"Gostava tanto que Deus existisse
Como havia de ser diferente
Pior ou melhor não sei
Se o visse caminhando, humano
Entre a gente que vai para o trabalho de madrugada
Tão pobre, suburbana
Gente triste como ela só
E tão desamparada que sofre
Sofre tanto mas resiste
E regressa a casa noite fechada
Sem tempo para os filhos
O amor, nada, nada, semana após semana
Gente humilhada, gente perseguida
E deles ausente, seja onde for, todo mês, todo o ano, toda a vida
Gostava tanto que Deus existisse
Como eu havia de ser diferente
Pior ou melhor não sei
Se o visse na manhã de neblina persistente
A apanhar conchinhas brancas na praia
Como quem apanha nuvens no céu
Seria menina e teria saia, azul, curta, talvez de chita
Eu, procuraria ajudá-la a encontrar a conchinha mais bonita
Depois de ver a espuma das ondas
E o ar a bailar como grandes bailarinos
E seríamos felizes os dois
Pois ficaríamos sempre meninos
Porque Deus, se existisse, era o azul mais azul...
A infância que não acaba
Era pai, colo, primavera,
Mil vezes raiar a mesma madrugada
E no desespero do fim da tarde
Havia de aspergir sobre nós
O seu olhar de infinita bondade
O calor do gesto, o cristal da voz
Tudo, tudo, outra vez seria novo
E terno mesmo só por um minuto
Água de lume mais rosa do povo
Voz, viagem, Penélope, Ulisses
São de piano, flauta, fruto
Gostava tanto que tu existisses
"Três Sonetos de Deus Ausente" | José Carlos de Vasconcelos | livro Repórter do Coração
(transcrito da entrevista ao programa "A Força das Coisas" da Antena2)
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