terça-feira, 1 de março de 2022

A Televisão Matou o Entrudo

Toda a gente está de acordo que o Entrudo já não é o que era. Ou dito de outra maneira, já deu o tinha a dar enquanto tradição comunitariamente assumida como ritual. Nos tempos anteriores à televisão e ao cartão de crédito, pela Quaresma, os homens não podiam dormir com as mulheres. Era pecado. Tal como comer carne, doçarias e outros aconchegos (apenas coisas boas, é evidente). Até às Cinzas era, por ta motivo, um tirar a barriga de misérias para compensação dos quarenta dias seguintes em que reinaram mortificações, lutos, jejuns e abstinências. Só terminando no Domingo de Páscoa. 

Em certos lugares até dividiam os preparativos das folias pelos domingos da conta, magro e gordo. No domingo da conta começavam a despertar para o Entrudo. Arranjavam máscaras e trajes que apareciam nas ruas no domingo magro, quando iniciavam as reinações. Mas o entusiasmo culminava no domingo gordo e na Terça-Feira de Entrudo, em que, podemos dizê-lo valia tudo: enfarinhar quem passava ou enfarruscá-lo com pó de carvão, atirar ovos podres, laranjas, jarros de água, torrões de erva e outros projéteis mais repelentes (por exemplo, líquidos nauseabundos, como urina ou água choca, ou sólidos da mesma origem. E, quando o Entrudo acidadou, atiravam éter aos olhos dos passantes, com grandes bisnagas apropriadas!) Afinal, entrudo que se prezasse era badalhoquismo, glutão e violento - ou não servia para nada.

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Estes Entrudos desbragados e sujos foram - já estão a ver - censurados e proibidíssimos. Mais ou menos como dizer às pessoas: ficais impedidos de enxotar os vossos fantasmas e temores. Passou então a carnavalar-se burguês e cosmopolitamente em bailes de máscaras, atirando serpentinas e confetis e tocando cornetinhas mansas e melancólicas. E, se querem que lhes diga, é melhor assim para não vivermos na ilusão de que o Entrudo - das emoções, do pulsar profundo, dos temores e ódios - de que o Entrudo verdadeiro é possível na era dos satélites.

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Por detrás das antiguíssimas máscaras, folias, barulhos, festejos e comezainas e dos bailes, serpentinas, confetis e outros ritos de novo tipo, escondem-se mil e um actos, de significações encobertas, desconhecidas ou esquecidas por quem as pratica: eliminar o antigo, matar o passado, rejeitar o que - na aparência - pode impedir a renovação vital. Assim, como poderia o Entrudo viver a sua mais autêntica função, numa sociedade em que as magias se tornaram interativas? E como poderia ser real - ao menos para o homem citadino, que da Natureza já só tem a ideia que lhe chega pelo vídeo -, quando até os grandes e velhos símbolos, a lua, as estrelas o céu, o mar, a terra, as trevas e a luz, conjurados e esconjurados sem cessar, ao longo dos séculos, já não são vistos com os mesmos olhos?

Perdidas as ilusões de que ainda mantemos com a realidade alguma relação de simpatia, o melhor é proclamarmos, de uma vez por todas, a morte do Entrudo e seus rituais. Perdida a relação inocente com o fantástico e inimaginável (torrnou-se tão corriqueira e banal que quase nos roubou as utupias), resta-nos afivelar a máscara da auto-suficiência computorizada e escondermo-nos na solidão disfarçada de Carnaval. (Ai estes Entrudos já não são o que eram!) No entanto, no fundo, bem no fundo, todos sentimos que é urgente fazer qualquer coisa para os reinventar. E, se me perguntarem porquê, direi: porque sim. Se mais não fora, porque - avisa poeta Salvador Quasimodo:

Cada um de nós está no coração da terra,

atravessado por um raio de sol.

E subitamente é noite

 

"Vistas do Meu Quinteiro" / Hélder Pacheco (1995)

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