"Se tivesse sido morto pelos iraquianos, Couso teria sido um herói nacional. Mas como foi assassinado “pelos bons” (USA), as nossas elites sentiam-se incomodadas em apontar e fazer pagar os seus carrascos".
O tempo passa e, por vezes, vamos esquecendo alguns detalhes da História. E é desse esquecimento coletivo que vivem, por exemplo, muitos políticos.
Julian Assange foi, finalmente, libertado há duas semanas e esteve preso durante doze anos por mostrar os podres dos estado-unidenses (e esta é que é a expressão correta como dizem espanhóis e brasileiros, porque um brasileiro é um "americano" e um habitante do Canada também é norte-americano). No El País, a escritora Ana Iris Simón publicou um artigo muito contundente, lembrando o espanhol assinado e a forma como os sucessivos governos espanhóis foram lacaios dos Estados Unidos da América, nada interessados em fazer justiça para o seu próprio cidadão.
"Esta segunda-feira, após 12 anos de reclusão, Julian Assange foi libertado. O seu “crime” foi entregar mais de 200.000 documentos secretos do Governo dos Estados Unidos a cinco jornais, entre os quais se encontra este que estão a ler. Graças a eles tivemos a certeza, entre outras coisas, “da dupla moral de Washington nas suas relações com os países árabes […] ou dos seus abusos e ataques a civis no Iraque e no Afeganistão”, nas palavras do então director de El País na altura dessas revelações. Uma das peças mais impactantes que WikiLeaks divulgou foi Assassinato Colateral, um vídeo de 2007 que mostra como o Exército dos Estados Unidos assassina indiscriminadamente 12 civis em Bagdade, incluindo dois repórteres da Reuters.
Mas não foi a primeira vez que os EUA mataram jornalistas no Iraque. Quatro anos antes, em 2003, o espanhol José Couso tinha sido assassinado pelo Exército americano nessa mesma cidade. Aconteceu durante o ataque ao Hotel Palestina, onde se alojava parte da imprensa que cobria o conflito. O alvo foi o quarto 1503, onde estavam alojadas as câmaras da Reuters, que transmitiam sinal para todas as televisões do mundo. Pouco antes tinham atacado as sedes da Al Jazeera, onde mataram outro jornalista, e a televisão de Abu Dhabi. Esses ataques causaram um apagão informativo: desde então e até à derrubada da estátua de Saddam Hussein, não houve uma única imagem da tomada de Bagdade pelas tropas americanas.
À perda de um dos seus membros, filho, irmão, marido e pai de dois filhos, a família Couso teve de somar a gestão aberrante do caso por parte das autoridades espanholas. Desde o início tiveram a sensação de que algumas pareciam sabotar a investigação, e as suas suspeitas confirmaram-se quando os documentos de Assange revelaram que, de facto, os nossos governos se puseram do lado dos assassinos estrangeiros em vez do espanhol assassinado.
Graças às revelações de WikiLeaks soubemos da reunião de Cándido Conde-Pumpido, então Procurador-Geral do Estado, com o embaixador americano, na qual assegurou que os procuradores “continuariam a opor-se” às ordens de detenção dos militares que assassinaram Couso. Ou dos emails da embaixada para Condoleezza Rice, nos quais informavam que o Executivo de Zapatero tinha “ajudado nos bastidores” para que a Procuradoria recorresse a decisão do juiz de deter os assassinos do jornalista. Se tivesse sido morto pelos iraquianos, Couso teria sido um herói nacional. Mas como foi assassinado “pelos bons”, as nossas elites sentiam-se incomodadas em apontar e fazer pagar os seus carrascos.
Ficou claro então que os nossos governos, tanto do PP como do PSOE, agiram como lacaios às ordens de uma potência estrangeira que tinha assassinado um cidadão espanhol, num crime de guerra e contra a liberdade de expressão. Todos eles foram cúmplices para que, até hoje, não se tenha feito justiça em memória de Couso: desde Aznar, que declarou ao lado de Bush que acreditava nos Estados Unidos, até Zapatero, que sabotou o caso. De Rajoy, que mudou a lei para limitar a jurisdição universal, a Sánchez, que ainda não cumpriu a sua promessa de restabelecê-la.
Agora que celebramos que finalmente se fez justiça com Assange, é justo reclamar o mesmo para Couso, sobre cujo caso, que está em recurso em Estrasburgo, se lançou luz. E apontar o imperialismo americano pelo que demonstrou ser em ambos os casos: uma força criminosa, liberticida e mentirosa.
Gobernados por lacayos | Ana Iris Simón | El País
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