus olhos. Pelos teus olhos alguém olhava para a cidade, como se a estivesse a ver pela primeira vez. Já não eras tu. Estendi-te a mão para a apertares e ele fez com que me rejeitasses. Disseste-me: "deixa-me que eu já não te amo".  

Ele começou a ficar cada vez mais agressivo. Dizia-me que te ia matar:
"Despede-te dela porque já estou farto de ti, e agora vou levá-la comigo". 

Num outro fim-de-semana, debaixo das grandes árvores do Palácio de Cristal, trouxeste-me todos os medicamentos que tinhas em casa para eu guardar. Acho que ainda os tenho comigo guardados porque ainda guardo tudo o que era teu. Ele ameaçava-me fazer-tos tomar, e tu tinhas medo que sucumbisses e que ele te vencesse. Claro que ninguém sabia do que se estava a passar, e tu não andavas nada bem. E os exames finais para acesso da universidade aproximavam-se. Era um turbilhão de acontecimentos, uns atrás dos outros. E ainda por cima eu também tinha os meus próprios problemas que por essa altura não eram propriamente poucos. Estávamos, por exemplo, a poucos meses do meu primeiro internamento no hospital, que depois de lá sair, para lá teria de regressar porque saí de lá pior do que entrei. 

Se eu nunca fui uma pessoa especial, dessas que sentem, que ouvem ou que vêem, e que sabem dessas coisas, mas ainda assim, algum mérito eu tive que ter tido. Acho que qualquer outro namorado no meu lugar tinha simplesmente achado que tu eras louca. Mas repara que eu nunca me afastei de ti. Não fugi com medo. Nunca duvidei dos teus sentimentos sobre mim mesmo quando dizias o contrário. Eu nunca fui especial, mas ainda assim hás-de convir que alguma coisa de bom eu deveria ter. 

Eu lutei, resisti, pedi ajuda e fui onde foi preciso ir. Ao céu ou ao inferno. Ia onde tivesse que ir. 
E aos poucos, apesar d'ele ir estrebuchando, foi-se dissipando. Deixou de me falar, passou a manifestar-se indiretamente, e a sua força foi ficando cada vez mais fraca, até que, creio que nunca mais deu sinais de vida. 

Muitos anos depois haveríamos mesmo de nos separar, ou haveriam de nos separar. Não sei, também não interessa agora saber isso. Mas uma coisa é certa, não foi porque eu tivesse querido embora. Foi porque tu quiseste ir. Foi a tua escolha, o teu livre-arbítrio. Para o bem ou para o mal, tivemos todos de lidar com a tua escolha: tu, eu, e as pessoas que depois entraram na tua vida e as pessoas que depois entraram na minha vida. Nenhumas dessas pessoas teriam entrado nas nossas vidas se tu não quisesses ter ido embora e ainda hoje estivéssemos juntos.

E já passaram muitos anos. Tenho a certeza que já nem te lembras disto que fiz por ti. Nem tens que te lembrar. Eu não o fiz para que te lembrasses. Fi-lo para te tentar ajudar, tal como tu me terás ajudado em tantas outras situações que eu também já não lembrarei.
Mas olha como são as coisas. Anos mais tarde, fui sempre encontrando dessas tais outras pessoas verdadeiramente especiais, que me falaram de como sentem as coisas de uma forma que eu nunca senti. Talvez para me fazer acreditar, porque eu duvido muitas vezes. Não sei. Todas elas me disseram que têm guias que as orientam. Até porque é preciso saber lidar com aquilo e não deverá ser nada fácil. Percebi que é um dom que por vezes vezes se pode tornar numa maldição. Se calhar muitas dessas pessoas só gostariam de ser normais, como eu e como todas as outras. Disseram-me que vêem pessoas que já morreram. Que lhes mostram sinais. Sabem coisas que mais ninguém poderiam saber. Dizem-lhes para não saírem de casa de carro porque podem ter um acidente. Salvam-nas de morrer atropeladas. Vê lá  que coisa mais triste, até tiveram a honestidade de me dizer que as alertaram contra mim...  ou então, por outro lado, anunciaram-lhes que eu chegaria às suas vidas em breve.

E vê lá tu que umas dessas pessoas especiais disse-me mesmo que eu tenho uma missão cá nesta vida. Mas isso tu nunca vais saber. Tal como eu nunca saberia se tu não te tivesses decido ir embora. 

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