domingo, 20 de outubro de 2024

Voltaire, a Igreja e a Arte Infalível de Evitar Terramotos

Logo após aquelas patéticas declarações do governo, querendo mostrar que estavam preparadíssimos para qualquer terramoto, lembrei-me de imediato de Cândido ou o Otimismo de Voltaire, e, particularmente daquela parte em que Cândido e Pangloss passam por Portugal quando se dá o terramoto de 1755 e como Voltaire satiriza a Igreja que, no livro, decide prevenir futuros tremores de terra com autos de fé. Aqui fica o excerto da minha edição (que tem duas obras "Cândido" e "O ingénuo" e, no final, deixo um vídeo em que a pessoa faz todo o enquadramento histórico:


"Estas reflexões fizeram com que Cândido tomasse uma decisão e fosse imediatamente procurar o seu caritativo anabatista; lançou-se-lhe aos pés; pintou-lhe uma quadro, tão, tão tocante do estado a que o seu sábio se encontrava reduzido, que Tiago não hesitou um momento: levou o Doutor Pangloss para casa e mandou-o tratar, à sua custa, com o maior esmero. O doente só perder, na cura, um olho e uma orelha, Como escrevia bem e sabia perfeitamente aritmética, Tiago fê-lo seu guarda.-livros. Dali a dois meses, necessitando de se deslocar  a Lisboa em negócios do seu comércio, levou, com satisfação, os dois filósofos no seu navio.

Pangloss dava-lhe frequentes lições de otimismo, mas o bom Tiago dizia-lhe:

- É preciso que os homens tenham corrompido um pouco a natureza, pois, não tendo nascidos lobos, tornaram-se como eles. Deus não lhes deu canhões nem baionetas e eles inventaram canhões e baionetas para se destruírem. E ainda podia acrescentar à lista das perfeições, que têm adquirido, as bancarrotas escandalosas e fraudulentas, e o zelo da justiça que se apodera dos bens do falido e não dá nem um quarto aos credores. 

- Pois tudo isso era indispensável - respondeu o doutor zarolho - e dos males particulares resulta, necessariamente, o bem geral; de maneira que, quanto mais numerosos são estes males, maior é a felicidade do todo. Enquanto ele assim dissertava, escureceu o céu, começaram ventos a soprar dos quatro cantos do mundo, e o navio foi assaltado pela mais medonha das tempestades, à vista do porto de Lisboa. 

 I

Tempestades, naufrágio, tremor de terra e as desventuras do doutor Pongloss, de Cândido e do anabatista

 Metade dos passageiros, enfraquecidos, sentindo-se morrer entre convulsões causadas pelos balanços de uma embarcação agitada em direções opostas, carecia do vigor necessário para se aperceber daquele perigo iminente. A outra metade lançava gritos e fazia promessas. As velas estavam feitas em pedaços, os mastros partidos, o barco já se fendia; poucos manobravam, ninguém governava, ninguém se entendia. O anabatista que estava na coberta, ajudava um pouco à manobra; um marinheiro furioso, deu-lhe um empurrão tão grande que o atirou ao chão, mas o impulso foi de tal modo violento, que ele próprio foi de cabeça borda fora. Teve a sorte de ficar enganchado num pedaço de mastro partido e, ao ver isto, o bom Tiago correu a socorrê-lo, ajudando-o a subir para bordo; no meio deste esforço, novo vaivém do barco atirou-o ao mar, à vista do marinheiro, que o deixou perecer, sem se dignar, ao menos, tentar salvá-lo. 

Cândido aproxima-se e vê o seu benfeitor, que um momento reaparece entre as ondas, para ser de novo engolido por elas; quer arrojar-se ao mar para lhe acudir, mas o doutor Pangloss impede-o provando-lhe com os seus habitais silogismos, que a rada de Lisboa tinha sido formada expressamente para aquele honrado anabatista nela perecesse. Enquanto provava isto a priori, o barco abriu-se ao meio e afogaram-se todos quantos lá iam, exceto Cândido, Pangloss e o bruto do marinheiro que tinha feito afogar o virtuoso anabatista, e que se salvou nadando que nem um peixe, até à margem, onde chegaram depois os dois amigos, agarrados a uma tábua. 

Quando se recompuseram um pouco, meteram-se a caminho de Lisboa. Traziam com eles algum dinheiro e esperavam matar a fome de que sofriam, já que a sua boa sorte os tinha salvo da tempestade. Porém, mal tinham posto os pés na cidade, chorando a desgraçada morte do seu benfeitor, sentiram a terra tremer-lhe debaixo dos pés; o mar embraveceu-se ainda mais e arrastou os navios que estavam ancorados no porto. Turbilhões de chamas e de cinzas cobrem as ruas e as praças, as casas desmoronam-se, os telhados afundam-se e os alicerces dispersam-se; trinta mil habitantes de todas as idades ficam sepultados nas ruínas daquela opulenta cidade. O marinheiro, entre palavrões e assobios ia dizendo:

- Qual poderá ser a razão deste fenómeno?

- dizia Pangloss e Cândido gritava:

- Isto é o fim do mundo, o nosso último dia!

O marinheiro corre, intrépido, pelo meio dos destroços, desafia a morte em busca de dinheiro, encontra-o, apodera-se dele, embriaga-se e, depois de cozer a bebedeira, compra os favores da primeira rapariga fácil que encontra, entre as ruínas das casas destruídas, rodeado de mortos e moribundos. Pangloss foi puxar-lhe pelo casaco, dizendo:

- Oh homem, isso não me parece bem! É faltar diretamente à razão universal, é uma péssima ocasião para se pôr com essas coisas.

Vai para o Diabo, que eu não estou aqui para ouvir sermões! - respondia o outro. - Eu sou marinheiro, sou de Batávia; em quatro viagens que fiz ao Japão, quatro vezes marchei sobre o crucifixo; vens-me tu agora para aqui com as tuas idiotices da razão universal!

Cândido estava estendido no meio de uma rua, quase coberto de terra e de destroços, mal ferido pelas pedras que lhe tinham caído em cima.  Lamentava-se em voz dolente e rogava a Pangloss que lhe fosse arranjar um pouco de azeite de vinho, pois a cada momento se sentia expirar. 

- Este terramoto não tem nada de extraordinário - respondia Pangloss. - A cidade de Lima sofreu, no ano passado, iguais sacudidelas; mesmas causas, mesmos efeitos; há decerto uma longa veia de enxofre subterrânea, desde Lima até Lisboa. 

- Não há nada mais provável - disse Cândido. - Pela Virgem Santíssima trazei-me um pouco de azeite e vinho. - Como provável? - replicou o filósofo. - A que chamas tu provável? - Sustenho e afirmo que a coisa está demonstrada e certíssima (...)

V - Como se celebra um auto-de-fé para que não haja tremores de terra, e Cândido desemprenha nele um dos principais papeis 

Em consequência disso, agarraram um biscainho que se tinha casado com a sua comadre, e dois portugueses que, ao comer um frango, tinham separado a gordura para a beira do prato; quanto ao doutor Pangloss e ao seu discípulo Cândido, quando acabaram de comer, entrou meia dúzia de polícias que amarraram ambos: um porque tinha falado, e o outro por ter escutado com certo ar de aprovação e complacência. 

Puseram-nos, separados, em apartamentos fresquíssimos, onde nunca foram incomodados pela luz do sol. Dali a oito dias, enfiaram-nos nuns sambenitos que pareciam feitos de propósito para eles, e adornaram-lhes a cabeça com mitras de papel; a mitra e o sambedito de Cândido tinham pintadas chamas voltadas para baixo, e os diabos que saltavam entre estas não tinham rabo nem garras; mas a Pangloss pintaram-lhe as chamas vitadas para cima, e os seus diabos tinham garras de gavião e rabos compridos e retorcidos como chicotes. Com estas galas levaram-nos, em procissão, a ouvir um sermão muito comovente, ao qual se seguiu excelente música em cantochão.

Cândido foi açoitado em cadência, enquanto o coro cantava; o biscainho e os dois homens que não tinham querido comer a gordura do frango foram queimados a fogo muito lento e Pangloss foi enforcado, apesar de isto não ser costume. Naquela mesma tarde, a tarde voltou a tremer com assombro, estrondo".


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