quarta-feira, 13 de março de 2019

Deste Lado do Mar Vermelho

"Numa das tardes antes da vinda de Emídio, a poucos metros do casebre, um homem vindo de nenhures dirigiu-se-lhes. O olhar do tio alterou-se e ordenou que fossem imediatamente para dentro. Jaime empoleirou-se no janelo e, mergulhado numa espécie de ingénua especulação, ficou a espreitar. Quando o desconhecido se afastou, Anselmo veio contar-lhes uma longa história. Num certo sítio da terra chamado Egipto, muito longe dali, reinava um faraó. Sob o domínio desse faraó e desse povo, os egípcios, viviam os hebreus. Todos os hebreus eram escravos. Homens, mulheres e crianças eram obrigados a trabalhar noite e dia, carregavam fardos pesadíssimos, cultivavam, limpavam e tratavam das cabras. Uns morriam de fome e, outros, de cansaço. Sempre que queriam dormir ou quando ficavam doentes, os egípcios batiam-lhes. Apesar das duras condições, os hebreus eram cada vez mais. Posto isto, o terrível faraó começou a temer que se revoltassem. Decidiu, então, que todas as crianças hebreias fossem atiradas ao rio. Algumas mães, não muitas, conseguiram esconder os bebés e levá-los até ao mar vermelho. Era o único mar vermelho à face da terra e dividia o Egipto do resto do mundo, mas era muito difícil atravessá-lo. Anselmo era um dos poucos homens que conseguiram fazer a travessia e os meninos, bebés hebreus que as mães trouxeram às escondidas. Contudo, não estavam completamente a salvo. De tempos a tempos, os egípcios vinham por toda a terra à procura dos fugitivos e, sempre que apanhavam crianças, matavam-nas. Convencidos de quão importante era que se escondessem mal avistassem um estranho, ainda que ao longe, os meninos ajudaram a tecer o próprio casulo. Jaime foi o primeiro a passar pela metamorfose. Depois do pânico, perante polícias e médicos estupefactos, jurou a pés juntos que era egípcio, talvez assim lhe poupassem a vida. Quanto aos mais novos, trazidos pelo próprio Anselmo não sem antes conversar com eles, a mudança foi menos dramática. 
Apercebi-me, depois, que tinha acabado de ler o livro no dia sete, precisamente um mês depois de o ter tirado da caixa do correio. O dia sete não foi um dia bom para mim. Foi triste e continua a ser triste sempre quando me lembro. Mas ao fim da tarde, quando cheguei do trabalho, abri a porta da caixa do correio, e vi que tinha lá um livro, o tal livro que me tinhas dito que me querias oferecer, fiquei curioso. Abri o envelope, olhei para a capa, e não pude deixar de sorrir quando vi que me tinhas oferecido um livro de uma autora com o mesmo nome que o teu. Olha que coincidência!, pensei.

Trouxe o livro para casa e guardei-o muito bem guardado. Nem o abri. Eu sei bem que sou um bocado estranho com as coisas que me oferecem. Só dias depois, quando peguei nele para o começar a ler, é que vi que tinha a dedicatória. E outra coincidência! Além de me teres oferecido um livro de uma autora que tem o teu nome, dentro, fiquei mesmo espantado com as parecenças da fotografia. Podia jurar que eras tu! 

Gostei do livro. Gostei de ir desvendando a história daquelas três crianças, e do Anselmo, que vai prendendo a curiosidade do leitor. Gostei de pormenores como aquele do Custódio ter contratado o Jaime para ver se havia toupeiras lá no terreno dele, e da resposta que lhe deu; gostei da comparação entre as mulheres do Custódio e os goivos; gostei daquela metáfora sobre a morte:

"A morte é uma represa a interceptar cursos de vida, projetos quase sempre embargados a pique para a cova":

Gostei do livro que me ofereceste mas não pesquisei rigorosamente nada sobre a autora. Não sei, acho que não me sentiria confortável, seria como estar ali a bisbilhotar; imagino que seja assim que as pessoas fazem quando acabam de conhecer alguém, e vão logo logo ao Facebook ver o perfil da pessoa. Imagino, porque eu nunca estive no Facebook.
Não fui pesquisar nada sobre a autora porque acho que me bastou tê-la conhecido pessoalmente. Mas é provável, até porque eu costumo voltar a autores que goste, que um dia venha a querer pegar noutro livro da mesma autora do livro que me ofereceste. E, já agora, e tal como vos disse, eu tenho andado realmente a conhecer pessoas muito interessantes...

Deste Lado do Mar Vermelho / Sónia Cravo (2013)

2 comentários:

  1. E que bom que é, bem que faz, conhecer pessoas muito interessantes.

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    1. Verdade. Ainda que sejam só primeiras impressões, porque conhecer alguém implica estar em contacto com essa pessoa durante bastante tempo. Mas mesmo assim é bom que fiquemos com boas impressões das pessoas que vamos conhecendo, até porque, grande parte delas não vamos reencontrar.

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