Foi difícil para si, enquanto psiquiatra, admitir numa entrevista que esteve deprimido?
Falei nisso com a maior das naturalidades numa entrevista há mais de 20 anos. Se bem me lembro, o assunto surgiu quando estava a explicar a necessidade de destrinçar a tristeza da depressão e no problema que se tem vindo a agravar de medicalizarmos a tristeza, um sentimento que não é agradável, mas que é natural. Só que, nessa altura, não havia redes sociais, por isso não teve as mesmas repercussões que agora, quando voltei a falar no assunto numa entrevista à Fátima Campos Ferreira, no programa “Primeira Pessoa”, na RTP. Houve colegas meus e amigos que ficaram assustados. Disseram-me que corria o risco de perder doentes e que a minha clínica privada, provavelmente, ia falecer. (risos) Fiquei a pensar que, se calhar, juntei à naturalidade a ingenuidade. Eles podiam ter razão.
E tinham?
Não. Tive mais procura e ainda hoje há pessoas que marcam consulta e depois, quando chegam ao consultório, dizem: “acho que o senhor vai perceber melhor a maneira como me sinto”.
O facto de ter passado por essa experiência aproximou-o mais dos seus doentes?
Sim. Não é uma experiência nada agradável. Dispensava bem ter estado deprimido. Mas que me deu uma visão diferente das coisas, deu. Acontece a pessoa na consulta tentar explicar-me o que sente, a apatia, a dificuldade em “arrancar” de manhã e eu simplesmente dizer: “às vezes, até abrir a persiana custa, não é?” A pessoa fica surpreendida e diz: “É exatamente isso!” Mas, afinal, antes de tudo o resto, qual é o grande objetivo da psiquiatria e da psicologia? É fazer com que o outro se sinta compreendido. É por isso que fico preocupado quando oiço cada vez mais as pessoas dizerem que foram a um psiquiatra que os medicou, marcou consulta para daí a três ou quatro meses e que lhes deu o nome de um psicólogo porque eles precisam de falar da sua vida. Se a psiquiatria só confia na medicação e deixa a relação com o doente para os psicólogos, fica terrivelmente empobrecida. As pessoas precisam de sentir-se ouvidas. Mas vamos ser justos. Não estou a falar só da psiquiatria. A primeira linha da psiquiatria são os médicos de medicina geral e familiar, que têm às vezes uns miseráveis minutos para falar com as pessoas, que têm listas de utentes de 1900 pessoas, etc.
A saúde mental é o parente pobre do SNS? Há vários médicos e psicólogos a dizer que a situação é muito preocupante porque o sistema público não consegue responder às necessidades que são cada vez maiores.
Estive pouco tempo no SNS. Fui muito mais um professor universitário do que um médico e depois um psiquiatra em funções. Mas não é preciso ter 40 anos de SNS para saber que houve sempre um olhar parcimonioso em relação à saúde mental. Aquilo que nós [profissionais de saúde mental] ambicionamos é que a pessoa, ao sentir-se entendida, consiga dar mais uns passinhos na perceção do que está a acontecer consigo. Que fatores externos estão a contribuir para o “burnout”, para a depressão, para a ansiedade, etc. Esse é o primeiro passo para modificar as coisas. Algumas coisas estão completamente fora do nosso controlo, mas outras estão. E, portanto, temos de mudar de vida. Não podemos pedir isso às “pastilhas”. A Organização Mundial de Saúde tem vindo a passar a mensagem de que tem de haver uma abordagem holística da saúde da pessoa no seu todo. Hoje não passa pela cabeça de ninguém dizer que há doenças exclusivamente físicas ou exclusivamente psicológicas. E sabemos, cada vez mais, que as pessoas com depressão têm o sistema imunológico mais fragilizado. Mas, voltando ao SNS, mesmo que um colega de medicina geral e familiar decida encaminhar um doente para uma consulta de psiquiatria, isso pode significar meses de espera, o que é completamente inaceitável.
Houve sempre um olhar parcimonioso em relação à saúde mental.
Essa abordagem holística tarda em ser implementada?
O que é trágico é que quando surgiu a pandemia cavou-se um fosso ainda maior entre os recursos dados a uma medicina considerada mais “respeitável” e a saúde mental. Recentemente, o professor Miguel Xavier, que é o diretor do Programa Nacional de Saúde Mental, disse que é necessário duplicar o orçamento para a saúde mental. Ele reforçou que é preciso, no mínimo, duplicar os psicólogos nos cuidados de saúde primários. O bastonário da Ordem dos Psicólogos entoa a mesma canção há anos e anos. Depois, tivemos o professor Caldas de Almeida [ex-coordenador nacional para a saúde mental] a dizer numa entrevista ao Expresso que as questões da saúde mental também estão ligadas às questões sociais. Os pobres não sofrem da mesma maneira. E também referiu que aqueles que ainda não eram pobres estão a sofrer horrores. E é verdade. A classe média e média baixa, de repente, começou a ver-se deslizar para situações que eram impensáveis. No fundo, é a velha questão do fosso que existe entre os que têm muito e os que têm pouco.
Quando é que a tristeza deixa de ser normal?
Quando “enquista”, se prolonga e sobretudo nos impede de fazermos a nossa vida normal e de conseguirmos ter momentos de prazer. Aí é preciso parar e avaliar. Há situações em que o que é preocupante é não ficar triste. Por exemplo, alguém que amávamos deixou-nos ou morreu, o nosso negócio foi à falência... Viver essa tristeza não significa que fiquemos paralisados por ela. A pouco e pouco, a pessoa que perdemos mantém-se viva dentro de nós, mas não nos impede de seguirmos caminho. Se, pelo contrário, passamos a estar obsessivamente colados a essa imagem psicológica interna e estamos paralisados naquilo que é o nosso quotidiano, a probabilidade de estarmos a começar a lidar com um plano inclinado para uma depressão é muito grande.
Há agora, depois da pandemia, uma maior literacia sobre saúde mental?
Há uma iliteracia que se desenha sobre um pano de fundo de iliteracia global. Neste momento, ainda se junta um outro condimento que torna a situação mais complicada, que o facto de termos o “doutor Google” à disposição. As pessoas vão para a internet angustiadas porque têm medo de ter esta ou aquela doença, a informação que lá consta está longe de ser toda de boa qualidade e depois há uma tendência para ir buscar as piores hipóteses. Uma coisa que acontece muito é as pessoas chegarem ao meu consultório já com o diagnóstico feito. O mais clássico é a doença bipolar. A pessoa chega e diz que acha que já sabe o que tem. Diz: “Acho que sou bipolar porque tenho dias em que estou bem disposto e outros em que estou mal disposto”. Isto não tem nada a ver com ser bipolar. A iliteracia, de mão dada com a incapacidade de triar informação, num mundo que está cheio de notícias falsas, é algo que é muito complicado.
O facto de o SNS não estar a dar resposta, pode estar a contribuir para em Portugal haver um elevado consumo de psicofármacos?
Sim, mas não é a única razão. Nesta sociedade há uma tolerância baixíssima aos sentimentos negativos, ao sofrimento. Existe uma enorme nostalgia da “pastilha” que resolve tudo. Há pessoas que nos vêm consultar que ficam completamente desiludidas se não levarem uma receita. Mas o mais importante é do lado dos médicos. A consulta de medicina geral foi completamente espartilhada em termos temporais. Há uma sobrecarga de variáveis que os médicos têm de controlar, de campos de computador para preencher, etc. Começaram a surgir queixas dos dois lados da secretária – dos médicos e dos doentes. Os utentes dizem: o médico nem olhou para mim na consulta, esteve sempre a olhar para o computador. O que é verdade. E os próprios médicos também se queixam porque isto compromete a relação médico-doente, que é a base de tudo. As pessoas não se sentem ouvidas e muito menos escutadas, e do outro lado da secretária os profissionais de saúde sentem uma pressão brutal para apresentar números. Neste tipo de situação e com esta pressão, é muito mais simples receitar medicamentos. Mas há mais um fator. A indústria farmacêutica também exerce pressão sobre os médicos. Não vamos iludir-nos. Sempre exerceu. Mas, na minha opinião, o que mais contribui para os números recorde no consumo de psicofármacos é o facto de não haver as condições ideais para consulta. Não há tempo para falar com as pessoas.
No primeiro semestre de 2022, os portugueses compraram 10,9 milhões de embalagens de ansiolíticos, sedativos e antidepressivos. Estando tanta gente medicada, que implicações isto tem tanto para os próprios como para nós, enquanto sociedade?
Em primeiro lugar, isso não é um bom sinal em termos de sociedade. Uma das coisas que esta sociedade não tem sido capaz de impedir é o isolamento progressivo de cada vez mais pessoas. O que é terrível para a saúde mental. Por outro lado, o facto de haver mais pessoas que estão medicadas, traduz-se em riscos. Nós, sobretudo depois de uma boa jantarada, estamos sempre a pensar se aparece a brigada de trânsito. Se a brigada aparecer e, além de dosear o álcool, for dosear ansiolíticos, antidepressivos, etc.…, apanhamos todos um susto enorme. Há, ao volante ou a atravessar a rua, milhares e milhares de pessoas cujos reflexos estão lentificados porque estão medicadas. E, além disso, grande parte desses medicamentos provocam dependência. Aparecem-nos pessoas que dizem que tomam aquela medicação há 15 ou 20 anos. Aquela “pastilha” já faz parte da sua rotina. Outras dizem: sinto-me embotado em termos de sensibilidade ou, quando tomam medicações mais pesadas, dizem que se sentem embrutecidos, a cabeça não funciona com a clareza que desejavam, etc. Haverá sempre pessoas que têm de ser medicadas, algumas sem fim à vista. Mas o que temos neste momento são pessoas que, por vezes, são medicadas quando não deviam ser. A melhor maneira de abordar a situação, pelo menos naquela altura, não é essa. Na verdade, muitas vezes o que as pessoas sentem é um enorme vazio dentro de si. Uma rede social de apoio, por exemplo, é algo com um efeito terapêutico brutal para as pessoas. Nomeadamente para os mais velhos, mas não só.
De que é que as pessoas se queixam no seu consultório?
Se a brigada de trânsito aparecer e, além do álcool, dosear ansiolíticos e antidepressivos, apanhamos todos um susto enorme.
Há um desencanto nas pessoas com aquilo que as rodeia.
Há de tudo. Uma das queixas que mais tem aumentado é o desencanto com o que as rodeia. As pessoas dizem-me: ontem desliguei a televisão porque passaram horas a cobrir isto ou aquilo. Estamos numa situação política muito pouco agradável. Há problemas que, obviamente, têm de ser abordados, investigados e esclarecidos. Mas é uma espécie de telenovela que está a anos-luz das preocupações reais da população. Neste momento, o português médio está preocupado com o desemprego. A precariedade laboral é terrível. Há pessoas que dizem que não sabem se para o mês que vem ainda têm emprego. Também existe uma preocupação com as condições de vida e o receio do que o futuro pode trazer. Uma pessoa cuja prestação da casa aumentou 80 ou 90 euros e, ao mesmo tempo, leu que no primeiro trimestre os bancos lucraram mais de 950 milhões de euros, como é que se sente? Daí o desencanto. As pessoas estão céticas e, muitas vezes, de uma forma injusta acabam por meter tudo no mesmo saco. Dizem-me que deixaram de acreditar nos políticos. Quando se ouve as pessoas dizer “é tudo igual”, é muito mau. Agora, indo mesmo para a clínica, sem surpresa, aquilo que eu tenho encontrado mais são síndromes depressivo-ansiosos.
As questões económicas são determinantes para a saúde mental?
O agravar do fosso entre pobres e ricos não só tem consequências em termos sociais, porque as pessoas ficam revoltadas, mas tem obviamente consequências ao nível da saúde mental. Há artigos a dizer que em Portugal pode demorar quatro gerações para sair da pobreza e chegar à classe média. Quatro gerações? Isto é obsceno! As políticas de saúde, cada vez mais, têm de ser multidisciplinares. Não podem estar concentradas só no Ministério da Saúde. A Segurança Social, o Ministério da Educação e a própria arquitetura das cidades, que se tornaram selvas de concreto, têm de estar envolvidos.
Ainda existe um estigma sobre a doença mental. Haver figuras públicas a admitirem que tiveram uma depressão ou que têm transtorno obsessivo-compulsivo, por exemplo, contribui para diminuir o estigma?
Contribui. Pessoas com prestígio social, cujas intervenções são seguidas por muita gente, que são bem-sucedidas na vida (seja lá o que isso signifique), ao admitirem que sofrem disto ou daquilo, faz com que as outras pessoas percebam que não é impossível obter determinadas coisas nesta sociedade mesmo tendo este problema.
Olá bom dia!
ResponderEliminarPor acaso vi a entrevista do Júlio Machado Vaz com a Fátima Campos Ferreira. E sim considero este Senhor um Grande Homem. Ele tem a sabedoria, a humildade, a necessidade de passar aos outros o que lhe foi ensinado e sobretudo exerce com paixão e humanidade. Não vende psicologia nem medicamentos, não tem medo de falhar. Os seus pacientes precisam de ajuda e é ajuda lhes dá. Também gostei de ler esta entrevista neste jornal.
Uma boa semana.
Olá! Também vi no RTP Play o programa da Fátima com o Júlio Machado Vaz. É umas das pessoas que mais admiro por todas essas características que mencionou. Ouço-o na Antena 1 no Amor é e no Old Friends. Vale sempre a pena! Boa semana!
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