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domingo, 7 de abril de 2019

Teatro: Odeio este Tempo Detergente


Já tinha ouvido falar da peça na rádio. Ana Nave apresentava em palco a poesia de Ruy Belo, interpretada por si e por Maria João Luís, acompanhadas musicalmente por José Peixoto que reconhecemos, por exemplo, dos Madredeus. 

Eu nunca li Ruy Belo, quase não leio poesia, não sei se iria gostar da poesia de Ruy Belo. Bom, mas certamente que iria gostar da Ana Nave. Há pessoas de quem os nossos olhos gostam muito de olhar. E a Ana Nave é uma pessoa que os meus olhos gostam mesmo muito de olhar e os ouvidos de ouvir. 

Em boa verdade eu não vou ao teatro e ficava sempre bem acrescentar que não sei bem porquê. Mas na verdade até sei. Eu não vou ao teatro porque nunca fui habituado a ir. Nunca me convidam a ir, não me relaciono com pessoas que tenham por hábito ir; não me relaciono com pessoas que me digam que foram ver determinada peça e que me aconselham a ir ver.

Mal soube que a peça ia estar no Teatro Constantino Nery em Matosinhos, fiquei inclinado a ir. Comentei com uma amiga que vive nessa cidade, e estava tudo acertado para irmos juntos ver esta peça. Mas, à última hora, por questões pessoais, ela não pôde ir.

E ainda bem que foi à última hora, pois já eu tinha estacionado a trezentos metros do teatro. Se me tivesse dito com muitas horas de antecedência, eu poderia ter encontrado aqui uma desculpa para ter ficado em casa, afinal, quem é que vai ao teatro sozinho? 

Fiquei no carro a ler enquanto esperava que a chuva parasse e fui comprar o bilhete. Dias antes tinha telefonado e a senhora que simpaticamente me devolveu a chamada, disse-me que, para duas pessoas, no próprio dia arranjava bilhetes, e que se viesse um pouco mais cedo, até arranjava melhores lugares. Fiquei na terceira fila, a meio, muito bem situado, a poucos metros do palco. 

Antes do teatro fui jantar. Imensos restaurantes por aquelas ruas de Matosinhos junto ao Porto de Leixões e o Rio Leça. Entrei, sim, é uma mesa só para mim, e escolhi um bife. Saquei do livro que ando a ler e coloquei-o em cima da mesa. É sempre bom aproveitar estes tempos mortos para adiantar umas páginas. O bife estava bom, mas achei que havia bife demais e batatas a murro e verduras de menos. Come-se demais. Come-se carne demais. 

E lá fui para o teatro. Perguntei ao segurança onde era a casa de banho. Subi ao primeiro piso. Quando saía entrava um senhor, alto, forte, de grandes barbas brancas. O rosto fez-me lembrar o Alfred Molina no filme Fridha Kahlo. Desci e encostei-me a um canto. À minha frente um casal. Ela tinha uns sapatos um tanto ao quanto góticos. Quando subi os olhos vi que o estilo condizia com a argola que tinha no nariz. 

As portas abriram-se. Procurei o meu lugar e sentei-me. A sala estava quente. Tirei o casaco e dobrei-o por cima das pernas. No palco de um chão preto, estava disposta do lado direito uma mesa com um computador portátil e uma cadeira, na frente dum ecrã onde se projetavam imagens, e do lado esquerdo do palco, sozinhos, estavam dois pares de sapatos.... à espera que as atrizes entrassem em cena para os virem calçar.

"Odeio este tempo detergente" é um espetáculo de sessenta minutos, com duas atrizes e um músico reconhecidos, e que custa menos que um bife na brasa. E se calhar deveríamos todos ir mais vezes ao teatro. Ali não são precisos óculos porque ali tudo é tridimensional, real e genuíno. Nem há pipocas, nem gente a falar e a olhar para o telemóvel. E no fim há aplausos e as atrizes curvam-se perante o público.

(e não deixa de ser absurdo que o Estado cobre mais do dobro do IVA por uma ida ao teatro que por uma tourada)