sábado, 13 de abril de 2024

A Imparável Extinção dos Passatempos

"Na era do culto à produtividade e à otimização, há algo pior do que não fazer nada, e é fazê-lo sem um propósito económico, terapêutico ou produtivo. Fazer qualquer coisa puramente por prazer, sem método ou plano, parece ser o maior dos pecados. Aqueles que ainda mantêm um passatempo não remunerado e não têm intenção de o fazer são a resistência.


Começa a última temporada de The Crown e Clara S. [que prefere não ser identificada], de 37 anos, entra em modo turbo. Concentra-se. Dobra a velocidade de reprodução da série. Abre uma folha de cálculo no computador e a sua conta do X (antes Twitter) no telefone. No primeiro ecrã, sucedem-se as idas e vindas da nobreza britânica e nas outras duas multiplicam-se as notas, os dados, as somatórias. Clara é realmente rápida no que faz e consegue ser a primeira a encontrar falhas no guião; a separar o trigo do joio, a realidade da ficção. Ninguém o faz melhor do que ela. As suas notas irão aumentar a sua marca pessoal como especialista na realeza britânica e alimentar o guião de vários podcasts especializados em famílias reais. Ela sente-se sortuda, transformou o seu hobby num trabalho. Também escreve artigos em várias revistas e está a terminar um livro. Algum dia poderá viver disso, ela especula, mas por enquanto a sua hiperatividade apenas representa um modesto rendimento extra. Quando aparecem os créditos finais, fecha o computador abruptamente. Suspira. Está exausta

Ver uma série de televisão no dobro da velocidade, twittar e preencher uma folha de cálculo é lazer ou negócio? Quando é que um hobby deixa de ser um hobby? A Autoridade Tributária é clara a este respeito: se tiveres que declarar no IRS já não é um passatempo. É realmente uma sorte transformar o que fazemos por puro prazer numa fonte de rendimento?

Por definição, um passatempo é algo que se faz por prazer, sem prazos de entrega e sem pressão para fazê-lo bem, mas na última década as expectativas parecem estar a mudar. Somos incentivados a otimizar a nossa vida, cada minuto deve ser produtivo, e o lazer, para alguns, é quase uma perda de tempo. Plataformas como Etsy ou Instagram prometem que qualquer passatempo pode tornar-se num trabalho mais ou menos lucrativo que complemente os rendimentos cada vez mais precários do nosso emprego principal. Chama-se "economia de biscate" (gig economy). 

Segundo os dados do Banco Mundial, existem 435 milhões de pessoas em todo o mundo que fazem vários biscates para sustentar os seus rendimentos. Os trabalhadores temporários — como são chamados — aumentaram 170% entre 2019 e 2021. Aqui entram aqueles que trabalham algumas horas na Uber, aqueles que exibem partes do seu corpo no Onlyfans ou aqueles que rentabilizam os seus passatempos para ganhar algum dinheiro com um hobby que costumava ser improdutivo, ou até mesmo dispendioso (embora na maioria dos casos não melhore substancialmente a sua situação económica).

Calcula-se que mais de metade são millennials e da geração Z, os principais atores da precarização do trabalho e de uma cultura que glorifica estar sempre ocupado (cultura do esforço ("hustle") na denominação académica anglo-saxónica) numa corrida em que apenas importa o produto final: a suposta melhor versão de si mesmo

No contexto atual, o tempo livre e os passatempos são materiais para otimização: a vida social torna-se networking; ler transforma-se num turbilhão de post-its e sublinhados que impedem de desfrutar da história; bordar, numa terapia; cozinhar, num exercício estético apto para ser partilhado no Instagram, e ver uma série (visualizar, como se diz), num exercício rápido de recolha de dados.

Ananya Chaudhari estuda Economia e Finanças no segundo ano na Northeastern University e gosta de pintar. É o seu hobby, por agora. Cada vez que mostra uma das suas pinturas, costuma ouvir o mesmo: e porque não as vendes? Na opinião dela, as pessoas tornaram-se demasiado perfeccionistas e isso não as deixa desfrutar dos seus passatempos. 

"O propósito de um hobby é o prazer que nos proporciona por si só, independentemente de sermos medíocres ou virtuosos na sua prática", conta numa conversa com o EL PAÍS. Chaudhari é autora do artigo "A morte dos hobbies não é nossa culpa", publicado no The Huntington News, o jornal independente dos estudantes da sua universidade. Ela afirma que "a capitalização de cada canto da internet" é responsável, e não a geração Z. "Um espaço inerentemente pessoal [a internet] que, subtilmente, nos fez pensar em nós próprios como seres passíveis de gerar receita. Assim, se és bom a pintar, por que não vendes os quadros?, se gostas de DJing, por que não montas um estúdio?, se cozinhas bem, por que não partilhas no TikTok? Esta compulsão para mercantilizar os hobbies tem privado-os do seu propósito fundamental, a nossa realização pessoal".

As aplicações incentivam-nos a avaliar os livros e os filmes, mas também a última viagem de Uber e a música e podcasts que ouvimos. Passamos o dia inteiro a trabalhar como juízes não remunerados na economia da atenção e a acelerar a tendência de nos relacionarmos com os nossos passatempos de uma maneira quase profissional e baseada em dados.

A académica Lina H. R. Cho, professora de Literatura Comparada na Dunster House, afiliada à Universidade de Harvard, acredita que os hobbies, tal como os conhecemos, estão prestes a desaparecer. "Os resultados já estão à vista e são terríveis. A arte tornou-se conteúdo e a criatividade em produção à medida que avançamos lentamente, mas inexoravelmente, para a extinção dos hobbies. Para rentabilizar cada minuto do nosso tempo, temos que ser mais obedientes do que criativos", escreveu num artigo publicado no Harvard Crimson (um dos jornais da Universidade de Harvard). Digamos que a hiperprodutividade estimula a literalidade e mata as formas desestruturadas e caóticas de pensar que estimulam a imaginação.

Cinthya Molina é psicóloga clínica com consultório na SHA Wellness Clinic. A primeira pergunta que faz aos seus pacientes é: tens hobbies? "Não tê-los é sinal de que não se dedica tempo suficiente ao autoprazer e sobrevive-se preso na díade cíclica trabalho-família, família-trabalho. Quem tem um hobby conhece-se melhor, é mais consciente do que precisa para estar bem, e os que não têm, geralmente, não têm interesse em cultivar o seu prazer interior. Um hobby é sintoma de saúde mental. Saber que alguém come bem, dorme bem, tem bons amigos e algum hobby dá-me muita informação sobre uma pessoa".

Os hobbies tornam-nos melhores e mais felizes. Um estudo de 2016 da Universidade de Drexel mostrou que desenhar durante 45 minutos reduzia significativamente os níveis de cortisol, a hormona que regula a resposta ao stress. Noutro estudo de 2017 publicado na revista Arts & Health, ficou provado que colorir ativava a corteza média frontal e melhorava o humor, a auto-percepção e a capacidade de resolver problemas. Em 2015, uma equipa da Universidade de Merced revelou que os indivíduos que se concentravam num hobby estavam menos stressados e tinham uma frequência cardíaca mais baixa. "O que importa é como praticamos os nossos hobbies, e a chave é sair da nossa própria cabeça", escreveu Matthew J. Zawadzki, autor principal do estudo.

Das definições apresentadas no livro Hobbies. Leisure and The Culture of Work in America (1999), um texto clássico sobre o assunto de Steven M. Gelber, os círculos académicos focam sua atenção no que parece esconder um oxímoro: "o lazer produtivo" ou "lazer sério", um termo cunhado por Robert Stebbins, professor emérito de Sociologia na Universidade de Calgary. No seu enquadramento teórico, o entretenimento e a socialização são atividades demasiado passivas para merecerem a consideração de hobbies, sendo classificadas como "lazer informal". Um hobby, segundo Stebbins, deve ser "lazer sério", pois requer um esforço baseado em "conhecimentos, treino ou habilidades especiais", e aqueles que o praticam frequentemente procuram progredir e melhorar ao longo do tempo. Evidentemente, na era da otimização total, esse investimento não faz sentido sem um retorno.

De acordo com os especialistas da equipa de Stebbins, "o lazer sério" proporciona um tipo de satisfação diferente da relaxação ou do trabalho remunerado e ajuda a desenvolver uma identidade independente da profissão que nos sustenta, já que um hobby sustenta a autoestima: alguém não corre, é corredor; não só lê, é um grande leitor; e não vê séries de televisão, é um seriéfilo; não apenas desfruta da comida e do vinho, mas é um gastrónomo, e, mais recentemente, foodie. Um hobby confere prestígio e certa autoridade. Segundo Stebbins, o lazer sério é necessário para ter uma vida plena.

Alguns sinais alertam quando um hobby começa a perder-se pelo ingrato caminho da produtividade, dos prazos e das obrigações. Cinthya Molina recorda uma conversa com um paciente de vida frenética, analista de mercados financeiros. A sua via de escape, a sua paixão, era o seu barco. Recentemente, conseguiu uma amarração em Maiorca e decidiu que quando não estivesse a navegar o alugaria, assim pagaria a amarração e talvez pudesse comprar um segundo barco que tentaria amortizar o mais rapidamente possível. "Deixei-o falar e depois disse-lhe: 'Bem, já sabes que o teu barco deixou de ser uma fonte de prazer, agora é um gerador de stress, monetizaste a tua única fonte de bem-estar, agora é uma responsabilidade: tens de amortizar o investimento. No dia em que saíres no barco só pensarás que não o estás a aproveitar e que estás a perder 2.000 euros".

Aqueles que um dia se acharam sortudos pela sua capacidade de misturar lazer e negócios falam de uns primeiros tempos luminosos que se vão apagando à medida que começam a deixar de fazer o que lhes apetece para atingir objetivos, audiência ou engagement, ou até que algo corre mal - e na internet isto acontece frequentemente, concretamente, sempre que um algoritmo muda e caem o tráfego e a visibilidade -, então a sensação de fracasso contamina a capacidade de desfrutar. O sucesso perdido não é vivido como a consequência de uma mudança tecnológica da qual não somos responsáveis, mas como uma derrota pessoal, e o antigo hobby transforma-se numa fonte de frustração. Dessa forma, dificilmente se pode voltar a perder a noção do tempo enquanto se deixa levar desfrutando com o que mais se gosta. O psicólogo Mihaly Csikszentmihalyi, professor do Centro de Estudos Avançados de Ciências de Comportamento da Universidade de Stanford, descreveu nas suas experiências o "estado de fluxo" como a absorção total numa atividade que proporciona prazer e desfrute. O tempo voa, os pensamentos desaparecem, toda a energia está concentrada numa atividade que gera uma completa satisfação. "Um estado de experiência ótima" muito próximo da felicidade. Só por isso deveríamos proteger os nossos hobbies do culto à otimização. Não há mal nenhum em viver umas horas do dia sem ser produtivo.

La imparable mercantilización de los ‘hobbies’ / Karelia Vázquez / El País (31 de março de 2024)

Sem comentários:

Enviar um comentário