quarta-feira, 3 de dezembro de 2025

Conversa com uma Leoa



No filme Only Lovers Left Alive, que fui ao cinema ver com uma amiga por quem lhe treme as virilhas pelo Tom Hildston, os humanos estavam tão contaminados que os vampiros tinham extrema dificuldade em encontrar sangue de qualidade. E arranjaram um contacto no hospital que lhes fornecia sangue de qualidade do tipo O negativo.

Lembrei-me disto porque hoje em dia, cada vez mais é difícil arranjar carne que saiba a carne. Parece que não sabe a nada. Ou pão que saiba a pão, fruta que saiba a fruta (excluindo a que apanho das minhas árvores).

Gostava de perguntar a uma leoa se na savana a carne também é de péssima qualidade e não sabe a nada, ou se isso só nos talhos humanos! Será que uma leoa também tem de meter montes de condimentos e especiarias na carne de uma gazela para lhe saber a alguma coisa? ou, pelo contrário, a carne na savana é saborosa?

Diz-se agora que a geração que tem agora 20 anos nunca saberá o que era um mundo sem internet e sem telemóveis. É verdade, mas também nunca saberá o que é pão saboroso, carne saborosa ou um bolo-rei com brinde e fava e a saber a bolo-rei.

segunda-feira, 1 de dezembro de 2025

Obrigado, Mariana

Mariana Mortágua entalou banqueiros em comissões de inquérito e isso terá sido o seu grande pecado. Assustou os grandes capitalistas - ela sim abalou, e de que maneira, o sistema! E é jovem, bonita, competente, ainda por cima homossexual. E é extremamente inteligente. E isso, infelizmente, é proibido em Portugal. Daí que tenha sido alvo de uma campanha absolutamente vergonha, caluniosa, nunca antes vista na democracia portuguesa. Ironicamente, ou de forma quase simbólica, foi eleita coordenadora do Bloco de Esquerda a 28 de Maio. 

Mas é triste ver os competentes saírem e observar, impotente, os medíocres a governar o país, roubando os pobres para dar aos ricos. Mariana Mortágua, que estou convicto, teria dado uma extraordinária ministra das finanças ou excelente primeira-ministra, abandona a coordenação do Bloco de Esquerda, e eu decidi transcrever algumas palavras sobre ela, de um homem que cedo me habituei a admirar, ainda quando era líder do Partido Socialista Revolucionário.

Da minha parte, aqui fica o meu singelo obrigado a Mariana Mortágua e toda a luta que travou na defesa dos que menos têm. 



A Filosofia Metaleira - e o Porquê dos Metaleiros Serem Pessoas Pacíficas e Felizes

 Deixo aqui um artigo publicado ontem no El País sobre a filosofia do Heavy Metal. E, já agora, no fim, e porque vem a propósito, adicionei um documentário que já tinha visto no Youtube há uns tempos, sobre o porquê dos metaleiros serem das pessoas mais felizes e pacíficas e estar cientificamente provado que o heavy metal tem um impacto positivo na saúde mental. 


"As chaves da filosofia metaleira: cepticismo, intensidade e honestidade brutal

O rock mais duro é também uma ferramenta para canalizar a rebeldia e para nos lembrar que devemos manter-nos fiéis a nós próprios

Em 1987, os Bruque cantaram “o heavy metal não é violência”. Agora, tantos anos depois, algumas vozes perguntam-se se esse tipo de música - um ruído infernal para muitos - esconde uma missão luminosa nas suas entranhas. Uma coisa é verdade: quando chega a hora de viver, perante a paisagem desolada de dificuldades, miséria e morte sem resposta, milhões de pessoas encontram sossego na fúria de um riff de guitarra. “O metal é uma transgressão existencial - explica ao telefone o sociólogo e filósofo Hartmut Rosa, autor de Cantam os anjos, rugem os monstros: uma breve sociologia do heavy metal. Entra na escuridão abismal, liberta os monstros e carrega dentro de si um anseio de redenção. Com a sua música procura-se activamente uma experiência genuína e profunda.”

É uma rocha a que agarrar num mar de disparates. “É mais do que música, é uma forma de olhar o mundo com lucidez e rebeldia, de encontrar sentido e irmandade no meio do caos”, reflecte por e-mail David Alayon, consultor e responsável pelo podcast Heavy Mental juntamente com o humorista Miguel Miguel e o engenheiro Javier Recuenco. “A forma como um metaleiro olha o mundo parte de uma mistura de cepticismo, intensidade e honestidade brutal. Não se trata de negar a escuridão, mas de a encarar de frente, transformá-la em força e converter a dor, a raiva ou o desespero em algo criativo e colectivo.

Alguns relacionam as letras do metal com o pensamento existencialista. A jornalista Flor Guzzanti escreve na revista Rock-Art que aquilo que Black Sabbath ou Judas Priest exprimem através da distorção não é assim tão diferente do que Camus e Sartre escreveram: o confronto com o absurdo, a alienação e a liberdade. Descartar o metal é descartar a filosofia feita de som. Alayon concorda. “Partilhamos uma visão existencialista, aceitando que o mundo é duro e que a única coisa autêntica é manter-te fiel a ti mesmo e aos teus.” E vem à cabeça a voz do recentemente falecido Ozzy Osbourne a cantar Electric Funeral, que incita a não nos deixarmos prender numa cela em chamas.

Para Andrés Carmona, autor de Filosofía y heavy metal , o universo sónico da cultura heavy (na sua vertente proto-heavy, thrash, death, grunge, e também hard rock - embora a definição e os limites deixemos para os puristas) é uma boa ferramenta de aprendizagem filosófica. “Ainda que não nos apercebamos, andamos o dia todo a pensar no bom, no justo, no belo. Não podemos não filosofar, e a música ajuda”, explica por telefone. Carmona, professor de Filosofia num liceu de Ciudad Real, usa a canção Gaia, dos Mägo de Oz, para apresentar aos alunos Lynn Margulis e a sua teoria sobre o peso da cooperação na evolução, e explica o conceito de liberdade utilizando Ama, ama y ensancha el alma, uma canção dos Extremoduro que contém versos como “hay que dejar el camino social alquitranado / prefiero ser un indio que un importante abogado” (do poeta Manolo Chinato).


Num artigo da revista Crawdaddy, William Burroughs escreveu que o rock era uma tentativa de sair deste universo morto e sem alma e devolver magia ao mundo. Se assim é, a sua vertente mais heavy procura uma catarse colectiva através da experiência física. A música tem o poder de transformar e, no caso do heavy, “algumas bandas actuam como uma unidade de ressonância que move o público, que quer ser chamado em busca de contacto e transformação junto com outras pessoas”, segundo Hartmut Rosa. Porque, enquanto o presente e o futuro se dirigem para as abstrações do digital, na cultura heavy o ritual físico é fundamental. Há a viagem, o vestuário, o encontro prévio, a explosão da música ao vivo vivida em comunidade e o seu caloroso reencontro quando voltamos a ouvir essas mesmas canções a sós. “Num concerto combinam-se sentimentos, emoções, cantar um tema com outras pessoas ao mesmo tempo. E há também o disco, em vinil ou em CD, a importância das capas, das letras… Não gosto de listas de reprodução”, ri-se o sociólogo alemão.

Na parafernália heavy metal há luz e trevas, há anjos e demónios, infernos e céus, fadas e monstros - uma encenação alimentada por uma imaginação que joga com certa ironia romântica, que leva as coisas meio a brincar, meio a sério. Mas há uma certeza: seja na Alemanha, em Espanha, na Noruega, no Japão, no Irão, na Argentina ou na Austrália, para a irmandade metaleira a música é fundamental. Segundo um estudo do psicólogo Nico Rose — autor de Hard, heavy & happy, um best-seller na Alemanha -, quase 40% dos 6 mil inquiridos concordaram que o metal os afastou de pensamentos negros, com a sensação de que “lhes tinha salvo a vida pelo menos uma vez”.

O embrião do heavy metal está em Birmingham, um dos epicentros da revolução industrial inglesa (e com uma riquíssima tradição musical nos anos sessenta do século passado). Os seus maiores representantes no início dos anos setenta - Black Sabbath, com Ozzy Osbourne à cabeça, ou Judas Priest - vinham da classe trabalhadora ou eram quase marginalizados. E outros grupos, como Saxon, Iron Maiden, Slayer, Anthrax ou Metallica, também. Talvez por isso as suas canções sejam hinos contra a ordem social, o controlo ou a falta de liberdade, e os seus seguidores constituam uma imensa “comunidade de marginalizados voluntários que encontram nos riffs, nos concertos e na estética do metal uma forma de pertença sem submissão. Ninguém te exige que acredites em nada, apenas que sintas e resistas”, segundo Alayon.

Mas será que essa comunidade aceita todas as pessoas por igual? Há quem considere que o universo heavy é sexista e heteronormativo até ao paroxismo. No entanto, faz mais de 25 anos que Rob Halford, vocalista dos Judas Priest — considerado o Deus do Metal — se assumiu abertamente como gay, e figuras como Girlschool, Thundermother, Doro Pesch ou Arch Enemy desmentem essa uniformidade masculina. Mas ainda há trabalho pela frente. Como reflecte Guzzanti, “hoje, os colectivos feministas reclamam espaços em festivais, fanzines e plataformas online, afirmando que a resistência deve ser interseccional. A sobrevivência do metal depende de abraçar esta inclusividade”.

Nietzsche dizia que a vida sem música é um erro, uma fadiga, um exílio. É preciso continuar a procurar - e talvez não seja má ideia fazê-lo através da crueza metaleira. “É preciso aguentar sem medo a dança sobre a fenda existencial: este parece-me ser o feito do heavy metal”, sentencia Hartmut Rosa. Como cantam os AC/DC, for those about to rock (we salute you): A todos os que vão rockar… saudamos-vos.

EL PAÍS – 30 Nov 2025 – por Mar Padilla

domingo, 30 de novembro de 2025

Às Vezes Vou aos Barcos

 


Porque é que NÃO Se Deve Celebrar o 25 de Novembro (2)

 No ano passado recolhi e partilhei aqui no blog excertos de vários historiadores: Irene Pimentel, Raquel Varela e Pacheco Pereira sobre o 25 de Novembro. Este ano vou deixar aqui alguns excertos de duas excelentes entrevistas no jornal Público a Rodrigo de Sousa Castro, que esteve no 25 de abril e fez parte do Grupo dos Nove ("moderados) no 25 de novembro, mas entrevistou também Manuel Duran Clemente, outro militar de abril, um dos ícones do 25 de Novembro mas ligado à ela da esquerda (PCP). 

E basta ouvir os dois para perceber o ridículo que é, ver agora a extrema-direita que nos governa, e que perdeu em toda a linha no 25 de Novembro a querer agora reescrever a História vendendo um punhado de mentiras. No fundo mostrar, como escreveu a Constança Cunha e Sá no Twitter em 2019 "O 25 de Novembro é o 25 de Abril dos que não gostam do 25 de Abril". 

Informem-se, leiam o que dizem os historiadores, o que diz quem viveu por dentro o 25 de abril, o 11 de março, o 28 de setembro mas também o 25 de novembro. Porque Não se aprende História com memes da internet. Como escreveu Orwell no 1984 "Quem controla o passado controla o futuro. Quem controla o presente controla o passado", e estamos a vivê-lo em direito.

Peçam nas bancas os jornais Público dos dias 23 e 25 de Novembro e leiam na totalidade estas duas entrevistas. Retirem as vossas próprias conclusões. No entanto, o Público que me perdoe, mas aqui deixo os excertos mais importantes:

"Para o coronel Rodrigo de Sousa e Castro, o 25 de Novembro não tem dignidade histórica para se comparar com o 25 de Abril. A intentona de 25 de Novembro de 1975, aliás, não mudou nada – o Pronunciamento de Tancos (que contribuiu para a queda do V Governo Provisório, de Vasco Gonçalves, e alterou a composição do Conselho de Revolução), em Setembro, sim.

Por outro lado, sem o golpe spinolista de 11 de Março de 1975, “não teria havido PREC”. Em termos militares, os moderados eram muito mais fortes do que os extremistas de esquerda, por isso, nunca teria havido uma guerra civil no 25 de Novembro, diz o antigo porta-voz do Conselho da Revolução. O Documento dos Nove, fundador do suposto golpe de direita, era, afinal, “um programa de esquerda”. E a direita e a extrema-direita, que tentaram fazer valer as suas causas no 25 de Novembro, perderam em toda a linha. Por isso, diz o coronel, não faz sentido que queiram agora comemorar o 25 de Novembro. Logo eles, que não conseguiram cumprir nenhum objectivo (...)

Reconhece que a esquerda se apoderou da data do 25 de Abril?

Sim, reconheço. A partir de certa altura, a grande pergunta era: quem tem a legitimidade revolucionária? E o PCP apoderou-se disso. O PCP achou que tinha a legitimidade revolucionária para impor soluções, para impor medidas, para impor um percurso. Mas fez isso, em parte, porque os outros deixaram.

Os outros partidos?

Veja o PS, por exemplo. Ao contrário do PSD, que nasce depois do 25 de Abril, o PS já existe antes. E é um partido com um certo ambiente anticlerical, mas também antimilitar. Com a excepção de alguns dos seus membros, o PS nunca viu com bons olhos que tivesse sido meia dúzia de militares (ou uma dúzia, ou 300) a derrubar a ditadura. O PS nunca morreu de amores pelos capitães de Abril (...)

Na sua opinião, isso aconteceu devido à aversão do PS aos militares e ao MFA?

“Quem é que vos mandou fazer a revolução?” No fundo, era isto que eles pensavam. Não se esqueça de que o PS estava disposto a colaborar com o ditador Marcelo Caetano num projecto de transição para a democracia. Aliás, a maneira como o regime tratou o Mário Soares, enquanto preso político, foi completamente diferente daquela como tratou os tipos do PCP. O projecto não avançou porque o Marcelo [Caetano] não teve rasgo. Era um homem muito culto, mas, politicamente, estava reduzido à perspectiva da extrema-direita.

Mas que projecto era esse, que envolveria o PS? Uma espécie de transição pacífica como aconteceria em Espanha?

Em 1968, quando o Marcelo foi nomeado, houve uma lufada, não propriamente de ar fresco, mas de esperança. Acreditou-se que ele ia abrir o regime. Nos quartéis, nós também falávamos, principalmente nas salas de oficiais. A geração que viria a fazer o 25 de Abril, seis anos depois, era constituída, na altura, por tenentes. Eles é que davam instrução aos quadros milicianos que iam integrar o Exército em Angola. E naquela altura, recordo-me bem, na Escola Prática em Vendas Novas – e certamente também nas outras, porque todos vínhamos da mesma fornada –, tínhamos passado pela Academia e ido à guerra, e pensávamos todos da mesma maneira... Nessa altura, se o Marcelo tivesse estalado os dedos, os tenentes iam atrás dele, derrubavam o regime e aceitavam-no como primeiro-ministro. Em vez de andarem em conspirações, teriam preferido isto, não tenho dúvidas nenhumas.

Mas o Marcelo não podia ter essa visão, naquela época e naquela fase do regime.

Não era só isso. Eu acho que ele era mesmo medroso. E, depois, foi à África apanhar banhos de multidão. Só quem não foi à África não sabe como aquilo funciona. Arranjar um banho de multidão era fácil. Aliás, as pessoas se não iam a bem, iam a mal.

(...)

É essa captação do 25 de Abril pela esquerda que explica a vontade da direita de celebrar o 25 de Novembro?

A questão é saber se o acontecimento tem dignidade histórica para ser comparável ao 25 de Abril. Essa discussão tem uma resposta simples e rápida: não tem. A 25 de Abril, os militares — porque foram os militares (ironicamente, um dos sustentáculos do regime) a fazer a revolução, num país onde não havia forças políticas ou sociais capazes de o fazer — derrubam a ditadura, acabam com a guerra e com o isolamento internacional do país. O 25 de Abril abre uma nova era, reconstrói a história de Portugal.

Os acontecimentos do 25 de Novembro são sequelas do 25 de Abril, sem o qual nunca existiriam. Logo aí, a hierarquia de importância está definida.

Portanto, há um acontecimento relevante e, depois, há acontecimentos subsequentes, como o 28 de Setembro, o 11 de Março e o 25 de Novembro.

O 25 de Novembro não tem mais importância do que os outros dois?

O 28 de Setembro de 1974 é um episódio extremamente importante do ponto de vista político, porque há, inclusivamente, a detenção do Presidente da República e a sua substituição.

O 11 de Março diferencia-se do 25 de Novembro, antes de mais, porque é um golpe executado pela direita militar, os militares ligados ao general Spínola. E que tem consequências, pelo menos, tão importantes como o 25 de Novembro.

Era normal que nos meses subsequentes à revolução tivéssemos um processo agitado, em termos sociais, políticos, económicos. No início de 1975, estávamos num processo de estabilização da democracia, tínhamos um governo provisório em funções. Até essa altura, o primeiro-ministro, Vasco Gonçalves, não se tinha revelado um homem muito radical…

É o golpe de 11 de Março que radicaliza Vasco Gonçalves?

Há uma viragem brusca. Nós estávamos a caminhar para garantir uma Constituição, eleições livres, que eram a principal reivindicação dos capitães de Abril. Havia até um plano económico-social à beira de ser aprovado, elaborado por economistas moderados da área social-democrata, que ficou conhecido por “Plano Melo Antunes”. Era um plano abrangente, que preconizava uma certa intervenção do Estado na economia, mas não as nacionalizações.

E então o Spínola, juntamente com a ala direitista e com os seus mosqueteiros”, que tinha trazido da Guiné, tenta o golpe, que fracassa. E foi nessa altura que as forças mais radicais de esquerda, que eram o Partido Comunista e os vários partidos de extrema-esquerda, empurraram o país para a esquerda.

Fazendo um exercício de História contrafactual: não teria havido PREC se não tivesse ocorrido o 11 de Março?

De certeza absoluta. Teríamos tido um percurso muito melhor. E teríamos tido uma coisa que é muito importante: tempo. Se não tivesse havido esta aventura do Spínola, é justo pensar-se que teria havido uma transição para uma democracia avançada, no sentido social. Teríamos tido uma social-democracia a sério.

Teríamos tido tempo para organizar uma sociedade que estava órfã de tudo. Porque a autoridade tinha sido posta em causa. A autoridade da polícia tinha de ser reposta, o Exército tinha de se recompor em termos de disciplina e hierarquia, que não são contra-revolucionárias, são da própria natureza do Exército.

Portanto, do meu ponto de vista, o PREC é o resultado directo da acção de Spínola e da extrema-direita a 11 de Março. A partir daí, a radicalização foi enorme, iniciou-se um caminho aventureiro para o socialismo(...)



Mas era nítida a distinção entre as várias forças?
A determinada altura começam a verificar-se três linhas muito claras. Havia uma esquerda radical, mas que seria integrada no sistema político, que era o Partido Comunista. Depois, havia a esquerda dita revolucionária, a que não chamo folclórica, porque era muito perigosa, com capacidade de organização militar, mas que não era homogénea. E, por fim, o grupo dos moderados, que daria origem ao Grupo dos Nove, que começaram a perceber que as Forças Armadas, principalmente o Exército, estavam num processo de desagregação a que era preciso pôr cobro.

Mas a partir da eleição da Constituinte [25 de Abril de 1975] dá-se um fenómeno que iria marcar a vida política de muitas organizações, a partir daí.

É que havia a expectativa, da parte das esquerdas radicais, de ter uma votação que lhes permitiria não só influenciar a Constituição, mas também reivindicar a legitimidade revolucionária. Ora, isso não aconteceu.

Quem ganhou as eleições, com bastante vantagem, foi o PS, que era um partido social-democrata. E essa linha contava com o apoio da maioria dos quadros militares. Tivemos a prova disso quando o Grupo dos Nove, de que eu fazia parte, apresentou um documento intitulado Documento dos Nove, redigido por Ernesto Melo Antunes, que levámos à votação nos quartéis. E as respostas foram esmagadoras a favor do Documento dos Nove.

Essa aprovação do conteúdo do documento deu-vos a legitimidade de que precisavam?

A importância do documento não é o seu conteúdo. Aí é que está a grande questão. Se lermos o documento, e eu tenho-o praticamente na cabeça, ele não aponta uma via que hoje fosse sustentável do ponto de vista político.

Então o documento que dá origem ao famoso “golpe da direita” é um documento de esquerda?

Exatamente. Mas mesmo de esquerda, uma esquerda que já nem se vê por aí. Embora contivesse aquele princípio de respeito pela liberdade e a democracia. Mas era um documento de esquerda. Rejeitava a social-democracia como era praticada na Europa Ocidental, defendia o socialismo e uma sociedade sem classes e sem exploração.

Mas qual foi a virtude do documento? A imagem que posso dar é a de um indivíduo que se está a afogar e lhe surge de repente uma tábua de salvação. Isto é, havia sectores sociais e políticos em Portugal que precisavam de uma resposta, porque estavam a sentir-se asfixiados. E esta expressão não é demasiado forte. É verdadeira. As pessoas sentiam-se asfixiadas pela propaganda da esquerda radical e os movimentos muito agressivos de extrema-esquerda.

Os Nove surgem como uma alternativa.

Sim. E começam a dividir-se as águas. E à medida que se vão dividindo, o antagonismo aumenta. De uma forma muito agressiva, porque se vivia um ambiente de liberdade total. Isso também tem de ser dito: não havia nenhum cerceamento à liberdade de expressão.

(...)

Os receios de uma guerra civil eram então infundados?
Havia o perigo de ocorrerem pequenas confrontações. Embora os líderes dos partidos moderados tenham ido todos para o Norte, políticos, alguns deputados. Dizem que o Mário Soares até só parou na Galiza.

Dizia-se que podia haver uma guerra civil. Mas se olharmos para o potencial no terreno, é óbvio que nós tínhamos a força toda. O que não tínhamos? Os pára-quedistas, que se haviam insubordinado, mas que parece que nem tinham um objectivo político definido, quando ocuparam as bases. O RALIS, comandado pelo Dinis de Almeida que, no seu entusiasmo, achava que a artilharia que tinha lá no quartel neutralizava as forças que fosse preciso…



Mas não uma guerra civil.

Não, não estivemos à beira da guerra civil. Se calhar a direita tem pena que isso não tivesse acontecido, para justificar as suas perdas.

Mas se a verdadeira mudança se deu em Setembro, com o Pronunciamento de Tancos, qual foi a importância do 25 de Novembro?

Deixou de haver a confrontação entre os militares mais radicais e os mais moderados, com estes a vencerem em toda a linha. Mas não houve grandes mudanças políticas. O VI Governo Provisório, de Pinheiro de Azevedo, que estava em funções, continuou. Nem sequer mudou de número, continuou a ser o VI. O Presidente [da República] também não mudou. As pessoas pensam que houve uma grande revolução. Não houve nada.

(...)

E que papel teve a extrema-direita no processo do 25 de Novembro? Ajudaram, colaboraram, tiveram alguma vitória?

Eles estavam debaixo da mesa. É certo que fizeram uma campanha contra os partidos da esquerda.

Não tiveram uma participação activa no golpe?

Não, porque o que eles faziam caía na esfera criminal. As acções deles eram crimes, ainda que na altura não houvesse força para os impedir.

Alguns tentaram que o 25 de Novembro desse origem a um regime através do qual se poderia travar a independência de Angola.

Sim, cada um teria o seu projecto. Mas o seu desejo mais óbvio era ilegalizar o Partido Comunista.

Também nisso é evidente que perderam. Mas não conseguiram nenhuma das suas reivindicações?

O irónico é que as pessoas que querem agora comemorar o 25 de Novembro são as que perderam, porque nenhum dos seus objectivos foi cumprido.

Mas esse mito de que o colonizador português era diferente dos outros, mais benigno, não-racista, não impede a actual extrema-direita de produzir um discurso de ódio contra os imigrantes. E ser seguida por um milhão e meio de pessoas. Para um capitão de Abril isto não é chocante? O que falhou?

É chocante e dramático. Há um claudicar de princípios morais. O problema é que, no dia 26 de Abril de 1974, havia 10 milhões de democratas. Ninguém era salazarista. Ou não podia dizer que era. Mas ficou aquilo a que, em cada um, podemos chamar subconsciente fascista. E, na colectividade, subconsciente autoritário (...)

Que tem a ver o subconsciente colectivo fascista com este frenesim de festejar o 25 de Novembro?

Na altura, tivemos de lidar com o CDS, que era o partido legal mais à direita. Mas o CDS tinha gente civilizada e culta na sua liderança. Está a ver o Freitas do Amaral, o Adelino Amaro da Costa ou o Francisco Lucas Pires a reescreverem a História de Portugal? Está a vê-los a dizer: não, o 25 de Abril não foi uma revolução, a revolução foi o 25 de Novembro? Não estou a vê-los.

Que tem a ver o subconsciente colectivo fascista com este frenesim de festejar o 25 de Novembro?

Na altura, tivemos de lidar com o CDS, que era o partido legal mais à direita. Mas o CDS tinha gente civilizada e culta na sua liderança. Está a ver o Freitas do Amaral, o Adelino Amaro da Costa ou o Francisco Lucas Pires a reescreverem a História de Portugal? Está a vê-los a dizer: não, o 25 de Abril não foi uma revolução, a revolução foi o 25 de Novembro? Não estou a vê-los.

A entrevista pode ser lida na íntegra aqui


Fala do 25 de Novembro como uma traição. Quem traiu quem?
Para mim, e não só, o 25 de Novembro, na maneira em como ele tem sido interpretado e foi interpretado, é uma traição do 25 de Abril, na medida em que interrompeu o percurso natural de uma revolução que nunca é um percurso natural. Não por é por acaso que se chama revolução. Revolução é uma transformação e uma transformação não é uma reforma. É um facto transformador que acaba com coisas e recomeça com as que pode recomeçar. Podíamos recomeçar um novo ciclo do país, que acho que ninguém tem dúvidas de que foi um dos momentos históricos mais importantes da vida.

Diz que o golpe foi uma intentona da direita, ajudada pela CIA, para travar o PREC (Processo Revolucionário em Curso] e o espírito da revolução. Mas quem começa o golpe foram militares radicalizados e, por esses dias, havia gente do PCP com armas na mão. Não foi mais uma tentativa de golpe da extrema-esquerda militar do que uma intentona da direita?

Como é que é possível dizer que havia gente de esquerda e próxima do PCP com armas? Quem?

Não havia? Há várias memórias que o atestam.

Em vésperas do 25 de Novembro? Em vésperas, muito menos. Aliás, toda a história, todaa fantasia de uma guerra civil tem seu o quê de exagero e serviu para assustar as pessoas e foram fomentadas pelo clero reaccionário. Que cidadãos andaram de armas na mão antes do 25 de Novembro? Quem andou de armas na mão foi a extrema-direita. O ELP (Exército de Libertação de Portugal), o MDLP (Movimento Democrático de Libertação de Portugal) e até gente importante, gente da hierarquia do clero, como padres, como bispos “melos” [referência ao cónego Eduardo Melo, da diocese de Braga], que até mataram. Eu pergunto a quem põe e propaga a ideia de que andavam comunistas com armas na mão: quem é que nós matámos?

“Esta farsa do 25 de Novembro é das coisas mais inacreditáveis da História de Portugal”
Mas como podemos dizer que o 25 de Novembro é uma intentona da direita?
Porque é preparada pela direita, pelos que estão desanimados, pelos medrosos...

Foi uma armadilha?
Claro que foi uma armadilha, uma chantagem. Mas quem evita a guerra civil, que esteve muito longe de acontecer, somos nós. Não é mais ninguém. Os que são atingidos, que são, a maior parte deles, despedidos da sua profissão, não são reconhecidos como quem evitou a guerra civil.

Nas suas memórias, mostra simpatia pela iniciativa dos revoltosos. Não o incomodava que esse movimento tivesse sido feito à revelia das hierarquias militares e políticas?

O momento em que hoje se vive não é o momento em que se vivia antes de Abril, durante o PREC. Muitos jovens não percebem que estávamos num momento especial de uma revolução que foi pacífica. O maior erro que houve entre os militares é que, havendo três, quatro ou cinco facções entre nós – moderados, gonçalvistas, otelistas, spinolistas e saudosistas, que é uma quinta facção de que ninguém fala –, se todos fôssemos efectivamente democratas, tínhamos conversado. Se fosse democrata, o general Morais e Silva [que tinha decidido passar para a reserva os pára-quedistas revoltosos de Tancos] não tinha feito o que fez, que foi provocar... Mas essa provocação está para se saber se foi feita de propósito para quem estava a fazer um golpe na retaguarda. Com isto não quero dizer que o Vasco Lourenço, o Grupo dos Nove, onde há muita gente que estimo, incluindo a ele, não pudessem ter razão. Mas se tinham razão, podíamos ter conversado e eles podiam ter dito ao Morais e Silva que não era a altura de fazer o que fez com os pára-quedistas. Portanto, a dúvida que eu tenho, não é muito dúvida, é quase certeza, é que foi de propósito. Foi uma forma de fazer com que houvesse um golpe. Portanto, isto é extremamente complexo. Esta farsa de Novembro é das coisas mais inacreditáveis da História de Portugal. Eu não sabia, nem nenhum de nós sabia, o que ia acontecer.

Mas, de qualquer forma, o senhor autorizou a divulgação do comunicado dos pára-quedistas...
Não só autorizei, como a promovi em consciência. Hoje é muito difícil as pessoas, os jovens, perceberem o que é um contexto revolucionário, a que chamam PREC com carga pejorativa. O período do PREC é dos 515 dias portugueses mais interessantes da História portuguesa. Não andava tudo à tareia, não andava tudo ao tiro. E quem andava ao tiro nunca foi julgado nem despedido, como muitos de nós. Mas há quem tenha a grã-cruz e fez muito menos pelo 25 de Abril do que eu.

Quando recebe uma delegação dos comandos que tentavam anular a revolta dos pára-quedistas, alerta-os para a existência de um forte dispositivo armado na RTP, que incluía bazucas anticarro colocadas nos telhados. Estava preparado para resistir militarmente aos comandos?
Não, não era por parte dos comandos. Era por uma parte que eu não sabia se era contra a Revolução de Abril. Se um homem que andou a lutar por Abril durante tantos anos vê a possibilidade de ser atacado, não deve prevenir-se? Foi o que eu disse ao capitão dos comandos mandado por Jaime Neves. Sim. O herói Jaime Neves. A organização militar tem formas de actuar. E uma das formas de actuar é dar autorização ou capacidade às companhias de fazerem o que entenderem. E elas foram para a rua, e instalaram-se para a defesa da televisão.

Durante essas horas, ficou dono e senhor da estação pública da televisão.
Não, não fiquei. Ficaram os trabalhadores. Disse aos trabalhadores: “Quem está com a defesa de Abril fica, quem não está pode ir embora”. Os que ficaram acabaram também por ser despedidos ou tiveram processos disciplinares. Mais de 100 pessoas, funcionários civis, que foram despedidos e maltratados por causa da acusação falsa sobre o 25 de Novembro.

O que sentiu quando se deu conta de que pararam a emissão na RTP?
Já sabia que ia parar porque nós tínhamos funcionários da televisão na antena que era nossa. E esses funcionários avisaram-me através de adjuntos meus: “Diz ao capitão que eu ando a fugir com a cavilha”. A antena só emitia da Lousã para baixo, porque no Porto já estavam a ver o Danny Kaye…

Alguma vez viu esse filme?

Tenho visto várias vezes e até gostava de ver o Danny Kaye antes dessa cena. Não tenho nada contra o Danny Kaye. O que acho é que é simbólico ver que se passa da revolução para a comédia que existe até hoje. Desde o 25 de Novembro, temos assistido a uma comédia de democracia. É a minha opinião. Mas defendo-a. Em tribunal se for preciso.

Porque é que se decidiu não ir a Belém na manhã do dia 26, depois de ter sabido que tinha sido convocado pela Presidência?

Porque fui avisado pelos comandos de que seria morto. Eu, o Varela Gomes e o Costa Martins. Sabe que é muito fácil: ia a fugir, pum!

Em Janeiro de 1976, parte para o exílio e regressa em Setembro. Como é que se sentiu tratado pelo regime quando chegou?
Mal e ilegalmente. Nunca fui julgado, fui despedido sem ser julgado. A primeira vez que fui ouvido, mandaram-me para casa, porque achavam que não havia nenhuma acusação consistente. O juiz do Ministério da Defesa que me ouviu, tinha 40 acusações, todas elas não valiam um caracol, disse-me: “Não vejo aqui nenhuma razão para ser preso”. Quando isto passou, foi tudo considerado ilegal e, 27 anos depois, a reconstituição da carreira foi-nos dada.

Esta entrevista pode ser lida (ou ouvida) aqui.