domingo, 14 de maio de 2023

Empatia com Casal Desconhecido


 Quando me telefonou gostei logo dela. Que vozinha de menina e que doçura, simpatia e que educação. Ficou combinado passarem cá por casa por volta da hora de jantar. E que idade teria aquela voz? Vinte e cinco, quarenta? Não, é um casal com idade para ser meus pais e, nota-se, com um certo nível cultural e, se calhar até, certo nível económico também. 

Confidenciou-me que quando chegaram e me viram que disse ao marido que eu era parecido com ele há uns anos. Também ele usava cabelos compridos pelo fundo das costas, ainda que ele andasse de moto e eu, se aos vinte anos gostava da ideia, a verdade é que, e ainda bem, desisti da ideia por ser extremamente perigoso.  

Eu sei que falo de mais. Deveria ser mais reservado. Não me deveria expor tanto. Mas não vai ser agora quase com cinquenta anos que conseguirei mudar. Culpem o meu mapa astral. 

E conversa vai e conversa vem, e já com o marido presente (que não interessa saber porque se ausentou e chegou com um punhado de magnórios) acabo a falar aqui da aldeia. Todos gostam deste sossego que eu também gosto e que não trocaria um T4 na Foz pela minha caverna, mas, menciono o problema da poluição da central a gás. 

Fala-se de política. Do filho da puta do Salazar e das recentes simpatias fascistas. Das dificuldades dos tempos dos meus pais e avós. De como a minha mãe ia para a escola quase descalça de inverno com o gelo que fazia. Da miséria e da fome que havia. De como Portugal era uma espécie de Coreia do Norte e de como ficamos atrasados. Dos 2/3 que as pessoas que faziam os terrenos tinham que dar ao senhorio. De como agora os terrenos estão todos a mato e silvas porque já não há escravos a trabalhar por uma codea de broa e uma malga de vinho. 

Da revolta que sinto quando ouço alguém dizer que "precisávamos era de outro Salazar". O Portugal fascista não foi o "Conta-me Como Foi" do centro de Lisboa. A ditadura salazarista, principalmente nas aldeias, foi fome e miséria. Foi racionamento. Era preciso enterrar os cereais para não levarem as "sobras de Portugal". 

Até que a senhora me diz: "ele foi perseguido pela PIDE porque os pais eram de esquerda. E ele ainda hoje tem traumas do que passou"...


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