"A ditadura perfeita terá a aparência da democracia, uma prisão sem muros na qual os prisioneiros não sonharão sequer com a fuga. Um sistema de escravatura onde, graças ao consumo e ao divertimento, os escravos terão amor à sua escravidão."
"Os patrões preferem não produzir a aumentar salários porque pensam que aumentar salários é coisa estrutural que lhes vai retirar a margem de lucro. Sabotam o seu próprio trabalho. Isso é muito visível por exemplo no caso da hotelaria que se queixava de não ter trabalhadores. Esta argumentação de Ventura não é para diminuir o nº de imigrantes, é uma argumentação para manter os imigrantes na clandestinidade, a baixos salários, muitas vezes abaixo da norma legal e ao mesmo tempo com horários extensivos. Porque AV sabe muito bem que se um milhão e meio de imigrantes fosse embora até o André V€ntura tinha que trabalhar, coisa que ele não está bastante interessado em fazer.
A grande solução, ao contrário do que diz Rita Matias é termos imigrantes com condições dignas de trabalho. Porque se os imigrantes estiverem cá, com os papeis, legalizados, com direitos sociais e com direitos políticos, os salários são mais elevados. Ao serem mais elevados Todos os outros salários também podem subir. Esta é a única forma, porque a forma que ela diz: expulsar alguns imigrantes, tornar a vida dos imigrantes um inferno, que vão buscar crianças à escola, como nos Estados Unidos, estão aí nas ruas como em Portugal a ir às empresas, o que vai fazer é fixar os imigrantes cá de uma forma clandestina e dessa forma eles ganham abaixo da norma de trabalho. Abaixo da norma do trabalho eles pressionam o resto dos salários para baixo".
Este excerto é de Nuno Ramos Almeida no podcast "Os Comentadores".
Excerto retirado (e levemente editado) da crónica "A noiva Matias, os vendedores de São Martinho e a cabeça de Passos Coelho, de Pedro Garcias no Público.
Quando estamos preocupados com algo, ou algo nos ocupa a mente, de repente, parece que só vemos isso à frente. Como se as coisas nos aparecessem propositadamente, mas não, como estamos muito preocupados ou focados em determinada coisa, reparamos nessas coisas que normalmente não darímaos tanto valor. E foi o que me aconteceu com a doença da minha mãe.
Há seis meses, quando partilhei no Bluesky excertos do texto "Cuidar dos pais nos faz pensar sobre finitude" de Cláudia Colluccino (Folha de São Paulo), legendei com "Tudo o que leio é sobre a minha mãe" e aqui deixo um excerto, mas acrescento também um artigo sobre o tabu da morte de Régis Debray publicado na mesma altura no jornal espanhol El País.
Como os textos estavam aqui nos rascunhos do blog e demorei tanto a decidir-me deixá-los aqui, vou agora acrescentar também mais dois artigos. Um sobre como é viver sabendo que se tem uma doença terminal, publicado em junho no jornal espanhol La Vanguardia, e, mais recentemente, um artigo sobre a felicidade tóxica e as "patrulhas do luto", publicado, tal como o primeiro, no Folha de São Paulo.
"Foi na primeira vez que tive que dar um banho na minha mãe que a ficha caiu. Naquele instante, os papéis de cuidados haviam se invertido e eu nunca havia me preparado para isso. Três semanas antes, ela havia tido um diagnóstico de um silencioso câncer avançado.
Cinco semanas antes, ela tinha me recebido com meu prato favorito. Sete semanas antes, ela se divertia comigo, brindando a vida em uma cantina italiana. E agora lá estava eu diante daquele corpo frágil, que sempre foi meu colo, o meu remanso, precisando de ajuda para as necessidades mais básicas.
Eu que sempre valorizei o conhecimento, com mais de 20 anos de estudo, entre graduação e pós-graduações, não me atentei para o fato de que, sim, cuidar dos nossos pais exige aprendizado. Às vezes, de forma rápida e sem manual de instruções.
(..) Acompanhar de perto o envelhecimento dos meus pais (e envelhecer junto com eles) me fez enxergar como é importante o planejamento para tornar esse período da vida mais suave.
Desde o ponto de vista emocional, para encarar a fragilidade daqueles que, para nós, sempre foram sinónimos de fortaleza, até para decisões financeiras, já que os custos serão altos, e escolhas de fim de vida
.
Mas nem tudo é dificuldade. Há muita beleza e benefícios em acompanhar o envelhecimento dos pais. Cuidar deles permite que a gente reveja laços, acerte pendências, e aprenda muito sobre empatia e compaixão.
Encarar o declínio de alguém que a gente ama também nos faz refletir sobre a nossa própria vida, finitude, valores e sobre como queremos ser cuidados na nossa velhice".
“O tabu que era o sexo agora é a morte”
Ele encarou a morte de frente uma vez. Foi em 1967, quando, após combater ao lado do Che Guevara, foi capturado e torturado. Passou quatro anos numa prisão na Bolívia e foi condenado à pena máxima. Relata esses momentos, quando pensava que seriam os últimos: “É curioso, porque primeiro entra-se em pânico, mas no fim, quando se acredita que chegou o momento, torna-se quase um espectador. Estava perante o pelotão e, na verdade, era uma simulação, mas eu não sabia. Há um momento em que tudo se torna leve. Resignamo-nos”, explica Régis Debray.
O filósofo (Paris, 84 anos) publicou há dois anos O Último Suspiro, uma obra a duas vozes em que, juntamente com Claude Grange, chefe de unidade de cuidados paliativos, aborda a importância do acompanhamento nos últimos momentos de vida. Foi nessa experiência que se inspirou o cineasta franco-grego Constantin Costa-Gavras, de 92 anos, para o seu último filme, com o mesmo título, estreado hoje em Espanha.
Um “trabalho corajoso” que aborda “o tabu deste século”, explica Debray na sua casa em Houdan, uma vila a 70 quilómetros de Paris, um templo cheio de livros classificados por género, rodeado de prados verdes e amarelos. “Não podemos aprender a morrer, claro que não. Podemos aprender a ver morrer, mas aprender a morrer é absurdo, quase cómico”, analisa.
Aos 84 anos, Debray refugia-se neste espaço após uma vida cheia de risco e épico: foi amigo de Fidel Castro e depois juntou-se ao Che Guevara para tentar expandir a revolução até à Bolívia. Embora não queira aprofundar muito esse episódio: “Na verdade, só estive prestes a morrer aquela vez.” “Temos de aceitar a ideia de que o homem é mortal. Por isso, no contexto dos cuidados paliativos, o problema é ver morrer”, aprofunda.
Contudo, nas visitas que fez a esses centros, para escrever O Último Suspiro, apercebeu-se de uma realidade: “Os médicos que lá trabalham não estão tristes. Não há nada de fúnebre nos centros paliativos, os profissionais de saúde estão bem-dispostos, isso surpreendeu-me”, salienta. Em França morrem por ano 600.000 pessoas e “existem apenas 200 centros paliativos. Fala-se em multiplicá-los, sim, mas há poucos voluntários”. As mulheres, diz, “são mais corajosas perante a morte, talvez por terem dado à luz e terem mais resistência à dor; creio que têm menos medo da morte”.
Em O Último Suspiro, a vida e a morte - ou a sua aproximação - reconciliam-se através de uma conversa: a que mantêm um médico responsável por um hospital de cuidados paliativos e um escritor, interpretados pelos atores Denis Podalydès e Kad Merad (Debray e Grange). No elenco participam também as atrizes Ángela Molina e Charlotte Rampling.
“Queria fazer um filme mais divertido”, reconhece Debray, mas Costa-Gavras “preferiu fazer um filme não sobre a morte, mas sobre a prevenção, uma ode à vida. É muito corajoso num momento em que fazemos de tudo para apagar a morte, porque ele propõe o debate, não o evita, e faz um filme sobre um tema tabu”.
A morte é rejeitada, ocultada, negada e transformada em algo “quase clandestino”, assegura. “Durante o século XX o tabu era o sexo; no século XXI já não é tabu, e nisso Freud teve grande influência. Hoje é a morte, um tabu mais difícil de ultrapassar do que o do sexo.”
Embora tenha sido um firme defensor da laicidade em França - a separação entre Igreja e Estado (foi um dos primeiros membros do comité pela laicidade da República Francesa) - Debray analisou o papel da religião e da fé nos grupos sociais. Considera que o declínio do cristianismo influenciou muito este repúdio à ideia de morrer. “Antes era apenas uma etapa, não uma partida definitiva, mas o desaparecimento relativo da fé e da crença no paraíso, e sem a ideia de ressurreição, transformou-a cada vez mais num tabu.”
EUFEMISMOS
A prova disso, defende, é a forma como a cobrimos de eufemismos: hoje não se fala em morte, mas em fim de vida; o cancro é “uma longa doença”; um “velho” é um sénior; e a eutanásia é “uma ajuda para morrer”. “Tudo muito politicamente correto. Fazemos de tudo para evitar a morte física e moral, e há pudor em falar sobre ela”, denuncia.
Também perdeu o seu lugar nos rituais, fruto dessa decadência da fé e, nessa tentativa de a apagar do mapa, “já não há cortejos fúnebres, como os que antes atravessavam as aldeias para que as pessoas se despedissem do falecido; o luto desapareceu, o espetáculo da morte está proibido, tornou-se algo clandestino e faz-se de tudo para que não se torne um problema. Tornou-se uma obscenidade”. Quase, denuncia, está a desaparecer o velório: antes velava-se os mortos em casa, e “hoje tornou-se algo incómodo”.
Nos dias que se seguiram à entrevista, Régis Debray teria de se submeter a uma intervenção, o que não o impede de pedir um cigarro à esposa. Passeia-se pela sala rodeado de livros enquanto reflete. A morte é um tabu, mas teremos menos medo da morte dos outros do que da nossa? “Também aí, cada vez a aceitamos menos. Antes podia tirar-se uma fotografia de alguém que tivesse falecido, agora está proibido.”
Recorda que uma das últimas fotos de falecidos célebres publicadas na imprensa foi a da cantora francesa Edith Piaf, que morreu a 10 de outubro de 1963. Foi no mesmo dia que o poeta Jean Cocteau, mas “ela ocupou as capas da imprensa e ele, as páginas interiores”. Este último “teve o azar de morrer no mesmo dia que uma figura tão popular como ela. Até para morrer é preciso escolher bem o dia”, reflete com ironia.
"Em novembro de 2023, Sílvia Socias (Barcelona, 1975) começou a perceber que algo não estava bem. Sentia dores numa perna e começou a andar mais devagar do que era habitual. Decidiu consultar um neurologista. Este foi o início de uma longa peregrinação por várias consultas médicas que terminou no início de 2024. O resultado? Esclerose lateral amiotrófica (ELA). Confessa que o diagnóstico provocou-lhe “um colapso brutal”. Mas com o tempo, conseguiu encarar a situação de outra forma. E tudo graças ao seu esforço, ao apoio da família e dos amigos, e ao acompanhamento da Fundació Catalana d’ELA Miquel Valls, cujo departamento de psicologia integra o programa de atenção integral a pessoas com doenças avançadas, promovido pela Fundação La Caixa.
Embora o diagnóstico só tenha sido confirmado no início de 2024, ela já suspeitava há bastante tempo que se tratava de algo grave. Ainda assim, mantinha a esperança de que pudesse haver alguma solução médica para o seu caso. “Mas quando pronunciaram a palavra ELA, foi um colapso total”, conta ao La Vanguardia. Nesse momento, diz, sabemos que temos um prazo de validade: “Dizem-te que estás a morrer”.
“Todos sabemos que um dia chegará a nossa hora - argumenta -, mas acreditamos que ainda falta muito. Tenho dois filhos, uma rapariga de 13 anos e um rapaz de 7. A primeira coisa em que se pensa é que não os veremos crescer, que também não poderemos envelhecer ao lado do nosso marido. Nesse momento, vivemos um luto muito grande”.
Com o passar do tempo, no entanto, conseguiu ultrapassar essa fase. “Percebemos que é preciso seguir em frente, que os meus filhos ainda têm a mãe, e que é preciso viver o momento, porque é um presente. É verdade, estou doente e a piorar progressivamente, mas tento ser positiva e fazer as coisas de que gosto”.
Admite que explicar a situação aos filhos foi muito difícil. À filha, a mais velha, conseguiu contar com mais detalhe. Já ao mais novo, não. “Só lhe disse que estou doente. Ele pergunta-me se vou morrer um dia. Digo que sim, mas que não será hoje nem amanhã”.
Eles - relata - foram testemunhas do seu agravamento. De caminhar, passou a usar muletas. Pouco tempo depois, cadeira de rodas. “No meu caso, a doença avança muito rapidamente”, lamenta. No entanto, ainda conserva algumas capacidades: “Ainda consigo mexer um pouco os braços, falo bem, consigo escrever alguma coisa, ler, embora esteja totalmente dependente”.
Afirma que a Fundació Catalana d’ELA Miquel Valls tem sido uma grande ajuda, tanto com a terapia individual como com o grupo de apoio, onde pessoas afetadas pela doença – que ontem teve o seu dia mundial – partilham as suas experiências. No início, estava relutante – “pensava que seria lembrar constantemente que estou doente”, diz – mas acabou por se revelar muito benéfico. “No grupo há pessoas muito positivas e com muita vontade de viver, e isso ajudou-me muito”.
A fundação procura incentivar e promover estes grupos. “Criar espaços onde possam interagir entre si é muitas vezes mais poderoso do que qualquer intervenção individual”, afirma Maria Dalmau, psicóloga da instituição.
“São pessoas que estão a viver a mesma situação e podem partilhar conselhos e experiências. Encontram conforto ao falar entre elas. Alguns doentes pensam: ‘Se alguém como eu consegue encontrar sentido na vida, eu também posso’”.
A entidade oferece apoio em todas as áreas: física, psicológica e social. “Ajudam-nos em cada fase da doença, que vai evoluindo. Ajudam com a tecnologia. Por exemplo, se precisares de um guindaste porque o teu marido já não te consegue levantar”, explica Sílvia. A fundação conta também com uma terapeuta ocupacional e ajuda a agilizar a documentação necessária.
Para os seus profissionais, como Maria Dalmau, não é fácil lidar com pessoas que sofrem de uma patologia sem cura. “Ver que o nosso trabalho pode melhorar a qualidade de vida delas é reconfortante”, aponta. “Vivemos situações difíceis, mas sentimo-nos gratificados com o cuidado que damos. Vemos que o nosso trabalho tem sentido”, acrescenta.
Sílvia lamenta não ter sentido qualquer melhoria após a entrada em vigor da lei contra a ELA, em 1 de novembro de 2024. “É contraditório: a doença evolui muito depressa, mas os processos são muito lentos. Desespera-te. Tens consciência de que os trâmites não acompanham a rápida progressão da patologia”, conclui.
ClaudiaQuando minha mãe morreu, aos 62 anos, após dois anos e meio de sofrimento com o câncer, algumas amigas ficaram preocupadas comigo: “Mirian, você tem que sair, se divertir, seguim frente. Tem que pensar positivamente, ir dançar, fazer algo diferente, arranjar um novo amor”
"As patrulhas do luto e adeptas da felicidade tóxica enxergavam a minha tristeza como doença. Elas acreditavam que a minha tristeza era contagiosa.
Quando acompanhei meu pai, desde o primeiro minuto em que ele descobriu o câncer até o dia em que ele partiu, aos 68 anos, perdi dez quilos. No enterro, uma tia disse: “Mirian, você está um cadáver, parece que saiu de um campo de concentração”.
Assim que voltei a dar aulas, uma colega da UFRJ me elogiou: “Nossa, como você emagreceu, está linda. O que posso fazer para ficar com esse corpinho? Estou morrendo de inveja. Veja o lado bom da perda”.
No dia 17 de abril de 2022, quando perdi o amigo que mais amei em toda a minha vida, achei que iria morrer de tanta tristeza. Minhas amigas insistiram: “Mirian, você tem que sair da toca, não pode ficar tão enclausurada, vai viajar, toma antidepressivo, tem que curar essa tristeza”. Fiquei na minha toca e escrevi “Memórias de uma Antropóloga Malcomportada” em homenagem ao meu melhor amigo.
Meu maior arrependimento é não ter escutado as histórias dos meus pais. Não conheço as suas histórias e, portanto, não conheço a minha própria história. Por isso, quando a Unicef me convidou para participar de um projeto sobre legados que transformam, tenho pensado muito no meu legado para as novas gerações.
No vídeo que gravei para a Unicef, falei que tenho um sonho: construir A Casa da Bela Velhice. Brinquei com a palavra “casa”: C de coragem, A de autonomia, S de significado e A de amizade.
A Casa da Bela Velhice será um espaço acolhedor para ensinar jovens e crianças a “a arte de escutar bonito” os velhos de hoje e os velhos de amanhã. A Casa da Bela Velhice será um lugar para ensinar a enxergar a beleza da velhice, um espaço em que os mais velhos se sentirão amados, cuidados, protegidos, respeitados e valorizados.
A Casa da Bela Velhice será o melhor lugar do mundo para brincar com a criança que nunca deixamos de ser. Uma casa em que os velhos de hoje e os velhos de amanhã, juntos, irão descobrir que nunca é tarde para amar, brincar e sonhar com um mundo em que as pessoas não serão julgadas pelas rugas da sua pele e sim pela beleza do seu caráter. Livres, somos livres enfim...
A partir do seu sofrimento nos campos de concentração, de 1942 a 1945, após perder a esposa grávida, o pai, a mãe e o irmão assassinados pelos nazistas, Viktor Frankl, no livro “Em busca de sentido”, escreveu que acreditava na capacidade humana de transformar criativamente os aspectos negativos da vida em algo positivo ou construtivo. Ele chamou de “vazio existencial” a sensação de falta de sentido da própria vida.
Depois de perder as pessoas que eu mais amei na vida, descobri o significado da minha vida no amor incondicional, no trabalho, na criação e nos meus projetos de vida. Em tempos em que existe uma felicidade tóxica, sei que tenho a liberdade de escolher a melhor atitude para transformar a realidade perversa e cruel que os mais velhos sofrem dentro das próprias casas e famílias.
Aprendi com o meu melhor amigo, de 98 anos: “Tem que ter coragem, Mirian. Coragem, você vai sim!”.
No ano passado tinha ido à final, mas hoje, se quisesse passar a fase de grupos tinha de vencer o atleta seguinte já bem meu conhecido. Mas fui para a mesa a pensar em quem seria aquele atleta de 47 anos que antes deste jogo se aproximou de mim e disse: "nós conhecemo-nos mas não sei se onde, tu até me apresentaste uma banda portuguesa...", e depois mostra-me uma foto de uma demo de 99 de uma antiga banda de Lisboa, os Te Deum da Cristina Lopes. Sim, de facto, ele não estaria enganado porque eu conheci bem de perto os Te Deum...
Peguei na bolsa da raquete, na toalha e na garrafa e lá fui para o jogo. Entrei totalmente desastrado. No primeiro set até falhei 3 serviços... "Ele tem olhos azuis mas aquele maxilar e aqueles dentes não me são estranhos. Ele disse que nos teremos conhecido nos anos 90... Já sei! É o Pernas de Alicate! Tinha um cabelo comprido, muito loiro e usava uma t-shirt de Lacrimosa! À boca pequena davam-lhe esse nome porque usava calças elásticas muito coladas às perninhas finas. Como é que eu o poderia reconhecer agora, sem cabelo e muito mais gordo?
O meu adversário estava a jogar mal mas eu não estava ali de todo, estava bem longe a pensar de onde conhecia este desconhecido que me tinha abordado. Ele era da turma de gestão de redes e eu de automação e robótica. Era dali que nos conhecíamos. De certeza! Perdi 3-0 mas fui ter com ele contente, tinha vencido o desafio de o encontrar na minha memória! Disse-lhe de onde nos conhecíamos e ele confirmou logo!
Casou e engordou bastante. "Tu continuas na mesma", disse-me. Claro, não casei mantive o mesmo peso, pá! "Espera, vou já ligar à minha mulher para me divorciar"! Trocamos números de telefone. Claro que não tem redes sociais. É engenheiro informático e sabe bem a merda que são. Esteve no Twitter mas, tal como eu, saiu mal o Musk comprou a rede social. Usa as redes sociais russas, mas eu disse-lhe que estou no Bluesky e aliciei-o a ir dar uma vista de olhos.
Ele teve um esgotamento e a psicóloga aconselhou-lhe desporto. Tal como eu também não gosta de ginásio e certo dia a ver os Jogos Olímpicos viu ténis de mesa e lembrou-se como gostava de jogar na escola e inscreveu-se num clube da Maia.
Paralelamente a esta aparição e reencontro, curiosamente, um outro adversário nosso conhecido, e atleta do clube organizador, é vocalista de uma banda que eu inclusive vi, há muitos anos, aqui na minha terra! Ele arbitrou o meu primeiro jogo e disse-lhe que o meu colega de clube o tinha reconhecido. Ao que ele responde que seria natural porque veio ao nosso torneio. Não, ele reconheceu-te da banda que és vocalista!
No ano passado fui à final deste torneio. Desta vez nem passei da fase de grupos. Mas foi espetacular na mesma!
Uma coisa que ouço frequentemente no trabalho é "porque a tua geração isto" ou "a tua geração aquilo". entre pessoas que distam dez anos de diferença! Mas faz algum sentido segmentar as pessoas desta forma? Isto tem algum fundo de verdade científica - os baby boomers são assim e a geração Z é assado - ou é uma coisa tão rigorosa quanto o horóscopo astrológico da revista sobre o que nos irá acontecer na próxima semana?
No fim de semana passado o jornal espanhol El País trazia uma reportagem muito interessante sobre o tema e aqui deixo o artigo traduzido para melhor elucidar quem por aqui passar:
"Todos começámos a pesquisar no Google a palavra millennial por volta de 2012 para descobrir se fazíamos parte do grupo. A designação surgiu pela primeira vez em 1991 no livro Generations, dos escritores e consultores norte-americanos Neil Howe e William Strauss, mas na altura não teve grande repercussão. Segundo o Google Trends, as pesquisas do termo começaram timidamente em 2005 e atingiram o pico máximo em 2013. Hoje os millennials são alvo de paródias na internet, mas na altura eram sociologicamente muito atraentes. Em menos de uma década foram destronados pelos zetas, que já são seguidos de perto pelos alfas, e que dentro de alguns anos serão substituídos pelos betas, bebés nascidos a partir de janeiro de 2025.
Antes dos millennials vieram os X e, muito antes, os boomers e a geração silenciosa. Fora do mundo académico, pouco se prestava atenção a estas classificações, mas desde que o tema entrou na cultura pop, sociólogos e demógrafos receiam que se esgotem todas as letras do alfabeto se continuar a moda de rotular uma nova coorte geracional aproximadamente a cada dez anos.
Em 2021, Philip Cohen, sociólogo da Universidade de Maryland, pediu numa carta aberta ao Pew Research Center, um centro de investigação norte-americano, que “fizesse as coisas bem” e deixasse de usar etiquetas “arbitrárias e contraproducentes” como geração Z e baby boomers, por “não estarem sustentadas por qualquer evidência científica”. Com exceção dos baby boomers, que correspondem de facto a um marco demográfico, as restantes gerações tinham sido declaradas e nomeadas “sem qualquer justificação empírica ou teórica”, dizia a carta, concluindo: “Rotular gerações e fixar as suas datas promove a pseudociência, mina a compreensão pública e prejudica a investigação.” Cohen foi apoiado por 170 investigadores. O poderoso think tank norte-americano anunciou então que entrava numa fase de reflexão sobre o assunto.
“O primeiro erro é acreditar que o X da geração X se refere à letra do alfabeto”, explica Oriol Bartomeus, politólogo e diretor do Institut de Ciències Polítiques i Socials (ICPS), ligado à Universidade Autónoma de Barcelona, acrescentando: “Na verdade, esse X representa uma incógnita. No seu livro Generation X (1991), Douglas Coupland descrevia uma geração sobre a qual se sabia pouco ou nada. A partir daí, continuar a nomear as gerações com as letras consecutivas do alfabeto foi uma tolice monumental”, diz o professor, que, em conversa telefónica, se confessa “muito anti-segmentação geracional”. Na sua carta, Cohen também ridicularizava o uso das letras e denunciava que o esquema geracional se tinha tornado “uma paródia”. “Aparentemente, com a geração Z chegámos ao fim do alfabeto — isto vai continuar eternamente?”, questionava.
Em 2023, o prestigiado centro de investigação concluiu a sua reflexão. O seu presidente, Michael Dimock, publicou “as cinco coisas a ter em mente quando se ouve falar de geração Z, millennials, boomers e outras gerações”. São elas: “As categorias geracionais não têm definição científica”; “induzem a estereótipos e simplificações excessivas”; “as discussões sobre gerações tendem a acentuar as diferenças e não as semelhanças”; “as visões convencionais sobre gerações podem criar um viés a favor das classes altas”; e, finalmente, “as pessoas mudam com o tempo”.
Philip Cohen concordou, por correio eletrónico, com estas conclusões e com a promessa do Pew Research Center de que “o público não deve esperar que as novas investigações usem a lente geracional. Só falaremos de gerações quando isso acrescentar valor aos debates e dar significado às tendências sociais.” Para o professor da Universidade de Maryland, o debate está ultrapassado: “Já não é relevante; simplesmente não devemos usar essas estratificações porque não fazem sentido”, afirma de forma categórica.
Bartomeus admite que não há “unanimidade académica” quanto à definição das gerações e explica que há duas escolas principais: a que defende que há uma geração por década e a mais clássica, representada por Ortega y Gasset, que considera que há um salto geracional a cada 30 anos. Um modelo menos rígido define as gerações de acordo com os acontecimentos históricos e sociais que cada uma viveu. Como explica Bartomeus, autor de El peso del tiempo: relato del relevo generacional en España, “em Espanha haveria uma divisão natural em 1975 entre a geração pré e pós-democracia; na Europa de Leste, em 1989, com a geração pós-Muro de Berlim; e em quase todo o mundo ocidental, em 2008, com os nascidos após a crise financeira que destruiu o pacto social e fez ruir a armadilha da meritocracia”.
Entretanto, os zetas ganham força na internet, parodiam a “pausa millennial” (aqueles segundos de hesitação antes de gravar um vídeo, que denunciam quem não nasceu com uma câmara na mão) e popularizam o “ok boomer”. Agora, vivemos um amargo confronto de acusações: os zetas culpam os boomers pela sua precariedade económica. “É verdade que é a primeira geração do declínio, que está a assistir ao desmantelamento da classe média e sente que lhe roubaram a carteira - mas é enganador dizer que a responsabilidade é geracional”, contrapõe Bartomeus. Para os especialistas, o pior da hiperfragmentação etária é que alimenta uma guerra entre gerações e desvia a atenção de problemas estruturais como o preço da habitação ou os baixos salários, que afetam diretamente o nível de vida.
A teoria de Cohen é que as etiquetas cristalizam a experiência de milhões de pessoas muito diferentes. Haverá quem resista ao estereótipo, mas outros esforçar-se-ão por se encaixar nele e reforçar o sentimento de pertença a um grupo. Como explica por telefone Almudena Moreno, socióloga da Universidade de Valladolid, a internet é replicante e muita gente acaba por acreditar que, se pertence à geração X, é apática; se é millennial, é narcisista e adora tostas de abacate; e se é zeta, deve pagar com gosto seis euros por um café de especialidade. “Estas etiquetas não nascem da sociologia, mas sim das necessidades do marketing de fragmentar o mercado e levar as pessoas a consumir produtos conforme a idade”, reflete.
No seu livro de 2021 The Generation Myth, o politólogo Bobby Duffy sustenta que o mercado tem interesse em exagerar as diferenças geracionais para poder oferecer uma solução. Duffy, professor no King’s College de Londres, escreve por correio eletrónico que existem mais desigualdades dentro de uma mesma geração do que entre duas gerações distintas. O exemplo são os millennials que herdam e os que não herdam. Segundo um artigo da revista The Atlantic, quando a esperança de vida era mais curta, a divergência entre quem herdava e quem não herdava ocorria muito cedo e determinava o rumo de toda a vida — uns e outros raramente se cruzavam. Hoje, um fenómeno típico do século XXI é que dois amigos vivem de forma idêntica até à meia-idade; depois, um deles herda, os planos divergem e as vidas afastam-se. Ambos continuam a ser millennials, fãs de tostas de abacate, mas agora um é rico e o outro não. E essa distância, que não é geracional, parece intransponível.