Já conhecia aquela senhora.
Foi numa das caminhadas com história que havia feito pelo Porto. Nesse dia chovia bastante, e eu, achando que não ia chover - como se a chuva me metesse medo! - decidi deixar o guarda chuva na mala do carro. Mas enganei-me. É verdade que tinha um bom casaco quente e impermeável, mas confesso que estar a apanhar aquela chuva fria, enquanto ia ouvindo as explicações sempre precisas da historiadora, apesar de poder ser bastante sexy, também não era lá muito agradável. E foi essa mesma senhora, que simpaticamente chegou ao pé de mim e disse-me para ficar com o seu guarda-chuva, e que eu não me preocupasse, pois ela agarrava-se bem à amiga com quem estava.
À entrada do restaurante eu estava em amena cavaqueira com duas meninas já conhecidas e uma outra senhora, e então decidimos ir entrando, enquanto a maioria estava sentada cá fora, nuns bancos feitos de paletes. Já depois de estarmos devidamente instalados, e ainda com a sala bastante vazia, aparece aquela senhora, que diz, que se vai sentar em frente do "Engenheiro".
O "Engenheiro" é um senhor já careca de cabelos grisalhos e de farto bigode branco, que usa uma bengala de pau para caminhar (ao invés dessas bengalas ou bastões extensíveis todos modernaços que as restantes pessoas usam) e sabe sempre muito sobre muitas coisas. Não sei é o porquê de toda a gente o tratar sempre muito respeitosamente por Engenheiro, mas suponho que seja por ele ter sido, como é lógico, engenheiro lá na câmara municipal, nos tempos em que havia muito pouca gente com estudos.
"Eu sento-me aqui, à frente do Engenheiro" disse a senhora.
Mas na verdade o Engenheiro estava sentado ao meu lado direito, e para sermos mais precisos esta senhora, com idade para ser minha mãe, estava-se a sentar à minha frente.
Rapidamente ela se mostrou uma excelente conversadora. Começou por pedir ajuda com o pau, que como não era o dela, não sabia lá muito bem como o encolher. Estava a falar do bastão da caminhada. Acho que foi uma espécie de quebrar o gelo. Mas comigo nem são precisos grandes preliminares nas conversas para soltar a língua, pois se for preciso começo logo a desbobinar forte e feio!
Mas também sei, que é preciso saber ouvir. E ouvi-a mais do que ela me ouviu a mim. Concordei em grande parte com as coisas que foi dizendo. Por exemplo quando dizia que as pessoas só se aproximam das outras por interesse, para obter algo. Ou quando disse que nada é de ninguém, tudo foi roubado, porque quando a primeira pessoa se lembrou de fazer uma cerca e mura um terreno, só estava a roubar, pois a terra não tem dono. E eu disse-lhe que ela estava a citar Rousseau, no livro "Discurso sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade entre os Homens":
"O primeiro que tendo cercado um terreno se lembrou de dizer: "Isto é meu", e encontrou pessoas bastante simples para o acreditar, foi o verdadeiro fundador da sociedade civil. Quantos crimes, guerras, assassínios, misérias e horrores não teria poupado ao género humano aquele que, arrancando as estacas ou tapando os buracos, tivesse gritado aos seus semelhantes: "Livrai-vos de escutar esse impostor; estareis perdido se esquecerdes que os frutos são de todos, e a terra de ninguém"
Fui sempre ouvindo a senhora com muita atenção. Gosto muito de ouvir as pessoas mais velhas, têm sempre imensa sabedoria para nos transmitir, basta para isso deixá-las falar e ouvi-las. E retive uma frase que até tomei nota para não esquecer. Segundo ela, a sua mãe dizia sempre:
"A semente de mão pega ou não pega. A de boca pega sempre".
O que é que isto significa?
Então é assim. Quando pegamos numa semente e a deitamos à terra, uma de duas coisas vai acontecer: ou vai germinar (pegar) ou não ("pega ou não pega"). Mas quando dizemos uma coisa, e com quanto mais veemência a dissermos pior, pois só uma coisa vai acontecer: vai acontecer o que estamos a dizer que nunca aconteceria connosco! E eu disse-lhe que sim, que acredito verdadeiramente nisso, aliás já me aconteceu a mim. Quando mais uma pessoa diz que nunca isto ou aquilo, mais depressa isso lhe vai acontecer.
No fundo esta é uma versão da conhecida expressão "Nunca digas nunca" ou da "Não cuspas para o ar que te pode cair em cima". Ainda assim acho que vou começar a usar esta, parece bem mais misteriosa e enigmática. "Olha, cuidado que a semente de boca pega sempre"!
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