"Eu tinha a minha vida inteira dentro do computador quando, de repente, crachou. Eu estava a ver o meu e-mail num hotel em Santa Maria da Feira e, sem explicação, como se tivesse vontade própria, o computador suspendeu-se, deixou de responder (...)
Eu tinha a minha vida inteira dentro de um computador que não me obedecia, que parecia desfalecer. Depois chegou a serenidade dos assuntos sem solução. Essa paz tornou-se um terreno propício, uma planície, para o otimismo.
Eu sei que hoje em dia, os técnicos de informática são capazes de recuperar a memória de discos muito mais intransigentes. Era sábado, estava em Santa Maria da Feira, ficaria adiada a solução. Eu não queria duvidar da possibilidade de uma solução.
Ainda assim, nesse fim-de-semana, com amigos, houve algumas vezes em que nos faltou tema de conversa. Depois de falar da chuva e do frio, eu cedia perante a preocupação que escondia sob o otimismo, e contava-lhes o que tinha acontecido ao computador. "Não fazes backups?" Eu ficava a olhar para eles sem nada para dizer (...)
Passando o tempo, passou o sábado e passou o domingo. Na segunda-feira, cedinho, fui procurar o técnico que me foi sugerido por uma amiga. "Não fazes backups?"Andei por ruas de Alvalade com o computador ao colo até encontrar a direção que tinha escrita num papel mas que já memorizara (...)
O técnico tinha óculos e um vagar simpático. Devia ter fumado milhares de cigarros inclinado sobre aquela secretária. O cinzeiro estava a transbordar e o cheiro estava estranhado no pó. Expliquei-lhe. Ora vamos lá ver. Ligou o computador e não houve problema nenhum. Ligou-o de novo, e de novo, e voltou a não haver problema nenhum. Jurei-lhe que tinha acontecido o que descrevi antes. Olhou para mim, acho que acreditou e deu-me de novo a lição de que, quando se tem a vida toda dentro do computador, deve fazer-se backups. Isso já eu sabia, obviamente.
Fui para casa, acreditando que era essa a mensagem que o computador me queria transmitir. A vida dos computadores é muito menor que a das pessoas, menor até que a dos gatos ou dos cães. Um ano na vida de um computador deve equivaler a uns vinte anos na vida de uma pessoa. Pensando assim, acreditei que o meu computador ancião me queria avisar antes de partir. Talvez sentisse a morte a aproximar-se. Esta ideia foi contrariada quando cheguei a casa, o liguei e, de novo, com a mesma insistência, me mostrou a tal mensagem e se recusou a deixar-me aceder a tudo o que transferi para o seu interior. Senti, por momentos, que era algo pessoal (...)
Por isso e por mil outros motivos iguais a esse, o computador ainda está ali, atrás de mim. Está coberto por cartas abertas, convites para lançamentos de livros e jornais que não leio. Mas creio que não estou preocupado, Ou, melhor, não estou mesmo. Afinal, eu sempre fiz backup de tudo num disco muito mais importante. Esse disco está coberto pelo meu nome. Funciona com imperfeições. No dia em que deixar de funcionar completamente, nada mais me importará.
Disco Interno / Abraço / José Luís Peixoto (2011)
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