Artigo muito interessante (publicado no El País no último fim de semana) que aborda o porquê de, nestes tempos de absurdo, as pessoas procurarem significados e explicações que vão muito além dos dados e das evidências.
"Durante uma sessão terapêutica, um dos meus pacientes, perplexo com a efervescência das eleições nos Estados Unidos, comentou: "Nunca me interessou a política, e ainda menos a desse país. Então, porque é que não consigo desviar os olhos daquela personagem vetusta e caricatural? [Trump]". Ao que ele próprio respondeu: "Porque é absurdo... uma palhaçada." Outro paciente, de meia-idade, bem-sucedido no trabalho, veio ver-me atormentado por uma ordem que afirma: "Se não rezares duas horas antes de ir trabalhar, vais ser despedido", e questiona o sintoma: "Se é absurdo, por que é que o faço?" Quanto mais vívida é a sua experiência obsessiva, mais premente é a compulsão.
Vivemos numa era de desconcerto que acarreta uma panóplia de absurdos. Não apenas no que diz respeito à política mundial. Somos atraídos pelo absurdo do absurdo. Mas o que constitui o sentimento do absurdo? E que mecanismos permitem que uma manifestação psicológica tão sem sentido seja tão importante para a vida psíquica do ser humano?
Travis Proulx, da Universidade de Cardiff, que tem vindo a estudar as respostas psicológicas ao absurdo, explica: “Quando falamos de absurdo, referimo-nos a violações dos nossos modelos mentais; é um tema ao qual os filósofos existencialistas dedicaram grande parte do seu pensamento. A morte é a ameaça mais poderosa, viola todos os modelos, mas no quotidiano enfrentamos constantemente violações das nossas expectativas sobre o funcionamento do mundo. Quanto mais os nossos padrões são questionados, mais ansiosos ficamos e mais nos orientamos para a ação para nos afastarmos daquilo que ameaça os nossos modelos de manutenção de significado. ”A pessoa presa no absurdo tende a ver padrões onde não existem, tornando-se mais suscetível a teorias da conspiração ou de causalidade religiosa.
A necessidade de ordem é satisfeita, ao que parece, independentemente da veracidade das evidências. “As ameaças aos nossos quadros de significado, seja qual for a sua origem, motivam-nos a procurar significado noutro lugar", sublinha Proulx. Na fase inicial de ansiedade, o estado de excitação pode medir-se pela dilatação das pupilas: "Estás motivado e vês sinais no ruído", afirma Proulx, cujo trabalho frequentemente utiliza a pupilometria para quantificar a excitação fisiológica perante "o sentimento do absurdo". Além disso, estudos de imagiologia cerebral em pessoas às quais se pediu que enfrentassem dilemas absurdos registam, segundo ele, níveis significativos de atividade no córtex cingulado anterior, “que participa na regulação da atenção e das emoções, no controlo inibitório, no seguimento de erros e na motivação”.
Mas nem todas as incertezas são iguais e não é de esperar que tenham os mesmos efeitos. Acontecimentos traumáticos violam estruturas de significado profundo, tornam-se enigmas existenciais e obrigam-nos a reajustar as nossas expectativas da realidade. “O transtorno de stress pós-traumático conduz a uma vigilância crónica; qualquer pequena anomalia desencadeia uma ansiedade esmagadora que não é adaptativa”. No entanto, dentro de um espectro de absurdo razoável, a ativação do padrão de monitorização de sinais no ruído pode ser benéfica.
Para testar isto, Proulx e o seu colega Steven H. Heine, da Universidade da Colúmbia Britânica, pediram a um grupo de estudantes que lesse uma versão modificada do conto Um Médico Rural, de Franz Kafka, que incluía uma série de eventos absurdos e algo inquietantes. Um segundo grupo leu uma versão diferente, na qual a trama fazia sentido. Em seguida, pediram-lhes que completassem uma tarefa de aprendizagem de gramática, na qual foram expostos a padrões ocultos em cadeias de letras e lhes foi solicitado que copiassem as cadeias de letras individuais e marcassem aquelas que seguiam um padrão semelhante.
Os que leram a versão absurda identificaram um maior número de cadeias de letras. "Estavam claramente motivados a encontrar uma estrutura", concluem os investigadores, "mas o mais significativo é que, na verdade, foram mais precisos do que aqueles que leram a versão coerente. Aprenderam realmente o padrão melhor do que os outros participantes". O teste é uma medida de aprendizagem implícita ou conhecimento adquirido sem consciência. Estamos tão motivados para nos livrarmos do sentimento de estranheza que, sem nos apercebermos, procuramos significado e coerência noutro lugar, canalizando o sentimento para algum outro projeto.
Onde quer que olhemos, o absurdo está por todo o lado. Todas as noites temos um encontro com o absurdo nos sonhos; de dia, tropeçamos nele nos nossos lapsos freudianos; o que seria da piada sem o seu núcleo absurdo? O simples senso comum não nos pode levar muito longe na dimensão do inconsciente, que se expressa de uma forma profundamente absurda.
O absurdo incita-nos a configurar quadros alternativos de significado para manter a integridade do eu e do nosso ambiente. Nas palavras do poeta Pierre Reverdy: "A realidade poética surge do encontro de duas realidades distantes".
David Dorenbaum | Ilustração de Guridi | El País de 6 de Outubro
Sem comentários:
Enviar um comentário