sábado, 8 de fevereiro de 2014

Psoríase: um amor para a vida

Era verão, e eu estava em plenas férias grandes da escola. Comecei a notar que andava com alguma comichão na cabeça, e comecei também a reparar nas pequeníssimas partículas brancas que ficavam em cima da escrivaninha preta que tinha no meu quarto. Algum tempo depois, estava com o corpo todo salpicado de pintas vermelhas, assemelhando-se a uma espécie de varicela. Infelizmente não era uma simples alergia a roupa, ou algo que tivesse comido, ou outra coisa qualquer passageira. A comichão no couro cabeludo e as pintas espalhadas pelo corpo eram uma doença crónica e tinham um nome: Psoríase. 

Não tinha passado por nenhuma experiência traumática recentemente, nem física nem psicológica, nem tinha estado doente com nenhuma infeção que pudesse despoletar a doença. Os meus pais e avós também não tinham a doença, e eu não fumava nem nunca tinha experimentado bebidas alcoólicas. São estes alguns dos fatores que os especialistas apontam como potenciadores da doença, mas aparentemente não tinha nenhum deles. E não me parece que um jovem adolescente em plenas férias estivesse a sofrer de grande stress emocional.

A psoríase afeta, cerca de 2 a 3% da população, o que equivale dizer que em Portugal afetará, mais coisa menos coisa, cerca de duzentas mil pessoas. É uma doença de pele, auto-imune, e que na maioria dos casos ataca de forma muito localizada e os doentes conseguem conviver bem com ela, sem grandes perturbações na sua vida diária, conseguindo até escondê-la das outras pessoas. Noutros casos infelizmente não é bem assim. A psoríase além de atacar uma grande parte da pele do corpo, ataca também as articulações, naquilo que se designa por artrite psoriática (ou psoríase artropática) provocando, além das grandes perdas de auto-estima, dores, e limitando muito a vida do doente. Só cerca de 5% dos doentes com psoríase é que têm problemas com a artrite. A minha sorte foi dupla, e eu sou um desses 5% dos 2% de pessoas que tem psoríase. 

Após a primeira consulta no médico de família, comecei a aplicar as primeiras pomadas pegajosas na pele, que nada resolveram, e fui então encaminhado para a consulta da especialidade. Ainda me lembro bem da primeira médica dermatologista que me viu. "Oh rapaz, tu tens de ir à bruxa!"
Passou-se um ano, e várias consultas depois. Como as pomadas, manipulados e champôs mal-cheirosos não produziram grandes melhorias, ela escreveu uma carta ao médico responsável num dos hospitais da cidade, e encaminhou-me para lá. E a partir dos dezasseis anos, os hospitais passaram a fazer parte das minhas rotinas.

No hospital comecei por fazer PUVA, o tal tratamento que recentemente saiu nas notícias, em que uma senhora de Braga morreu queimada, e em que se calhar, eu nunca tive consciência que poderia correr risco de vida estando enfiado lá dentro. O PUVA ou puvaterapia consiste em dar uma medicação ao doente (eu tomava umas cápsulas antes de sair de casa) medicamento esse que aumenta a sensibilidade da pele à luz, e depois já no hospital, entrava para dentro de uma espécie de cabine telefónica, que por acaso era circular, e lá dentro estava preenchida por lâmpadas fluorescentes com radiação UVA. As sessões eram três vezes por semana, e o tempo em que ficava a tostar ia aumentando gradualmente. Antes deste tratamento, tive que ir a uma consulta de oftalmologia e comprar uns óculos de sol com proteção UVA e UVB pois tinha de os usar nos dias em que tinha as sessões de PUVA.

http://uvtreatment.org/
Não era uma rotina fácil. Levantar bem cedo com as galinhas, apanhar não sei quantos autocarros, ir para o hospital, fazer o tratamento, voltar a apanhar mais uns quantos autocarros, e ir para as aulas de óculos de sol, fizesse sol ou chuva. Mas o PUVA teve ótimos resultados e a psoríase desapareceu.

Desapareceu durante um ou dois anos. Depois, aos poucos e poucos, começou a reaparecer e não mais parou de piorar, mesmo tendo começado a tomar drogas via oral com muitos efeitos secundários. Mas não havia jeito de melhorar. A situação no hospital também era um caos, por vezes parecia que tinha de meter um requerimento para falar com o médico, e esperar várias horas, à espera que sua excelência se dignasse a falar comigo. O tempo foi passando e acabei mesmo por aparecer no consultório particular do médico. Ali, certamente sempre teria mais tempo para mim a troco de uma boa quantia de dinheiro. Diz-me qualquer coisa como, o meu estado era tanto inaceitável tanto para mim como para a medicina, e que iria melhorar brevemente. Quem ouvisse julgaria que eu me desmazelava, e que não tinha feito tudo o que ele me havia dito para fazer no hospital, mas infelizmente, parece que a minha psoríase estava a ganhar à  medicina dele. 

Como já referi, as lesões da psoríase, na maioria dos casos, aparecem em sítios escondidos, e durante este tempo todo, fui conseguindo esconder a doença de olhares indiscretos, e mesmo de pessoas que conviviam muito de perto de mim. Mas uma coisa é conseguir esconder o problema, outra coisa completamente diferente é a pessoa aceitar-se no estado em que está. É muito bonito dizerem-nos que temos de nos aceitar, que isso até ajuda no processo de melhoria, mas por norma, fala quem não sabe como é ter a doença. E não é fácil, é até muito revoltante. Não é à toa que estudos apontam que, por exemplo, a psoríase tem taxas de suicídio superiores às dos doentes com cancro. A psoríase não mata, mas arruína a auto-estima, e isso é tão complicado que leva algumas pessoas a preferirem acabar com a própria vida.

Já tinha mais de vinte anos quando o médico decidiu internar-me no hospital pela primeira vez. E não foi mesmo nada fácil para mim. Se dizem que a psoríase precisa de tranquilidade e de pouco stress, não foi ali que a encontrei, bem pelo contrário. Estive sob grande stress, angústia e revolta. Eu ia estar internado umas quantas semanas, a ocupar uma cama de hospital, unicamente para aplicar uns cremes na pele (cignolina e coaltar saponinado) porque, vá lá saber-se porquê, não os podia usar fora do hospital, e continuava  também com as mesmas drogas fortes que já tomava antes.

Ter grandes extensões de pele com psoríase, implica todos os dias hidratar, porque senão a pele seca e torna-se mesmo muito desconfortável. Depois ao aplicar estes cremes gordurosos suja-se a roupa, e esta tem um prazo de vida muito inferior visto que tem de ser lavada a temperaturas superiores.
Mesmo hidratando de manhã, a pele vai secando, e aos poucos e poucos começam-se a soltar as peles, e estas caem e ficam em todos os sítios por onde passamos, ficam em todas as coisas onde tocamos.
Não bastassem já todos estes problemas que a doença sozinha causa, e entretanto a medicação, além de não combater a doença, ainda ajudava a piorar mais a auto-estima. Uma das drogas que tomei (Neotigason), começou a fazer-me cair o cabelo todo, era como se estivesse a fazer quimioterapia. Lembro-me muito bem, de estar no banho, e por mais levemente que passasse as mãos pelo cabelo, ele desprendia-se e ficava com as mãos cheias de cabelo... A doença dá cabo da auto-estima que origina problemas emocionais, a medicação não resolve e ainda por ainda nos enterra mais para baixo.

O hospital foi uma espécie de cadeia. Existem horários e rotinas para tudo, e só se tinha uma hora ou uma hora e meia de visita na altura. Não foi mesmo nada fácil para mim. Naquele hospital sentia-me como um animal no zoológico. As quintas-feiras então eram detestáveis. Vinham todos os médicos em desfile, com um bando jovens médicos ou alunos a acompanhar. Sei que eram sempre muitos. Chegavam ao pé da cama de cada doente e falavam entre eles, na sua linguagem técnica, como se o doente não estivesse ali, e fosse uma atração numa espécie de circo dos horrores.

Após várias semanas de internamento tive finalmente alta, e não terá sido coincidência que, comecei a melhorar sim, mal saí de hospital! Mas também foi sol de pouca dura. Poucas semanas depois, dava de novo entrada no hospital, muito pior do que estava, com psoríase pustular nas mãos, e como pude olhar para os resultados das análises, vi que os valores estavam todos mal, e estaria com um infeção ou algo do género.

E a partir daqui não mais pude esconder a doença, pois a psoríase apareceu também nas mãos e tinha também por vezes a pele muito vermelha na cara. Por norma, o sol, com as devidas proteções, faz muito bem à pele, só que existe um pequenino problema. De novo a auto-estima a atrapalhar, porque como os doentes não se quererem expor, evitam a tão aconselhada praia. Se eu nunca fui grande amante de praia, de estar ali deitado horas a fio a torrar ao sol, com a doença então ainda pior. Não gostava de me sentir observado, costumava dizer que era como se fosse uma árvore de natal na praia. 

Saí do segundo internamento com uma descrição qualquer do género "o doente recusa-se a tomar a medicação". No hospital estavam afixados, por todo, uns cartazes com os direitos e os deveres dos doentes. É uma espécie de Constituição, e como se sabe são do género de coisas para inglês ver! Lá só haviam deveres, e quando um doente questiona o que lhe foi novamente receitado, porque já fez aquela medicação e a única coisa que aconteceu foi ter ficado sem cabelo, a coisa não corre bem, e a culpa, logicamente é do doente porque ousa fazer perguntas aos senhores doutores.

Desde a primeira vez que entrei naquele hospital que o dermatologista me questionava se tinhas dores nas articulações. Mas nunca percebi bem porquê. Fiquei a saber quando, dez depois anos de ter sido diagnosticado com psoríase, me ter inchado um joelho que quase não podia dobrar. E a partir daqui, aos poucos e poucos, a artrite foi fazendo das suas.

Parece-me óbvio que qualquer pessoa, minimamente informada, sabe que a psoríase não é doença transmissível. Nem pelo ar, nem pelo sexo, nem de qualquer outra forma!
Mas ainda há gentinha muito ignorante, e muitas vezes até com responsabilidades e formação. Aquando do terceiro internamento, por causa do joelho, estive com é lógico algumas semanas de baixa. Quando voltei ao trabalho, e depois de ter tido a visita no hospital de dois colegas de trabalho, a minha pele deve ter sido assunto na empresa. No primeiro dia que regresso ao trabalho, o responsável pelo departamento técnico (e acionista da empresa) vem ter comigo e exige que eu vá ao hospital buscar um documento médico, em que ateste que eu não tenho nenhuma doença transmissível "pois sabe como é, nós temos pessoas em casa, filhos..." Sem comentários.
Mas felizmente que também existem pessoas muito esclarecidas. Em 2001 candidatei-me a uma outra empresa, e fui recrutado, contudo, depois daquela experiência anterior, senti -me na necessidade de dizer desde logo ao administrador, "olhe que eu tenho uma doença de pele..." e ele quase não me deixa dizer mais nada, e de imediato me responde "não queremos saber disso para nada, queremos é pessoas que trabalhem bem". E assim foi, honra lhe seja feita, pois nunca tive o menor problema naquela empresa, nem sequer por ter tido algumas baixas motivadas pela artrite.

Entretanto, a frustração fez transbordar o copo, e abandonei o acompanhamento da especialidade. O meu caso era grave, tinha feito todos os tratamentos propostos, mas a cada tratamento acabava sempre por piorar e a paciência esgotara-se.
A doença foi-me tornando numa pessoa amarga. Tenho consciência que nem sempre fui uma pessoa fácil de trato para as pessoas que mais diretamente conviviam comigo de perto. A doença muda muito as coisas, e pode interferir muito na forma como nos relacionamos com os outros. Se não estamos bem na nossa pele, esse estado de espírito interferirá com tudo, e quando estamos pior, isso irá ter sempre reflexos na vida pessoal.  

Existem outras formas de tratar a psoríase que não exclusivamente a medicina convencional. Cheguei a experimentar a acunpuntura durante um ano, mas o único resultado foi que obtive, foi ver a minha conta bancária emagrecer substancialmente. Os tratamentos são muito caros, e cá, ao contrário do que acontece noutros países, em que a medicina tradicional chinesa faz parte do serviço nacional de saúde, aqui é o doente que tem de pagar tudo à sua conta, e nem sequer pode meter as despesas no IRS. Ia melhorando e piorando, como melhorava e piorava sem fazer qualquer tratamento e cerca de um ano depois deixei de ser picado pelas agulhas.

Muita gente também me falava constantemente que deveria experimentar as termas. Em particular as Termas de Monfortinho, muito indicadas para o tratamento da psoríase. Depois de muitos adiamentos por motivos vários, acabei mesmo por ir ver para crer, e fiz dois anos consecutivos, em 2008 e 2009, durante mais de duas semanas de cada vez. Fiz o pedido da credencial na médica de família, para depois de pagos os tratamentos, solicitar o reembolso da percentagem que o Estado comparticipava (na altura) este tipo de tratamento para fins medicinais. E lá fui experimentar as termas. Em conversa com algumas pessoas no hotel, e que frequentavam as termas há muitos anos, diziam-me que estava no sítio certo, que lá iria melhorar muito. Também os funcionários das termas me diziam o mesmo. Mas infelizmente não foi bem assim.
Os tratamentos (banhos, duche escocês, pulverizações) eram de manhã e à tarde, e o tratamento passava também por beber daquela água, conhecida por ser milagrosa.
Mas a verdade é que a água desidratava-me imenso a pele, esta secava muito depois de cada sessão, e até gretava, causando muito desconforto. Como tal, a minha rotina era, sair das termas e ir para o hotel, que ficava a uns duzentos metros, e hidratar-me. Ali tinha no entanto uma vantagem, a calma e tranquilidade, e aproveitei para passear e conhecer grande parte do concelho de Idanha. Aconselho mesmo vivamente aquela região: Monsanto, Penha-Garcia, Salvaterra do Extremo, Idanhas (Nova e Velha) etc.
Só que eu não estava ali para fazer turismo, estava sim para ver se melhorava da pele. Mas no fim de contas, ao fim daqueles dois anos de tratamentos, a verdade é que, mais uma vez contra todas as expectativas, não melhorei absolutamente nada, tendo gasto, mais uma vez, imenso dinheiro. Dinheiro esse que  hoje penso, que se calhar, teria sido melhor empregue num destino de sol e praia.

Entretanto a artrite piorava ano após ano. Vá lá saber-se porquê, começava a ter uma crise de artrite sempre em setembro. Já nem sequer metia férias neste mês, pois sabia que, mais semana, menos semana, iria estar de baixa. Até que no fim de 2009 piorei absurdamente, e estive vários meses de cama quase sem me poder mexer. A médica de família havia falado com a minha mãe, que eu deveria voltar a ser acompanhado no hospital, e eu como não tinha mais nenhuma alternativa, lá acedi. E estranhamente, passado muito pouco tempo, já tinha consulta para ir, agora num novo hospital, pois a localidade onde vivo, passou para a tutela desse outro hospital da região.

E iniciava-se aqui um novo capítulo... (continua)

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