quinta-feira, 13 de novembro de 2014

Os amigos-sósia

"Não vejo a amizade como algo que implica o ombro a ombro sistemático. Passo meses sem falar com o meu melhor compincha, quando acontece ambos nos penitenciamos. Sobretudo agora!, sendo médicos temos acesso a tudo o que é má notícia - "soubeste do fulano"? - e os anos tendem a empurrar as surpresas para a face triste da moeda. Por isso de imediato surgem juras de encontro imediato, conversa longa e despautério alimentar. Nesses longos intervalos deixamos recados no telemóvel um do outro a pretexto de ninharias e esprememos os respetivos herdeiros que, risonhos e escandalosamente crescidos, em nós tropeçam durante uma caminhada soalheira junto ao mar - "diz ao malandro do teu pai para me telefonar".

Este aparente desapego não traduz menor exigência. A profissão ensimou-me que somos bem menos complacentes para com os amigos do peito do que para os amantes. A paixão amorosa é muito violenta, mas pedi-mo-lhe o céu na terra e não solidariedade à flor do chão. Os apaixonados estão prontos a fugir do mundo ou a bater-se contra ele, os amigos são capazes de o transformar, armados de sólida intimidade entre pessoas reais, a abarrotar de defeitos graves e virtudes frágeis. O amante devolve-nos a imagem do que somos nos seus olhos, por definição enganados e mentirosos, "quem feio ama..."; o amigo é uma mistura de espelho, cruel de tão límpido, grilo falante impiedoso, e cúmplice até à morte.



No consultório, quando rebusco a vida social de um cliente, ouço muitas vezes quem tem "montes de amigos". Ao pedido de precisão - "amigos ou conhecidos?" - a resposta costuma vir, sorridente, depois de curta reflexão "amigos, amigos, poucos, os outros são conhecidos". Porque a amizade é exigente, seria exaustivo praticá-la a torto e a direito, mesmo admitindo que muita gente a merecia. Curiosamente, alguns só consideram amigos os da infância, o tempo que passou sem trazer a ferrugem da relação e a nostalgia de uma idade do ouro sem rasteiras de adultos conferem a duas ou três pessoas o direito de serem consideradas acima de qualquer suspeita.

Sou menos dogmático, acho que surpresas tristes podem surgir de qualquer lado. Algumas pessoas, por exemplo, necessitam da carne e do osso para alimentarem a amizade, a separação não lhes mata o carinho na cabeça, mas faz morrer os pequenos gestos ternurentos que o impedem de se tornar apenas uma recordação. No meu caso, os anos foram limando o orgulho estúpido que cala o protesto, não tenho dúvida em rosnar contra tal desleixo. Porque é disso que se trata - de um desleixo, sempre à mão na prateleira dos assuntos não prioritários. E perante o rotundo fracasso dos avisos, eu e muitos de vocês arranjamos desculpas esfarrapadas, porque nos custa admitir o abandono e a necessidade de pôr tudo em pratos limpos.

Um dia fala-se com alguém ao telefone e o desleixado percebe que somos nós, rouba o aparelho a quem ligou , "quando é que podemos conversar"? O espanto do lado de cá, "aconteceu alguma coisa"? A voz dele soa ofendida "não posso ter saudades de falar contigo?" Claro que pode! Combina-se dia e hora sem grande esperança, quem faz do atraso ponto de honra não muda. Com efeito. Torço planos feitos e espero, vale a pena. Ao fim de cinco minutos a surpresa ( ou não?) - a fúria de me ver traduz uma "saudade instrumental", sou necessário para resolver dificuldades surgidas em planos que me são alheios. O diálogo continua, plácido e urbano, até à despedida, mais correta do que calorosa. Por que não disse umas verdades? Por já não valer a pena? Ainda na esperança de rever a magia passada?

Se já vos aconteceu, sabem por que foi - tratou-se de uma derradeira homenagem. Aquele homem é um perfeito sósia do amigo muito amado. Que finalmente admito ter morrido sem ser cadáver. Promoverei este a conhecido, sem ressentimentos ou expectativas. Poderemos sempre discutir futebol."

Do livro  Estes Difíceis Amores  de Júlio Machado Vaz

Sem comentários:

Enviar um comentário