Todos os fazemos mas não deveríamos. Rostos, formas de vestir, tons de pele. Todos, uns mais do que outros julgamos aparências. Se calhar também julgamos os livros pela capa. E não deveríamos.
"Angola! Angola! Testemunho sobre o problema colonial" é um livro de bolso que quem olha não dá cinco mil réis. Mas à medida que começamos a ler percebemos o porquê dos alfarrabistas o venderem a vinte ou vinte e cinco euros.
Depois de ter ficado horrorizado com o livro Crimes de Guerra no Vietname vá lá saber porquê, e quando me preparava para ler o "Cem anos de solidão", eis que outro livro me salta para as mãos vindo da estante.
Neste livro de José Pires ficamos a perceber todo o racismo estrutural da sociedade portuguesa. Mais importante ainda, percebemos o porquê de, ainda hoje e passados cinquenta anos da guerra colonial, ainda hoje o tema parece que é tabu. E se nos horrorizamos com guerras passadas e presentes, percebemos que somos todos iguais. Não há guerras meiguinhas.
"A violência existe em qualquer guerra. Na guerra de guerrilhas, devido ao seu carácter de guerra intermitente (quer dizer ora se luta, ora se vive em tensão sempre à espera de ataques), a violência torna-se mais prolongada, mais brutal e mais odiosa.
Muito antes de eu pisar o solo de Angola ouvira algumas descrições massacres feitas por meu pai que regressara havia pouco. Contava que para aterrorizar os negros faziam uma escolha entre os que trabalhavam ali, colocavam-nos em fila junto às valas abertas pelos "bulldozers", matavam-nos com rajadas de metralhadoras e a seguir enterravam-nos uns vivos outros mortos, com a ajuda dos mesmos "bulldozers". Estas razias periódicas faziam com que todos os outros tivessem medo e não ousassem sequer levantar os olhos contra os capatazes e outros brancos que ali se encontravam. "É que, dizia o meu pai, não tínhamos confiança em preto nenhum". Para mim a história da guerra colonial começou aí. Fiquei a saber que a guerra em Angola era uma longa história de massacres, muito semelhante a um genocídio.
Não conheço caso nenhum em que fosse patente o mínimo de respeito devido a um prisioneiro. Quando aparecia um prisioneiro, o pessoal comentava: "Já sabe o destino que leva". Isto queria dizer que depois de lhe tirarem as informações consideradas úteis seria morto.
(...)
Quando isto aconteceu lembrei-me dos relatos que ouvi acerca dos dois primeiros anos de guerra. Apanhavam os negros que suspeitavam, mmetiam-nos no avião Nord Atlas dizendo que iam prestar declarações a Luanda; chegados ao mar alto abriam as portas e os prisioneiros eram todos lançados ao mar. Alguns corpos davam à costa mas o caso era abafado e ninguém sabia de mais nada.
(...)
Mesmo sem guerra, a guerra tornou-se para mim real, tão real que mesmo sem ela existir eu a detestava em todas as suas manifestações. Já em Portugal muitos rapazes estavam marcados por esses atos de violência pois também eles tinham passado por estes sítios e em altura de destruição mais acesa.
O Jaime acompanhou-me, à saída do instituto, quando lá dentro eu lhe tinha dito que estava mobilizado para Angola. Queria contar-me a sua história (...)
"Vou contar-te uma história que nunca contei a ninguém, nem à minha mulher. Chegámos a uma aldeia onde a população tinha fugido para o mato: havia cabritos, porcos e galinhas à solta, que abatemos a tiro. Mais à frente uma velhota sozinha aquecia uma panela de água para fazer o pirão, o alimento dos pretos. Os soldados quiseram logo matá-la com um tiro; não, disse eu, não vale a pena estragar uma bala. Aproximei-me e despejei-lhe a panela a ferver pela cabeça abaixo. Morreu assim, queimada. Ainda hoje sinto isto; não imagino como fui capaz de fazê-lo!!".
(...)
A instrução que lhes fora ministrada preparava-os para isto. Não é pois para admirar que um soldado comando tenha declarado no hospital que eles têm que matar nem que seja para treinar; para isso chegaram a atirar crianças ao ar e atravessá-las com as baionetas das espingardas. Segundo o alferes comando que prestou serviço três anos após o início da guerrilha no Norte de Angola, aquela tropa especial era preparada por um mercenário italiano que pertencera à legião estrangeira durante a guerra da Argélia.
Para embrutecer aqueles soldados este nazi sujeitava-os a um exercício absolutamente indigno da natureza humana. Consistia em meter uma velha dentro de um bidão, ensopá-la de gasolina e atear o fogo por meio de um tiro com bala incendiária; quem hesitasse em disparar a bala incendiária não poderia ser verdadeiro comando.
Em Mussengue um cabo comando ficara espantado quando em plena batalha, num terreno de areia e pequenos arbustos, e no meio do tiroteio, uma velha ressequida se ergueu e gritou: Viva o M.P.L.A. Foi imediatamente varada por uma rajada de de metralhadora ; e aquela voz calou-se para sempre. Este cabo confessou-me que ficara impressionado com tanta coragem.
A besta humana tinha para mim muito de incompreensível. Verifiquei que os assassinos mais degradados têm sempre uma grande estima por animais, sobretudo por cães; já Hitler tinha o seu cão de estimação! Entre os soldados havia igualmente este interesse pelos cães. Certa vez tornou-se necessário matar um cão que andava a espumar e rosnava às pessoas; com medo de que aquilo fosse raiva quis abatê-lo. Não imaginam o sussurro de pedidos que se levantaram para que poupasse o pobre animal. E não matei o bicho. À tarde chegou ao quartel um grupo do GES que apanhara dois zambianos, junto à fronteira, os quais caçavam em território angolano. Um deles tentara fugir e levara um tiro mesmo em plena face; o queixal inferior ficou solto e no buraco aberto pela bala quase cabia um punho. A carne assim destruída começava a gangrenar e a cheirar mal. Os soldados juntaram-se à volta do gerido, e às gargalhadas, diziam: "Olha como o tipo está; estás lindo, estás!" Aquilo revoltou-me: onde se encontraria a humanidade destes homens do povo, tão explorados na sua terra como os moços negros aqui? Por vezes encontrava-a e fazia tudo para avivá-la pois sabia que fora o sistema militar que desumanizara estes homens.
Angola! Angola! Testemunho sobre o problema colonial - José Pires (1975) (escrito antes do 25 de Abril de 74)
Sem comentários:
Enviar um comentário