quinta-feira, 2 de março de 2023

A Cultura da Pressa e a Desumanização das Relações

Imagem roubada da net

"
A conexão perpétua condenou-nos à disponibilidade eterna nas redes sociais. A necessidade de resposta imediata e a demora quando o retorno do outro lado não vem geram uma série de angústias. O resultado é uma sociedade stressada e mentalmente doente.

A iniciativa Desacelera SP existe desde 2015 como uma “desaceleradora de pessoas e negócios”. A sua fundadora Michelle Prazeres passou a questionar a cultura da pressa após o nascimento de seu primeiro filho. “Nem todo mundo tem 24 horas iguais”, defende.

Desde então, ela já lançou uma série de iniciativas ligadas ao movimento slow, como o Guia Desacelera SP, com lugares para aproveitar a cidade com calma e o Dia Sem Pressa, com atividades que estimulam a desaceleração.

Prazertes pesquisa as relações entre a comunicação, as tecnologias e a aceleração social do tempo, e questiona avanços como o controle de velocidade de áudios de WhatsApp e de streamings.

“Empresas de tecnologia geram necessidade. O acelerador de áudio é um exemplo. De escolha passa a ser hábito e de hábito, regra.”

A pandemia teve um grande papel ao naturalizar a cultura da atenção, afirma. “Vivemos situações em que estávamos mediados pela tela, com nossa atenção muito dividida. Saímos da pandemia pior do que entramos, com dificuldade de fixação, apressados.”

Por que não conseguimos nos desconectar? 

Existe uma engrenagem que exige a gente conectado o tempo todo. Não interessa ao mundo do consumo o tempo que a gente não gasta consumindo. Pensar não dá dinheiro, dormir não dá dinheiro. Estamos vivendo algo bastante sofisticado. É ainda mais difícil para a nova geração, que não sabe virar a chave, eles não sabem o que é desconexão, ter direito a ficar alguns dias sem responder uma mensagem.


De quem é a culpa? 

Silicon Valey convenceu a gente de que agilidade é bom, de que tecnologia é progresso. E toda vez que alguém tenta falar qualquer coisa mais ponderada é tachado de nostálgico, dinossáurico, “lá vem os chatos da tecnologia”. Eu estou olhando para os aspectos humanos disso. As pessoas estão adoecendo por causa da velocidade. Não é nostalgia, não é querer acabar com a cibercultura, com a tecnologia, mas a gente olha para a desumanização das relações, as pessoas estão exaustas, aceleradas, desinteressadas pelas outras.

Há a expulsão do outro.

Como isso está comprometendo as relações sociais? Sem se interessar pelo outro, a gente não se conecta, não acha sentido comum. As trocas e os processos humanos ficam comprometidos. Esses dias eu estava numa entrevista e a pessoa do outro lado atualizava o feed. É a desumanização das relações sociais. Esse fenómeno tem a ver com o fato de as tecnologias estarem completamente imbricadas em nossa vida, de não existir mais o conceito de “entrar na internet”.

Como tornar as relações pessoais mais humanas? 

Dá para construir alguns combinados. Se é um círculo de intimidade, estipule contratos de tempo de permanência no telemóvel. Diga coisas como “olha, estou falando com você, pode terminar de responder o celular”. A pessoa fica constrangida e para. Se você está num ambiente de trabalho, proponha um pacto de concentração, de não usar o celular, de guardar num potinho. Diga que a reunião vai ser rápida, mas nesse tempo todo mundo tem que prestar atenção.

Se perceber que alguém está usando, repita o “quando terminar eu continuo”. Também rola o constrangimento. Não podemos naturalizar essa divisão da atenção.

E o que é preciso para sairmos disso? A desconexão é uma das saídas para combater a exaustão extrema. As buscas desse livramento são individualizadas, nosso regime sociopolítico empurra a gente a acreditar que as soluções têm que ser individuais. Eu sei que o que serve para mim pode não servir para os outros. Tem casos que a urgência não é individual. A gente precisa de uma transformação cultural.

Como você lida com a urgência? 

Eu estou atenta ao WhatsApp, mas tem horário que não respondo. Tenho a sensação de que quando você tem as rédeas, essa relação fica menos angustiada. Não é o caso do meu filho de 11 anos. Ele não tem maturidade para lidar. Quando ouve o celular apitar, ele quer pegar na hora, é uma angústia. Eu combinei com ele que tem horário específico para isso.

O que cada um pode fazer?

Tirar notificações, estabelecer horários, tomar medidas no âmbito do direito à desconexão. Não precisa ficar três dias ausente, mas ter pequenos momentos de desconexão já dão um respiro. Eu percebo que os dias que estou mais ativa no WhatsApp por causa do trabalho ou dos filhos, fico mais ansiosa. Eu recomendo também o “não, pera, isso é necessário?”. Não aderir a uma tecnologia só porque é moda e todo mundo entrou. Usar a tecnologia de acordo com a necessidade. Não precisa responder na hora ou estar sempre online.

Em termos de sociedade, o que pode ser feito? 

O Brasil faz uma sinalização de que haverá políticas públicas nesse sentido quando uma secretaria [Secretaria de Políticas Digitais, dentro da Secom] se propõe a pensar letramentos digitais e regulação das plataformas. Temos um longo e desafiador caminho pela frente. Temos gestos, sinais e gente construindo. Essas mudanças nunca são imediatas. Eu tenho esperança".

*Entrevista de Mateus Camillo a Michele Prazeres publicada no jornal Folha de São Paulo a 28 de Fevereiro de 2023

2 comentários:

  1. A sensação é de que somos atropelados pelo tempo, esmagados por tudo que nos propomos fazer e sempre com a sensação de perda...

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Como eu costumo dizer, vivemos numa permanente ditadura do entretenimento - e acrescento: dos estímulos, das distrações, do supérfluo e do consumismo, em que, como muito bem está explicado na entrevista, as relações humanas ficam, cada vez mais, para segundo plano. No Admirável Mundo Novo ter mãe era um horror, não era? Estamos a chegar lá.

      Eliminar