quinta-feira, 10 de julho de 2025

Não Gostas Mais do Que Eu...

 

Vagueio por esta casa silenciosa onde vivi até perto dos vinte anos e sou bombardeado por muitas memórias. Tenho talvez três anos, o cabelo loirinho da cor do ouro e estou sentado em frente da garagem, num triciclo de punhos vermelhos. Pego num pequeno canivete e começo a aparar as reentrâncias dos punhos, mas, a determinado momento, a lâmina escapa-me do controlo e vai ao pulso deixando uma bela cicatriz branca, que só desaparecerá quando eu morrer. 

Disseram-me que aprendi a andar aqui quando a casa ainda estava a ser construída. (Não sei porquê) mas lembro-me de andar devagarinho nas traseiras a perseguir um pássaro... E lembro-me dos maços de jogadores de futebol em papel e de como sabia os nomes deles todos muito antes de saber ler. E lembro-me de ter quatro ou cinco anos e de ouvir tocar o sino da igreja e perguntar aos meu pais o que aquilo significava. E foi nesse dia que perdi a inocência e fiquei a saber que, ao contrário do que imaginava até então, não vivemos para todo sempre. 

Vivemos todos como se fôssemos eternos, esquecendo que, mais cedo ou mais tarde, todos teremos o mesmo fim. Tantas vezes, angustiado, perguntava-me a idade e depois tranquilizava-me porque pensava na idade do meu avô, e ela certamente ainda duraria mais uns bons anos. Mas, trinta e dois anos depois, a pessoa que era tudo para mim e para quem eu sempre fui a razão de viver, que esteve comigo no momento da minha primeira respiração e que eu estive juntinho no momento do seu último sopro de vida, partia, muito angustiada por me deixar sozinho... Foram cinquenta anos, sempre juntos. Se existe amor incondicional, então foi só o amor da minha mãe.

Os dias não param, correm apressadamente uns atrás dos outros. Nem podemos sossegar nem tempo temos para estar tristes. E há que fingir que está tudo bem, mesmo que tudo esteja verdadeiramente mal. De dia parecer bem para depois, no silêncio da noite, poder despir essa capa dura de forteza e poder mostrar-me frágil. "Prometi" que não ia fazer nenhum disparate. Não posso prometer que não vou ficar muito triste...

Disse-lhe muitas vezes: "gosto muito de si". "Não gostas mais do que eu", respondia-me. 

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