quinta-feira, 9 de março de 2017

Estrela do Caos

De nós os dois, acho foste tu quem teve certamente a juventude mais rebelde. Logo para começar, tu namoraste comigo, logo, isso dá-te uns pontos extra! Eras uma adolescente que não tinha propriamente grandes preocupações com a roupa e com a forma como se apresentava. Vestias o que te apetecia, incluindo roupa do teu irmão mais velho ou até casacos da juventude do teu pai. E combinavas tudo muito descontraidamente. Lembro-me do pormenor dos rasgões das calças na zona dos joelhos, certamente feitos por ti, e que te davam, lá está, um ar ainda mais rebelde. Hoje não dá ar rebelde nenhum. Olha é como as tatuagens, hoje qualquer pita-choca tem tatuagens, e as calças esburacadas há muito que entraram na moda.

Na verdade, em ti, acho que ninguém prestava muita atenção à roupa que usavas. Tu impunhas-te pela tua presença e pela tua personalidade. E assim de repente até acho que é isso que falta às jovens de hoje. Sempre tão preocupadas com a forma com que se apresentam, e tantas vezes pouco preocupadas com a firmeza do seu caráter.  

Mas apesar da rebeldia, outra coisa que nos caraterizava, era a responsabilidade. Passar pela adolescência, sem fumar nem beber bebidas alcoólicas, demonstra sempre alguma firmeza e ainda tinha mais graça por não sermos propriamente uns meninos de coro. Agora até me lembrava dum casal que conheci, pouco tempo depois de nos termos separado, acho que eram de Espinho, e encontrei-os várias vezes em concertos, e eles  como que ficavam fascinados quando me encontravam. Eu ele aquele tipo com mais de trinta anos, que nunca tinha fumado nem bebido álcool! E não deixa de ser engraçado que, apesar de ser complicado passar a adolescência a resistir aos comportamentos unanimemente tidos como fixes - "não bebes não fumas não és fixe" - mas depois, quando somos mais velhos, sejamos reconhecidos por nunca o termos feito. 

Talvez tu me ganhasses em rebeldia porque eu ganhava-te em responsabilidade. Embora fôssemos ambos responsáveis, havia uma diferença: tu gostavas de experimentar. Se eu sabia que algo não era bom para mim, eu fugia das situações; já tu, não querias morrer estúpida, o que, desculpa lá, mas é um bocado estúpido. Repara, se calhar eu também gostaria de saber, como é mandar-me lá do cimo da Ponte Dom Luiz abaixo e saber como é o sentir corpo a bater lá em baixo no rio Douro. Mas para isso, para saber como é, tenho de morrer! Estás a ver? É estúpido. Pois eu desde novo prefiri morrer estúpido acerca de muitas coisas, porque em muitas situações, o problema das pessoas é precisamente esse: é quererem experimentar para saber como é. E já diz o ditado: "a curiosidade matou o gato"! 

Já lá vão quase vinte anos e como é normal há pormenores que já me escapam. Mas tenho quase a certeza que deveríamos estar a namorar há dois meses, quando tu, a Ana, a Raquel e a Joana (e agora não me lembro do nome daquela tua amiga da Ribeira, que tu gostavas muito, pelo menos até ela ter arranjado namorado). Já não sei ao certo quantas foram contigo, mas tenho ideia que vocês eram umas três ou quatro, contigo cinco no máximo. 


Tinham decidido ir, todas juntas, passar uma noite, acho que era para Afife... Ou seria Esposende? Acho que só pode ser Afife, até porque eu nunca estive em Afife. Não conheço Afife! Só posso ter esse nome gravado na cabeça por causa da tua ida com as tuas amigas burguesas, para um sítio na praia, para experimentarem umas "cenas". 

Eu terei sido veementemente contra a tua ida. Nem tenho dúvidas sobre isso. Eu sou um chato do caralho, da pior espécie mesmo. Mas claro que tu não precisavas da minha aprovação para ir, apesar de eu saber que, naquela altura, eu era a pessoa mais importante para ti. E eu sabia que aquilo tinha tudo para correr mal. Vocês acharam que tinham arquitetado tudo muito bem. Foram ao Centro Comercial STOP comprar as substâncias ilícitas ao dealer de serviço (a legalização do consumo das drogas leves só chegaria dois anos mais tarde pela mão do hoje Secretário Geral das Nações Unidas, António Guterres , e, nesse tempo, fumar um simples charro, era um fruto proibido, talvez por isso, muito mais apetecido)  e lá foram vocês, um grupo de mulheres, no fim do secundário, e quase a atingir a maioridade, de comboio para Afife. 

Eu, como bom namorado, fui contigo levar-te à estação, mas voltei para casa apreensivo, pois como diz o nosso amigo Murphy: "se algo pode dar errado, dará". E claro que deu.

Lembro-me de já serem altas horas da noite. E nesse tempo ainda ninguém tinha telemóveis. E tocou o telefone. Era uma amiga tua... Tu tinhas batido muito mal com as merdas que experimentaste. E eu fiquei completamente passado com o que estava a ouvir. Tu, em pânico, terás pedido para me ligarem... Claro, só podia ser assim, só tu sabias o meu número de cor. Eu acho que chegamos a falar um pouco e eu ter-te-ei acalmado...

A coisa correu tão mal que me disseste que nunca mais na vida quererias experimentar nada daquilo. Mas eu sempre me perguntei: e se não tivesse corrido mal? Irias ter ficado só por ali, só para não morreres estúpida, ou irias continuar a experimentar? E eu, iria conseguir impedir-te de repetires a gracinha, ou iria ter de aceitar? Resignado não iria certamente ficar. Ainda por cima, nesses tempos, ambos, já tínhamos problemas graves o suficiente para tentarmos sair deles, não precisávamos de mais nenhum.

Mas no meio disto tudo há um pormenor que nunca me esqueci. Na estação, quando te deixei para ires com as tuas colegas, eu tirei o fio que usava há já uns anos. Não era um fio com uma cruz. Tirei-o e coloquei-o em ti. Era uma Estrela do Caos.


2 comentários:

  1. Que gesto bonito da tua parte, carregado de sentimento :)
    SF

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    1. Não acho que tenha sido nada demais. Mas é curioso que vi ontem esse mesmo gesto (alguém que tira um fio com uma cruz e coloca noutra pessoa) no filme "Tears of the Sun" e já quase a adormecer comecei a pensar neste acontecimento já tão longínquo... E fui ligar o computador para escrever. Vida de blogger não é fácil! AH ah ah
      (e eu provavelmente começarei a escrever mais sobre acontecimentos da minha vida... e não será só sobre as quintas-feiras!!)

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