quinta-feira, 11 de agosto de 2022

Tens a Certeza que Gostas de Pretos?


"O racismo é um problema difícil de abordar. Como e o quê poderemos considerar racismo? Hoje pouca gente considera alguém inferior ou superior só porque pertence a esta ou aquela raça, tem esta ou aquela cor. É que o racismo anda misturado com tantos outros fatores que por vezes nos é difícil reconhecê-lo. A primeira interrogação acerca do racismo, que me surgiu, foi quando o paquete acostou ao cais de Luanda e vi todos aqueles negros, da mangueira na mão, preparados para o abastecer de combustível. É que não vi sequer um branco em algum trabalho pesado, duro; esses trabalhos eram executados por pretos. Até que ponto isto é expressão de racismo? Ou será expressão de uma exploração meramente económica?
(...)
Em Luanda fui visitar a ti Maria Júlia; conheci-a era eu ainda criança; as nossas famílias davam-se bastante bem. Como tinha de tratar de assuntos relacionados com a Companhia tinha um jeep à minha disposição; o condutor era um soldado preto de Luanda, extraordinariamente educado e amável; tornamo-nos logo amigos. Fui então com o Neves, assim se chamava ele, a casa da ti Maria Júlia. Conversei animadamente com ela. Passado algum tempo disse que não me podia demorar pois estava ali o condutor com o carro à minha espera. 
- Então não mandaste entrar o rapaz?
- Ó Zé, manda-o entrar que lhe havemos de dar uma cerveja. 
Saí de casa, atravessei o pequeno quintal e fui chamar o Neves. Este estacionou melhor a viatura e preparava-se para entrar. Quando eu entrei disse-me a ti Maria Júlia:
- Se calhar é preto, é?
- É... sim... o condutor é preto - respondi. 
- Ah!! Pode beber mesmo aí no quintal...
Tive vontade de de desaparecer, enterrar-me pelo chão abaixo; tive vontade de nunca mais pôr os pés naquela casa e jurei-o mesmo. 
Foi logo buscar a cerveja e trouxe-a até à porta de casa de modo que o Neves não entrou. Trouxe apenas a garrafa; não trouxe o copo. 
- Ele não se importa de beber pela garrafa - disse ela quando passou a garrafa ao condutor. 
E o meu amigo Neves, por ser preto, bebeu a cerveja no quintal e sem copo... Despedi-me mal ele acabou de beber e saí revoltado. Eu não queria que em Angola existisse racismo!! Eu que não supunha estas pessoas da minha aldeia capazes de tal ato! Afinal o racismo existia! Mas porquê, se o Neves tinha mais nível, mais formação e mais valor humano que toda aquela gente junta?

Outro dia tive que passar por casa da ti Maria Júlia; alguém de família mo pedira. Conversamos um pouco; tinha eu nessa altura alguns meses de Angola. Disse-lhe então muitas coisas que não gostaram de ouvir...
- Mas gostas mesmo dos pretos? - perguntou.
- Não posso é com estes brancos; que querem enriquecer depressa e à custa dos pretos - respondi. 
- Olha que é mau pensares assim... parece turra. 

Turra é uma palavra muito feia em Angola; está carregada de ódio e de medo. É aplicada aos negros que não se submetem passivamente aos colonos, e aos brancos que estão do lado dos pretos, que os defendem.  

Desde o início, desde que pisei terras de Angola, coloquei-me ao lado dos pretos. Na sua própria terra eram os mais fracos e mais pobres, e eu, não sei por que intuição interior, sempre tive a impressão de que os pobres e os fracos têm razão. 

Angola! Angola! Testemunho sobre o problema colonial - José Pires (1975)  (escrito antes do 25 de Abril de 74)

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