Do jornalista Miguel Carvalho li o livro
Quando Portugal Ardeu sobre o pós 25 de Abril, e das organizações de extrema-direita que andavam a colocar bombas nas sedes do partido comunista, que mataram, por exemplo, o padre Max da UDP. Entretanto publicou outros livros e regressa agora com um livro com mais de setecentas páginas sobre os bastidores do CH.
"Esta é a investigação que revela a face oculta do Chega.
Com recurso a milhares de páginas de documentos inéditos e largas dezenas de entrevistas exclusivas com fundadores, financiadores, atuais e antigos dirigentes e militantes, Por dentro do Chega é, sobretudo, um retrato do partido por aqueles que o criaram e o fizeram. Sem filtros."
Na promoção ao livro pude ler duas reportagens, uma na Visão e outra no Jornal de Notícias e são alguns desses excertos que aqui deixo, para abrir o apetite para quem quiser comprar o livro ou, em alternativa, a revista Visão ou o Jornal de Notícias de hoje. Comecemos pelo Jornal de Notícias:
BORRADINHOS DE MEDO
"Dos financiamentos escondidos às gravações telefónicas secretas para entalar rivais internos, esta investigação mostra como André Ventura patrocinou exércitos de perfis falsos e purgas internas para criar um Chega unipessoal que sustenta as ambições desmedidas, as vidas abastadas e as madrugadas de copos dos seus mais reputados dirigentes. Pelo meio há guerras religiosas, filiações de imigrantes brasileiros em massa e a tentativa de corrupção de um ministro de Cabo Verde.
"André Ventura e a mulher, Dina, mais um punhado de dirigentes de topo do Chega, numa lancha rápida de Lagos até à cidade marroquina de Tânger, que seria a ponte até ao exílio na Costa do Marfim. O objetivo era Ventura fugir à prisão e contornar, na clandestinidade, a já sentenciada ilegalização do partido em plena pandemia. É com esta insanidade coletiva que começa o livro “Por Dentro do Chega”.
A fuga para Tânger nunca chegou a acontecer, mas o plano existiu e André e Dina chegaram mesmo a refugiar-se “borradinhos de medo” na quinta de luxo de Arlindo Fernandes em Lagos, segundo contou este empresário admirador de Salazar. Arlindo Fernandes subiu a pulso no Chega, mas, como muitos, desencantou-se quando viu um partido podre (...)
O Chega foi fundado em 2019 para “limpar Portugal” e adotou, em 2021, no Congresso de Viseu, o lema de Salazar “Deus, Pátria e Família”, ao qual acrescentou “Trabalho”. A fuga para Tânger é exemplo de como os primeiros três anos seriam encharcados de boatos que eram gasolina para a guerra civil interna. Os telemóveis eram a principal arma e Ventura acabou com a rédea solta. Decretou que quem dissesse mal dele ou do partido, em público ou privado, seria suspenso.
ESFARRAPAR A OPOSIÇÃO INTERNA
"Para agilizar as expulsões sem contraditório, Ventura criou a Comissão de Ética liderada pelo deputado Rui Paulo Sousa que suspendeu ou expulsou mais de 100 militantes, quase todos opositores internos. “Havia decisões tomadas antes de as analisarmos”, revela Carlos Monteiro. Ao fim de dois anos, o Tribunal Constitucional declarou a Comissão de Ética ilegal. Mas o objetivo de esfarrapar a oposição interna já estava alcançado.
Miguel Carvalho não tem “qualquer dúvida” que esse será o trato a dar às oposições se Ventura chegar ao poder. “No Congresso de Coimbra, uma das declarações que ele faz, naquela estratégia de namoro/arrufo com o PSD, é que queria ter quatro pastas e uma delas era o Ministério da Administração Interna. Um partido com estas práticas que tome conta do MAI, ainda que seja só essa pasta, é absolutamente assustador. Nós estaríamos perante a concretização de um Ministério do ‘Big Brother’”
CASOS E CASINHOS
"Muitos dos que se envolveram no Chega, financiadores ou não, desencantaram-se com o partido. Mais de metade dos vereadores eleitos deixaram de se rever na estratégia. Entre os vários entrevistados há sempre um aspeto comum: o Chega pratica dentro de portas aquilo que promete combater fora delas.
Um vasto rol de “casos e casinhos”
Aos vários “casos e casinhos” já conhecidos, Miguel Carvalho junta-lhe outros como o da fatura que Pedro Pinto deixou por pagar nos Bombeiros Voluntários de Beja, a da pensão de alimentos que Rui Paulo Sousa prometeu pagar quando fosse eleito deputado, a das dívidas que Diogo Pacheco de Amorim tinha quando entrou no Parlamento. Vários dos 60 atuais deputados do Chega estavam na lista negra do Fisco poucos dias antes de serem eleitos e outros refizeram a vida com a entrada para o partido.
Entre os mais próximos de Ventura não faltam cadastros iguais aos bandidos que o líder garante combater, sem que os expulse, como promete. Hélio Filipe, que é militante do Chega, guarda-costas de André Ventura e namorado de Rita Matias, foi condenado a dois anos de pena suspensa por espancar e roubar um homem. No mesmo processo, não foi provada a acusação de sequestro e extorsão. Na semana passada, foi o segurança pessoal de Ventura na incursão pela manifestação de imigrantes.
Enquanto controlou as despesas do cartão de crédito do partido, Nuno Afonso contabilizou abastadas refeições para Ventura e os seus mais próximos, com digestivos “à la carte” e estadias em hotéis, além de um carro topo de gama para uso do presidente. As noites de copos em casas de meninas eram conhecidas. Na sede, as noitadas eram umas atrás das outras. “Era um cenário típico de final de noite num bar de terceira categoria”, descreveu Nuno Afonso, também ele autor de um livro sobre os bastidores do Chega (“Ontem éramos o futuro”, 2025).
À “Notícias Magazine”, Miguel Carvalho distingue o eleitor do Chega dos seus dirigentes, pois o partido cresceu à custa de quem se desacreditou ou se sente abandonado pelo sistema político-social e pelos serviços públicos básicos como os CTT, a escola ou o centro de saúde: “Se houver um político que não se cinja às redes sociais e for por esse país fora, de porta a porta, fazer um esforço descomunal, para ouvir e tentar perceber, e que seja absolutamente fiel à palavra dada, aí o Chega não terá grandes hipóteses, nem com redes sociais”.
Até lá, Ventura será o que as massas quiserem que ele seja, como demonstra Miguel Carvalho. Qual camaleão que sempre aparece para salvar as almas do caos das circunstâncias, algumas de fabrico próprio. Ele é, se for preciso, o seminarista mais promissor que deixou de ser padre porque encontrou o amor; o dedicado académico progressista, preocupado com os direitos humanos, que se distingue na sala de aula para agradar aos professores; o mais zeloso inspetor do Fisco e combatente dos paraísos fiscais que mais tarde lhe vão pagar a campanha; o humanitário cronista de jornal que apela a que se acolha “o maior número possível de migrantes” (2015); o enraivecido megafone dos benfiquistas em horário nobre na CMTV; o messias dos crentes, católicos ou evangélicos; o farol dos desencontrados".
REVISTA VISÃO:
"Finalmente, o Chega contrata o alugar de um Renault Talisman 1.5 dCi Zen por 36 meses, para o serviço do líder, a 400 euros mensais. Fernanda Marques Lopes, primeira presidente do Conselho de Jurisdição do partido, viu-o chegar com Luc Mombito (funcionário do Chega) ao volante. “Olha lá, André, compraste um carro para o partido?” O líder explicou: “É renting.” Mas a advogada insistiu: “E o conselho de auditoria não tem de saber?” O líder, sempre, ao longo do livro, e em diversos episódios, com pouca tolerância ao escrutínio interno, começou a impacientar-se: “Sou presidente, posso comprar o que me apetecer, não vou pedir autorização para comprar uma mesa ou um carro!”
SEMPRE A MENTIR
A fuga para a frente, sempre que Ventura é questionado, reflete-se também nos grandes temas. Ainda na semana passada, depois de ser desmascarado na “gaffe dos hambúrgueres”, contra-atacou, falando – mais uma vez, falsamente, como ficou demonstrado – de mais de 1500 viagens do Presidente Marcelo ao estrangeiro. Condenado por difamação no caso da família Coxi (do Bairro da Jamaica, a quem chamou “bandidos”) com sentença confirmada nas instâncias superiores, já após recurso, disse, na AR, em outubro de 2024: “Fui a tribunal sempre que me acusaram de difamação, racismo, discriminação. Venci em todos os processos.” Como sempre, estava a mentir.
Jornal PÚBLICO:
Chega: sexo, mentiras e Deus
Miguel Carvalho recolheu centenas de testemunhas, de dirigentes e militantes do Chega. Muitos, certamente sem conhecerem a teoria de Bannon, apontam essa explicação “Ajudei a nascer o Chega porque acreditei que era algo que Deus queria que eu fizesse. Entretanto, o André revelou-se um Saul e não um David. É um grande actor,” diz Lucinda Ribeiro, a mulher nascida em Meimoa, Penamacor, que organizou o crescimento do Chega nas redes sociais. A seu lado trabalhava outra mulher, de origem social bem diferente: Patrícia Sousa Uva gosta de se chamar a si própria de “dondoca”. O seu testemunho sobre Ventura também revela uma personagem construída: “É uma mistura de padre com chico-esperto do futebol de Mem Martins.”
O grupo que geria as redes sociais de Ventura incluía ainda Gerardo Pedro, de Santarém. “Via-o a ralhar na CMTV, no ‘Rua Segura’, e deixei-me ir naquela conversa, era música para os meus ouvidos…” Hoje, Lucinda, Patrícia e Gerardo deixaram de se rever na personagem. “Sinto vergonha de ter andado nisto. Não é o que quero, nem para a minha filha… Este homem não pode governar o país. Não pode”, diz Gerardo Pedro. Mas o seu trabalho (muitas vezes de sapa, com perfis falsos, montagens e difamações sobre outros políticos) permitiu a Ventura libertar-se da sua ajuda. O líder é a personagem, como revela o livro: 80% dos fundadores do Chega já saíram do enredo (...)
Só na região de Lisboa há mais de mil igrejas evangélicas. As mais pequenas têm menos de 100 pessoas, enquanto as maiores (como a IURD ou a Igreja Maná) organizam muitos milhares. Miguel Carvalho aponta alguns nomes curiosos de congregações: “Assembleia de Deus Fogo para a Europa”, “Igreja Baptista Cristo Vive em Células”, “Igreja do Avivamento em Portugal”, ou “Igreja Evangélica Bola de Neve”.
Estas igrejas são espaços comunitários, raros, nas nossas sociedades, quando quase todas as formas de organização (incluindo a Igreja Católica, os sindicatos, as associações culturais) estão em crise. No início deste século, os evangélicos representavam 5% da população brasileira, sendo agora quase um terço dos 212 milhões de habitantes do Brasil. Ricardo Marchi, observador (muitas vezes participante) do Chega é citado por Miguel Carvalho: “Muitos evangélicos comprometeram-se com o Chega desde o início, compartilhando vídeos e textos de fiéis brasileiros contrários à agenda da esquerda (principalmente política de género e mobilização LGBTQIA+).”
Ventura deixou nas redes o convite: “O Chega é a religião dos portugueses comuns”; “Nós somos como aquelas seitas religiosas: fortíssimos”; “Sou muito religioso e acredito que o que me aconteceu a mim e ao Chega na História de Portugal, desde o meu percurso de comentador até ao Parlamento, é um milagre”; “Quero todas as igrejas cristãs com o Chega. Todas. Sem medo nem preconceito”; “Deus no Comando!”Em Por Dentro do Chega, Miguel Carvalho detalha as relações de Ventura com magnatas dos media (Marco Galinha e Mário Ferreira), com vendedores de armas, industriais e donos das maiores herdades do país. E, ainda assim, é visto como o político que quer acabar com o “sistema”. Nas páginas de Miguel Carvalho, constatamos que grande parte dos dirigentes, deputados e financiadores do Chega são investidores e negociantes de imobiliário. O preço das casas bate recordes e cria uma crise social profunda, mas o Chega é o partido que mais sobe nas eleições. O próprio André Ventura, imediatamente antes de se dedicar à política, aconselhava candidatos a vistos gold em negócios de compra de prédios. “Ventura provou que não é anti-sistema, é o próprio sistema”, critica uma antiga candidata do Chega em Braga.
(...)
Miguel Carvalho recolheu depoimentos que ilustram este fervor escatológico em Lisboa. A senhora que limpava a sede do partido revela que “por vezes a sede parecia uma taberna! Rasca! Enfrascavam-se de uma maneira… Se esta gente governasse o país, eu emigrava…”
CORREIO DA MANHÃ
“Ventura parece ter um beliche nos estúdios de TV”
O Chega esteve envolvido em polémica desde a fundação. O livro explica, com testemunhos em ‘on’, o caso das assinaturas falsas para a constituição do partido. Face às evidências, porque é que este processo foi arquivado?
Não sou eu que devo explicar isso. O Ministério Público fez as suas diligências. E o processo acabaria arquivado, não como o Chega diz, mas apenas porque não se conseguiu identificar a pessoa que decidiu isto tudo, o autor dos crimes. Mas as assinaturas falsas existiram. Estranho, diria até escandaloso, é que André Ventura foi identificado como a pessoa que recolheu grande parte das assinaturas, que pagou a recolha das assinaturas, mas nunca foi ouvido no inquérito.
Há mais casos polémicos no livro...
Sim, e alguns, na minha opinião, têm relevância criminal. Como o das gravações ilegais no partido, por exemplo. Ou como foi feito o financiamento do partido, descrito por pessoas que estavam no centro da ação política do Chega. Mas, lá está, não sou eu que devo fazer essa avaliação. O livro está à venda ao público (...)
A questão das gravações só agora foi conhecida...
É, para mim, a questão mais grave. As gravações ilegais no partido terão surgido para afastar opositores internos. Não sei se as práticas continuam, mas, até 2021, foram feitas, colocando militantes contra militantes, dirigentes contra dirigentes, com a cumplicidade dos dirigentes nacionais. Perante estas práticas, pergunto: como será, amanhã, se o Chega for governo, se tomar conta do Ministério da Administração Interna?
Em 2020, muitos achavam que as minhas preocupações eram distopia. Agora, acho que isso é verosímil. Para mais, quem governa adotou, em parte, a agenda do Chega em vários temas. A AD quase se tornou o braço político do Chega. E o Chega quase se transformou no “braço armado” da AD. O partido de André Ventura anda a promover políticas que, a seguir, a AD vai aplicar. É um sucesso para o Chega.
No livro, critica a forma como a comunicação social levou Ventura ao colo...
Quase parece que Ventura tem beliche nas redações e estúdios das TV. Há uma espécie de “SOS: Chama o Ventura!” quando as audiências estão em baixo.
Hoje há grupos (como o 1143 de Mário Machado) que se sentem legitimados pelo discurso do Chega
E, para mais, isso é masoquista. O Ventura, várias vezes, faz ‘bullying’ aos jornalistas e à própria estação, transformando esses momentos em clips para as redes sociais. É algo que só se explica com o esboroar dos critérios editoriais dos media portugueses.
Acha que o Chega contribuiu para normalizar o discurso de ódio em Portugal?
Claramente. As pessoas começaram a perceber que este discurso de ódio era ‘mainstream’. Dizem: “Se há mais 10, 100, mil pessoas a dizê-lo, então, eu também posso dizer, não devo estar errado.”
No último capítulo do livro, descreve como o Chega é o partido mais popular entre os jovens. É preocupante?
Sim, mas, há uns anos, muitos jovens também achavam que era ‘cool’ ser do BE - que, atenção, tem um projeto político muito diferente do Chega, progressista e humanista –, também por razões disruptivas. No caso do Chega, importa destacar o papel da Rita Matias, que deu muitos seguidores e eleito- res jovens ao Chega. O Ventura e a Rita Matias fazem uma dupla que funciona bem, com aqueles vídeos nas redes sociais, fanaticamente consumidos pelos miúdos. E sempre que a Rita Matias visita uma escola, os alunos entram em ebulição – atrai os filhos das elites, mas também jovens de origens humildes, com um discurso simples, básico, por vezes mentiroso, mas que “entra” muito facilmente (...)
Também há sinais positivos. O que se tem revelado nas escolas é que as miúdas, de forma geral, são menos permeáveis às narrativas do Chega. Regra geral, conseguem refletir mais sobre certos temas – como a sexualidade, feminismo, violência, etc... –, são mais maduras, agem menos em grupo, têm capacidade para pensar pela própria cabeça. Muitas pessoas que trabalham nas escolas acham que este é o caminho para combater o extremismo: o futuro pode começar pelas mulheres.