domingo, 15 de julho de 2018

Batem as Portas, em Tons de Suicídio...

"Nuno, a Rita suicidou-se ontem e  foi tudo por tua causa. Deixou esta carta para ti (..) 

A Rita gramou de ti - disse-me o Pedro assim que ela nos deixou para trás ao pé de casa e acelerou o seu Punto sem olhar para trás (o Pedro tem uma predileção por miúdas com carro). Na verdade, não senti nada de especial. Ainda tinha a cabeça cheia da Mónica, tínhamos acabado tudo há um mês, chateei-me porque não gosto que estejam sempre a criticar, já bastam os pais e os professores (...)

Sinceramente pensei que não se is passar nada entre mim e a Rita. O Pedro bem que se fartava de dizer que ela perguntava por mim, mas não se pode levar a sério tudo o que ele diz. 
Encontrámo-nos uma semana depois numa festa de anos. Durante a noite fiquei com a ideia de que me estava a controlar e resolvi dar-lhe um pouco de atenção. Gostava de futebol e de música, curtia um charrito de vez em quando, como a maioria dos meus amigos (...)

Não sei bem porquê, a certa altura a química funcionou e curtimos ali mesmo. O Pedro deve ter-se apercebido de tudo, como de costume, porque quando me acompanhou à mota fez um sorriso de entendido. Pensei que as coisas tinham ficado por ali.
No dia seguinte acordou-me pelo telemóvel. Disse que não tinha dormido a pensar em mim e que tinha um livro para me oferecer. Estava com muito sono e copos a mais, fiquei a pensar no que aquilo poderia querer dizer, achei melhor desligar rápido e dizer que depois falaria (...)

Estavas agora à minha frente, Nuno, e tinhas começado a tua história. Invejei por momentos o teu à-vontade a falar, como eras capaz de descrever o envolvimento com uma rapariga sem receios de te expores, como conseguias contar o que se tinha passado sem estares sempre a interpor ideias moralistas. Quando tinha a tua idade, sabes, as raparigas fugiam um pouco de nós, em risinhos abafados, quase não tinham autorização para sair à noite, nem para ter um carro aos dezoito anos, como a Rita de quem acabaste de falar. 

Acho o médico um pouco distraído, bem me dizem que os psiquiatras não batem bem. Vejo os seus olhos descaídos e um pouco tristes a deambular pelo gabinete, agora surgem de novo mais próximos. Talvez devesse ter ido antes a um psicólogo, assim tinha a certeza de que não me daria químicos, também se este gajo mos der não os tomo (...)

Preciso mesmo de falar com o médico, embora não saiba como começar.
Aconteceu tudo numa vertigem. A Rita começou a telefonar-me várias vezes por dia, a combinar encontros, a propor programas, às vezes apenas para dizer olá. De início achei que devia estar só e com problemas familiares, procurei apenas dar umas dicas sobre a sua vida e pouco mais. 
Um dia mandou-me uma mensagem escrita para o telemóvel: "a escuridão em que me queres deixar rouba-me a vida". Achei isto muito forte. Foi a primeira vez que a associei com a ideia de morte, fui a correr pedir a opinião da minha amiga Leonor. O Pedro acha que ela é feia e vai ficar para tia, eu acho que a Leonor é tão inteligente que há-de seduzir um homem com a sua cabeça. A Leonor disse que era uma bela declaração de amor, não acreditava que se poderia morrer de amor?

(...) Nuno, apetece-me só ficar quieto a ouvir a tua narrativa, afinal como tudo evoluiu?
(...) A Rita começou a andar atrás de mim e eu a fugir. Bem explicava ao telefone que tudo tinha corrido o melhor possível, mas não gostava o suficiente para poder andar com ela. Disse até um dia que os rapazes eram diferentes das raparigas, como tinha aprendido lá na escola, por isso não se prendiam tanto, estava a ser sincero não queria gozar com ela. Respondeu-me com um longo e-mail, de que recordo o final: "Estou à espera do último pôr do Sol, prefiro o silêncio a todas as palavras do mundo, não sei o que passa mas não suporto a ferida que as tuas fugas me provocam, com amor, Rita". Mostrei a carta à Leonor, respondeu-me com uma frase do Principezinho - o essencial é invisível para os olhos -, que me deixou mais confuso que nunca (...)

Tudo o que temos cá dentro / Daniel Sampaio (2000)
(curioso como oferecemos livros sem os ter lido, e depois, quase duas décadas depois, eles nos regressam às mãos para os lermos)

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