sexta-feira, 30 de setembro de 2016

Como imagino a primeira vez que fizermos sexo

(...) As minhas mãos. Tu ainda não conheces bem as minhas mãos. Sei que tens uma ideia sobre elas, mas ainda não as conheces muito bem. Eu próprio me surpreendo com elas frequentemente. As minhas mãos vão procurar as formas do teu corpo. Gosto de começar por perceber a dimensão das coisas. Vou segurar-te nos ombros, nos braços, na barriga de lado, nas ancas e nas pernas. A escolha destes lugares do teu corpo não tem nada a ver com a procura de um crescendo, com uma gradação que, no seu auge, chegue a lugares mais intímos e/ou pornográficos. Aliás, não chegarei a estes lugares pela escolha, mas sim pelo instinto. Eu conheço os meus instintos, os bons e os maus, os que me fortalecem e os que me enfraquecem. Gosto de todos, não os contrario, todos fazem parte de mim, sou todos eles. Mais, nos teus ombros, braços, barriga, ancas e pernas estarei já inteiro. Nesse momento, não terei ainda a certeza de que iremos, de facto, fazer sexo.Não estarei preocupado. Não consigo imaginar-me preocupado enquanto estiver a beijar-te, a abraçar-te e enquanto as minhas mãos estiverem no teu corpo. Estar preocupado significaria estar longe de ti. Contigo, não consigo estar longe de ti. Contigo, apenas sou capaz de estar contigo.

Posso desabotoar-te as calças? O momento em que tiver nos dedos o botão das tuas calças será determinante. Se sentir que me facilitas o gesto que farei com o polegar e o indicador, se não sentir a tua mão a afastar a minha, será dado um grande passo entre nós. É claro que eu não pensarei isto com estas palavras. Estes pensamentos apenas são possíveis porque estou aqui, longe, e porque a minha mente se aventura por caminhos desaconselháveis. Baixar-te as calças com as duas mãos.

Certezas que tenho:

- A tua pele é suave.

- As minhas pernas cabem no interior das tuas.

- Aguento o teu peso com facilidade.





Vou querer abrir os olhos para, em instantes, ver o teu rosto. Vou querer guardar essas imagens paradas, fotografias do teu rosto. Após um vinco na respiração, entraremos num mundo que se construirá à nossa volta, um mundo que se propagará a partir de nós. Deixaremos de saber os nossos próprios nomes.

O meu corpo pesado, lançado pelos meus braços para o teu lado. Quanto tempo passou? Onde estamos? Enquanto recuperarmos a respiração, estaremos cheios de perguntas.

Além disso, há este texto. Se chegarmos a fazer sexo, há a possibilidade deste texto interferir, de nos sentirmos na obrigação de contrariar os seus detalhes para o garantirmos como ficcional e não nos acharmos previsíveis. Então, não me irás morder a língua, não ficaremos no sofá e não me deixarás desabotoar-te as calças, irás tu própria desabotoá-las. Mais tarde, daqui a semanas ou meses, falaremos deste texto e será como uma piada. Iremos rir-nos da própria dedicatória: para a L. Iremos, pelo menos, sorrir. Tudo estará bem se, semanas ou meses após termos feito sexo pela primeira vez, estivermos juntos a rir ou a sorrir.

Se nunca chegarmos a fazer sexo, este texto continuará a existir. Se tiver de ser assim, espero que estas palavras não tenham qualquer interferência com essa possibilidade, que ficará no lugar invisível onde se acumulam todas as possibilidades que nunca se concretizaram. Seria bastante rebuscado que este texto impedisse esse encontro, mas já me surpreendi com coisas bastante menos surpreendentes. Em todas elas, a vida e o tempo continuaram. Se assim for, se assim não for, espero que a memória deste texto seja a memória destes dias e que, dessa maneira, seja algo de bom, que nos faça bem, e que, nesse futuro, sozinhos ou acompanhados por rostos que agora desconhecemos, sejamos capazes de um sorriso que mais ninguém entenda e que não tentaremos explicar a ninguém.

Abraço / José Luís Peixoto (2011)


quarta-feira, 28 de setembro de 2016

As tuas mãos...

As minhas mãos magritas, afiladas, 
Tão brancas como a água da nascente, 
Lembram pálidas rosas entornadas 
Dum regaço de Infanta do Oriente. 

Mãos de ninfa, de fada, de vidente, 
Pobrezinhas em sedas enroladas, 
Virgens mortas em luz amortalhadas 
Pelas próprias mãos de oiro do sol-poente. 



Magras e brancas... Foram assim feitas... 
Mãos de enjeitada porque tu me enjeitas... 
Tão doces que elas são! Tão a meu gosto! 

Pra que as quero eu - Deus! - Pra que as quero eu?! 
Ó minhas mãos, aonde está o céu? 
...Aonde estão as linhas do teu rosto?


"As minhas mãos" / Charneca em Flor / Florbela Espanca  (1931)

sábado, 24 de setembro de 2016

Cando penso que te fuches


Praça Maior - Lugo

Cando penso que te fuches, 
Negra sombra que me asombras, 
ó pe dos meus cabezales 
tornas facéndome mofa.
Cando Maximo que es ida, 
No mesmo sol te me amostras, 
i eres a estrela que brila, 
i eres o vento que zoa.
Si cantam, es ti que cantas; 
Si choran, es ti que choras; 
i es o marmurio do rio, 
i es a noite, i es a aurora.
Em todo estás e ti es todo, 
Pra min i em min mesmam moras, 
nin me abandonarás nunca, 
sombra me abandonarás nunca, 
sombra que sempre me asombras.


Rosallia de Castro (1837-1885) 


As penas dos incendiários

O problema dos incêndios e Portugal tem só a ver com uma questão: Dinheiro. Sempre que há um incêndio, há sempre alguém que tira proveito disso. Os incêndios são sempre uma oportunidade para alguém fazer negócio com a miséria dos outros, que é a miséria de todos. Porque se assim não fosse, se os incêndios não dessem muitos milhões a muito poucos, investiam-se milhões sim, mas na prevenção, limpando-se as florestas, ordenando-se o território e proibindo a plantação de eucaliptos, e não fazendo como sucessivos governos têm vindo a fazer, precisamente o oposto, alargando as áreas de plantação desta espécie exótica e altamente inflamável e tendo-se até acabado com os guardas florestais!

Mas lá está, se em vez dos milhões que se dá aos privados para o aluguer de helicópteros e aviões e para alimentar a cadeia alimentar da proteção civil e bombeiros, fossem canalizados para a prevenção, não se ganhava dinheiro nenhum! Não se vendiam fardas, equipamentos de proteção, carros, camiões, etc etc. Que dinheiro é que poderia dar, ter, como se tinha antes, pessoas a vigiar as florestas, ou pôr as pessoas de enxada na mão a cortar o mato? Não dava dinheiro nenhum! 


E depois, cria-se na opinião pública esta ideia que os incêndios só são provocados por maluquinhos, geralmente alcoólicos, esquizofrénicos, gente que não tem as sextas-feiras todas. Aquilo são tudo inimputáveis que têm prazer em ver arder. É uma chatice, não se pode fazer nada. E quão conveniente que é! É mais ou menos tão conveniente como a CP, que ainda sem ter sido investigado o descarrilamento de um velho comboio, numa linha que estava em obras, logo tenha vindo apressadamente dizer que a culpa foi do maquinista.... que morreu no acidente e não se pode defender! Muito conveniente!

Mas na verdade eu nunca vi um maluco bater com a cabeça na parede. Já me relataram situações de de catatónicos que passam a vida a masturbar-se. Mas não batem com a cabeça nas paredes porque dói! Todos os seres sabem o que é certo e o que é errado. Ou será que preciso pôr faixas nas matas, com letras garrafais, a dizer "Incendiar a floresta faz mal à Natureza"? Mas por acaso há algum fumador que não saiba que fumar faz mal à saúde? Era preciso escrevê-lo nos maços? 


O problema é que, se não houver estes supostos maluquinhos, se não houver quem bote fogo nas matas, não há incêndios, logo, o negócio está em risco. E como se explicar penas tão leves para ato tão grave e tão prejudicial para pessoas e natureza? E para mim não há nada mais grave que atentar contra a natureza, nada! Como é que se explica que a maioria dos incendiários saia em liberdade, com penas suspensas, ou até que depois as veja reduzidas para quem provoca incêndios que tantos danos, morte e prejuízos provocam?

E por que é que as televisões, continuam, livremente a transmitir  o espetáculo deprimente dos incêndios em direto, quando se sabe que isso só serve de motivação e sensação triunfo aos criminosos que cometeram tal crime? Por que é que se as televisões não têm esse senso comum, então não haja quem as proíba de o fazer?

Sobre esta problemática dos incêndios, em particular sobre de quem os bota, já se disseram muitos disparates, como ouvir a ministra defender que os incendiários paguem os prejuízos dos incêndios! Esperem, mas pagavam como? Faziam um empréstimo na Caixa Geral de Depósitos e pagavam com juro bonificado? Eu resolvia o problema de outra forma, e não, não estou a pensar cortar-lhes as mãos.


O problema dum incendiário, como de outros criminosos quaisquer, é a reincidência porque infelizmente nas cadeias portuguesas não se reeduca. Pune-se. Ora o que acontece é que um criminoso sai da cadeia ainda pior do que entrou. Logo, à mínima oportunidade vai repetir a gracinha. 

Temos então de garantir que o incendiário não mais o volta a fazer. 
Um pedófilo, um ladrão, um empresário corrupto, etc, todo e qualquer criminoso, pode cometer o seu crime durante doze meses certo? Onde é que quero chegar? É simples. 
O grande perigo de incêndio limita-se a três ou quatro meses por ano, período no qual existe sério risco de incêndio. Então, para que é que eu preciso ter um incendiário na cadeira, a dar prejuízo (cada presidiário custa 50€/dia) ao país durante o inverno, quando chove e não há risco nenhum do maluquinho ir no instante à mata matar a ressaca e botar um incêndiozinho? 


Há quem venha defender - até circulou por aí uma petição nesse sentido - de aumentar as penas dos incendiários. Mas eu não preciso meter um incendiário vinte e cinco anos na cadeia! Só preciso garantir é que, todos os anos, ele não o volta a fazer. Então, se eu aplicar uma pena de cinco anos de cadeia a um incendiário, primeiro de tudo, não o vou colocar sempre enfiado na cadeia a dar prejuízo, vou fazer dele um voluntário-compulsivo nos bombeiros sempre que se justifique.

Um incendiário adora o fogo certo? Então vai ser feliz, tendo utilidade no combate aos incêndios. Não havendo incêndios, regressa então à cadeia, mas só no período de grande risco de incêndio. Findo esse período, volta à sua vidinha normal. Mas no ano seguinte, de 1 de julho a 30 de setembro, o nosso amigo incendiário volta à cadeia e ao combate aos incêndios. E durante o resto do ano, caso haja incêndios também ajudar, voluntariamente, no seu combate.


Veja-se como com uma pena de dez anos efetivos, tendo uma pessoa a dar prejuízo enfiada numa cadeia doze meses por ano, eu consigo poupar e fazer o incendiário feliz por quarenta anos! 

Mas uma vez incendiário, incendiário para sempre. Não existem ex-fumadores. Uma vez viciado, viciado para sempre. Pode-se estar cinco anos sem fumar, mas basta facilitar uma vez e tudo volta de novo. Uma vez incendiário, incendiário para sempre. E basta facilitar uma vez para o desastre acontecer novamente. Como tal, comigo, incendiário apanhado uma vez, significaria prisão perpétua, ainda que só três meses por ano. 

Mas convém que nada seja feito, porque os incêndios são um negócio que não dá jeito acabar. 

O Político Coerente Mente Sempre

Rima e é verdade.

Depois quase cinco anos no governo, o pior primeiro-ministro português após ditadura - e não estou obviamente a considerar que Santana Lopes, porque esse foi nomeado, e em democracia as pessoas são, supostamente eleitas e não nomeadas, não é senhor Sampaio? - mas este pior primeiro-ministro de sempre, tornou-se agora no pior líder da oposição de sempre. Não tem uma ideia a apresentar, nada, só sabe dizer que vem aí o Diabo, que Deus nos vai condenar a dez pragas, que a lepra vai voltar, e sabe-se lá mais o quê, simplesmente porque o novo governo anda a repor tudo aquilo que ele roubou. Mas ele chama-se Pedro, e todos nós conhecemos bem a história do seu homónimo com o lobo, e ele é igual.

E como foi há tão pouco tempo, eu presumo que as pessoas ainda saibam como é que ele foi eleito: Mentindo! 


Mentiu, repetindo até à exaustão em campanha eleitoral que chegava de austeridade. "Basta" disse ele! Que com ele bastava cortar numas tais gorduras do Estado - a culpa da miséria do país era das Novas Oportunidades e dos miseráveis que vivem do Rendimento Mínimo! E como diria a outra, o contrário da austeridade é a prosperidade! E com ele é que íamos ficar todos ricos!!

Só que, como se previa, mal entrou no governo fez tudo aquilo que disse que não ia fazer!! Aumentou impostos, roubou salários, subsídios de férias e subsídios de desemprego, encerrou hospitais, maternidades, tribunais, cortou freguesias, cortou feriados, quase privatizou a saúde pública, etc etc... Cortou, cortou, cortou, e no fim de contas, depois de tantos cortes, no fim de contas ainda ficamos com mais dívida para pagar! Incrível não é? Mas ele conseguiu!



Mas eu admiro verdadeiramente Passos Coelho. 

Se há coisa que eu admiro nas pessoas é a coerência. Confesso que esta semana duvidei dele. E não deveria tê-lo feito. Já o conhecemos muito bem e não deveria ter duvidado. Mas confesso que pensei "tu queres ver que o homem vai fazer o que prometeu uma vez que seja? Tu queres ver que ele vai mesmo apresentar o livro do Saraiva? Tu queres ver que não vamos ter direito a mais um irrevogávelzinho que seja?" 

Há cinco dias o homem afirmava convictamente, para todos nos rirmos: 
"Não sou de voltar com a palavra atrás".



Quem melhor que ele, para apresentar um livro que é uma valente merda? Mas tu queres ver que ele se vai agora armar em pessoa de palavra e vai mesmo fazer o que disse? Mas estive mal. Duvidei da palavra dele e não o deveria ter feito. Felizmente três dias depois deu o dito por não dito e mostrou que é uma pessoa coerente.


Nada como um político completamente previsível, que é um extremista da coerência. 
Rima e é verdade. Passos é o político coerente: aquele que mente sempre!

quarta-feira, 21 de setembro de 2016

A Ritalina e o Francisco

Por entre as muitas pessoas que me envolviam e as muitas conversas paralelas, este homem que falava num tom acima para ser notado, começou a captar a minha atenção. De óculos, barriguinha proeminente e de classe sócio-económica favorecida, culto e viajado, profere as seguintes palavras:

"Sabes o que é que ele come agora de manhã? Sopa. 
O Diogo quando toma a Ritalina depois perde o apetite e não lhe apetece comer nada."



Via Pinterest

No dia seguinte passei na Roulotte para matar saudades dos melhores pregos em pão da galáxia. Pão de hambúrguer, queijo, fiambre, um bife de vaca fininho com molho picante, ovo, tomate, alface, milho, ervilhas, cogumelos e molho a gosto, que no meu caso escolho Ketchup.

Enquanto aguardava, três adultos e uma criança aproximaram-se para fazerem também eles o seu pedido. E não pude deixar de reparar, que nas costas da mulher, de cabelo curto e com madeixas loiras, estava sarrabiscado a letras garrafais a palavra Francisco.
- Quem será o Francisco? pensei para comigo. Será o marido ou o puto?
Ao lado dela estava o puto com uns grande óculos de sol quadrados.
De repente a mãe vira-se para ele e diz:
"Pára quieto Francisco!"

Folhear uma escritora

Foi quando deambulava já quase no último expositor da Feira do Livro que esta senhora desconhecida me interpelou. E este ano não reencontrei aquele casal amigo-sósia, que no ano passado me fez questionar, se todos as relações estarão condenadas. Na verdade este ano até nem me cruzei com ninguém conhecido, o que nem é muito normal, pois por norma, nestes grandes ajuntamentos de pessoas, há sempre maior probabilidade de reencontrarmos alguém que não vemos há algum tempo.

Via Pinterest
Cheguei a este expositor e aquela senhora cheirosa, de cabelos pretos brilhantes que estava do lado de fora do balcão e que não me conhecia interpelou-me. E logicamente que eu sei que ela não estava interessava nos meus lindos olhos verdes, mas sim em promover os seus livros. E se os livros dos escritores não são promovidos ninguém os lê... olha, se calhar mais ou menos como os blogues! Mas os blogues não custam dinheiro a fazer, nem por norma são feitos para dar dinheiro, mas os livros sim, por isso convém, digo eu, que haja sempre alguém que os compre. 

E o certo é que acabei sentado ao lado dela na apresentação do primeiro livro de um outro escritor da mesma editora, onde ela foi ler um pouco para a plateia. Achei interessante conversar um pouco com aquela mulher... Naquele dia acabei por não ter muita paciência para andar sozinho na feira a folhear livros, ou andar a remexer nos milhares de livros usados a preços simbólicos, mas acabei a feira, sem querer, a folhear uma escritora. Talvez um dia destes vá cuscar um dos seus dois livros. Afinal foi para isso que ela me interpelou.  

segunda-feira, 19 de setembro de 2016

As Brumas

Cheguei a pensar em voltar de comboio para o Porto. Mas apanhar três transportes até chegar, já noite dentro, ao sítio onde teria de deixar o veículo estacionado, seria mesmo estar a pedi-las, com tantos imponderáveis não devidamente programados. E bem que eu gosto de ter as coisas minimamente alinhavadas. Cheguei também a pensar em meter a bicicleta na mala e levar a carroça. Mas no fundo só iria a fazer peso, porque com tanta ocupação quase de certeza que nem teria tido tempo para ir dar uma voltinha de bicicleta, sem falar que depois de caminhar quatro ou cinco horas, a vontade já poderia nem ser muita.

Mas se tivesse voltado de comboio por certo que não me teria rebentado um pneu. Se tivesse levado a carroça também estou em crer que não, pelo menos não daquela forma completamente estúpida. 
E se aqueles dois idiotas, que estacionaram à minha volta, bloqueando-me completamente e impedindo-me de sair do parque - mas pensavam o quê? que o meu cavalo preto levanta voo? - e se eles não o tivessem feito, seguramente que depois, tudo o que veio a acontecer não teria acontecido. Mas se eu também não tivesse decidido mudar o local de estacionamento, pouco antes de seguir com as cem pessoas da caminhada, também depois não teria como ser bloqueado por aqueles dois idiotas, do VW verde e do BMW preto e ter de ir ao restaurante, com as duas matrículas apontadas na folha aos quadriculados, para que perguntassem ao microfone, se algum dos dois idiotas estava presente na sala. 

Eu havia chegado bem cedo. Tenho esse terrível defeito para comum português, de chegar sempre cedo, bem antes da hora marcada. Só posso ser mesmo um anormal, num país onde a norma é chegar sempre atrasado. E os dois autocarros, por quem estava à espera, haveriam de chegar, bem atrasados. Até haveriam de ir primeiro para o lado errado da lagoa! E eu, que não sou motorista, não conhecia o local, nem tenho GPS no carro, nem telemóvel com internet, e tinha simplesmente tirado umas anotações num papel quadriculado que estava em cima banco ao meu lado, cheguei lá, sem um único erro! Quando os dois autocarros chegaram, já há muito que eu tinha pegado na máquina fotográfica, e tinha ido fotografar as Brumas da Pateira de Fermentelos. Pelo menos foi isso que me fez lembrar quando saí fora do carro, de calções pretos, acima dos joelhos, e de camisola de cavas, também ela preta. Que todo aquele imenso nevoeiro sobre a lagoa, ou lago (para sermos inclusivos!) me fazia lembrar o filme As brumas de Avalon... O livro, esse, tenho para aí na estante, mas só li umas quantas páginas quando estive internado no hospital, talvez na última vez, há seis anos, não tenho a certeza, mas acho que sim. 

Pateira de Fermentelos (maior lagoa da Península Ibérica)

E se eu não tivesse decidido levar o cavalo preto em vez da carroça com a bicicleta atrás, e se eu não tivesse decidido depois estacioná-lo bem mais atrás. à sombra dos plátanos para não estar quente quando fosse sair com ele... e se aqueles dois idiotas não tivessem estacionado mesmo à minha volta, impedindo-me de sair, pois certamente que não me teria rebentado a merda do pneu, que ainda o troquei há meia dúzia de meses e que estava novo. 

E fiquei mesmo muito irritado. "Cem euros para o lixo" destilei. Pouco tempo antes tinha-me ido mudar. Tinha ido à casa de banho, que tresandava a mijo, para trocar as botas de caminhada, que quando as tirei encheram o chão de areia, e os calções de desporto, pelas novas sapatilhas pretas, da Sanjo, e por uns calções verdes, com uma espécie de padrão pixelizado camuflado. E tinha-me ido refrescar e lavar, tentando tirar o imenso cheiro a suor frutos dos 14Km de caminhada e dos quase trinta graus de temperatura, para pouco depois, já estar bem pior, todo cagado, de mãos e braços completamente pretos, depois da aventura de tentar substituir o pneu rebentado. (A propósito as chaves que vêm nos carros para desapertar os parafusos são mesmo uma valente merda. Depois de duas porcas desenroscadas, já a chave estava toda moída).

Às vezes parece mesmo que há dias em que não podemos sair de casa. Como dizia o Murphy, parece que se há algo que pode correr mal, correrá mesmo mal e da pior forma. Tantos acontecimentos encadeados, parecendo que foram estrategicamente pensados, de forma ardilosa, só para me estragar o fim-de-semana. Mas depois, mais calmamente, acabei por refletir que não me podia deixar levar por aquele acontecimento negativo. Coisas boas aconteceram este fim-de-semana. Porquê fixar-me só num ponto negativo? E depois ainda pensei: e se todos aqueles acontecimentos, foram só uma forma de alguém me proteger - foste tu minha Anja-da-Guarda boazona?! - proteger de algo bem mais grave e que me poderia ter acontecido, se não tivesse ficado ali todo aquele tempo...
Não sei! mas vamos acreditar que sim! 

terça-feira, 6 de setembro de 2016

O Amor que tudo avaria

Depois de ter acabado de fazer uma enorme cagada e ter perdido, só, um dos posts que mais trabalho me deu no Bucólico, fui pegar no disco externo, onde tenho uns milhares de fotografias guardadas, e onde até nem estão as fotografias que preciso para reescrever tudo de novo, e tropecei nesta imagem do meu ambiente de trabalho do computador da empresa onde estive anteriormente. 

Percebe-se que estávamos no dia oito de julho de 2009. 
O computador arrancou, a 25Km de minha casa,  às 7 horas e dois minutos da manhã. 
Um mês antes tinha conhecido, pela primeira vez, uma amiga e o amigo dela com a namorada. A namorada que ela detestava. Foi na Maia, num concerto de Moonspell. Curioso como estive com elas o mês passado. E são as melhores amigas já há alguns anos, enquanto que do amigo e ex-namorado nem sinal. Passaram sete anos. Até dizem que se uma pessoa é nossa amiga durante sete anos, o mais provável é sê-lo para o resto da vida. Mas há exceções, eu sou uma exceção. Claro!


Pouco depois das onze da manhã, quando já estava a trabalhar há mais de quatro horas, consigo contar pela imagem onze janelas abertas: quatro programas da empresa, três sites abertos, uma nova mensagem de email a ser escrita e o bloco de notas. 

E eis se não quando, algo quebra a minha rotina, que de tão agitada que era, queimou-me certamente uns quantos neurónios. Mas como terei achado deliciosa esta frase deste cliente.

Não é que quando ele escrevia a palavra "AMOR" o equipamento se reiniciava?! Quão ironicamente isto é delicioso? Digam-me lá se isto não parece um erro de sistema maquiavelicamente  programado de propósito? 

Olá...  A+M+O+R e puuuffff !!! Olá A+M+O+R e pufff !!! 

Pois é! Se calhar era um sinal! 

Eu acho que se calhar é mesmo caso para dizer que o amor tudo avaria!


domingo, 4 de setembro de 2016

A Canonização da Sádica Fascista

Hoje, domingo, dia 4 de setembro de 2016, os católicos têm mais um santinho a quem pedir milagres: a velha fanática albanesa que em vida era amiga dos ricos, corruptos e ditadores, e que se serviu dos doentes e moribundos que acolhia e os deixava morrer sem quaisquer condições e que com isso granjeou fama e proveito, chegando mesmo a prémio Nobel,  e que no seu discurso disse esta aberração: "o maior destruidor da paz hoje é o choro da criança inocente não nascida"!

Via Pinterest

Recebeu milhões e milhões, e podia ter ajudado os doentes, mas não, deixava-os morrer e nem analgésicos lhes dava, porque pregava o culto do sofrimento, parece que era para estarem mais perto de Deus! 

Mas curiosamente quando foi ela mesma que ficou doente, a puta, (sem querer ofender as putas a sério que trabalham para ganhar a vida) a puta foi internada numa clínica moderna e cara! Ela já não quis morrer sem condições, nem quis estar perto de Deus! 

Quem não lhe conhecer a santidade, pode sempre ver o documentário dos anos noventa Hell's Angel (Anjo do Inferno) que é bastante elucidativo das suas santas façanhas:


Mas a verdade não interessa para nada. O que importa é o que parece que é, e as pessoas comem o que lhes dão a comer sem questionar. Mesmo que hoje exista uma coisa chamada internet! E se o Vaticano e o Papa dizem que esta velha sádica era uma santa então deve mesmo ser verdade, afinal é o santo Papa! E é tão bom este Papa, este é que é fixe!

E o que fica para a história é isto, uma velha sádica, corrupta, fascista, que não prestava qualquer auxílio aos doentes e os deixava morrer ao desmazelo sem qualquer assistência médica, vai passar a ser uma santa, e certamente vai ser fazer muitos milagres. É para isso que os santos servem não é? Para lhes fazerem promessas que eles fazem milagres certo?

Posto isto, eu deixava também algumas sugestões de canonizações futuras ao cuidado do Vaticano: 
Hitler, Estaline, sei lá, por que não Salazar por exemplo? Ah, e esperem que a Isabel Xoné do Banco Alimentar morra e canonizam-na também. Que exemplo de mulher que faz a caridade, que santa mulher.

Resgata o meu Coração


Anda cá
Resgata o meu coração
Vou-me afogar
sem ti

Anda cá
e resgata o meu coração
Caí no fundo 
e não consigo sair daqui para fora

Então anda cá
Quem vai resgatar o meu coração?
Quem?

Anda cá
Por favor resgata o meu coração
Vou-me afogar
sem ti



Rescue my Heart / Weithless / Liz Longley / 2016

sábado, 3 de setembro de 2016

Estrangeiro no próprio país

Já me aconteceu inúmeras vezes. Acho que até deveria apontar as situações mais caricatas para depois não me esquecer! Vem isto a propósito de, vá lá saber-se porquê, eu passar constantemente por estrangeiro no meu próprio país. E não, não estou a falar daquelas situações em que o pessoal vai a um restaurante no Algarve e partem logo do pressuposto que quem ali entra é estrangeiro!

Não. Estou a falar mesmo em situações normais do dia-a-dia. Como, por exemplo, quando um ressacado, ali perto da Torre dos Clérigos, dirige-se a mim e diz enquanto passa os polegares pelos dedos, e não é preciso saber linguagem gestual para perceber de imediato que ele se referia a mortalhas:

"Do you have papers"? 

Hoje aconteceu mais uma situação dessas, mas bem mais interessante. Ora bem, desde logo mais interessante porque foi com gaijas! Várias, jovens, sei lá, seis ou sete gaijas, e depois porque durante alguns segundos ouvia-as falar de mim, não sabendo elas que eu as estava a perceber perfeitamente! pois pensavam elas que eu era estrangeiro e não falava português!



Enquanto eu acabava de tirar uma fotografia e me abaixava para colocar a máquina dentro do saco, e por sua vez o saco dentro da mochila, ouvia o grupo de mulheres:

"Vamos tirar umas fotos?
Olha ele até tem machine e tudo... Vamos-lhe pedir? Mas que língua é que ele falará?

E enquanto estava curvado, tratando de arrumar as coisas, pensava para comigo, "mas tu queres ver que elas estão a falar de mim"?

E nisto sinto alguém aproximar-se de mim, e diz, como se eu fosse uma criança de dois anos:

"Ooooolá"!...

quinta-feira, 1 de setembro de 2016

A Lei do Amor

O problema existe quando o ódio foi posto no nosso coração pela ação direta de um "desarrumador". Quando nos vemos afetados pelo furto, pela tortura, pela mentira, pela traição, pelo assassínio. Nesses casos, o único que nos pode tirar o ódio é o próprio agressor. Assim indica a Lei do Amor. A pessoa que provoca um desequilíbrio na ordem cósmica, é a única que pode restaurá-la. Na maioria das vezes não é suficiente uma vida para se conseguir isso. Por isso, a natureza permite a reencarnação, para dar oportunidade aos "desarrumadores" de arranjarem as suas confusõezinhas. Quando há ódio entre duas pessoas, a vida reuni-las-à tantas vezes quantas fores necessárias até este desaparecer. Nascerão uma vez e outra, perto um do outro, até aprenderem a amar-se. E virá um dia, depois de quatorze mil vidas, em que terão aprendido o suficiente sobre a Lei do Amor para que lhes seja permitido conhecer a sua alma gémea. Esta é a melhor recompensa que um ser humano pode esperar da vida. E podem ter a certeza que caberá a todos, mas a seu devido tempo. É isto que a minha querida Azucena não percebe. O momento de conhecer Rodrigo já lhe tinha chegado , mas não o de viver a seu lado, pois, antes, ela tem de adquirir maior domínio sobre as suas emoções, e ele liquidaar dívidas pendentes. Antes deve pôr algumas coisas no seu lugar, se pretende unir-se para sempre com ela, e Azucena vai ter de o ajudar. Esperemos que tudo corra bem para benefício de encarnados e desencarnados. Mas eu sei que vai ser muitíssimo difícil. Para triunfar na sua missão, Azucena precisa de muita ajuda. 



Eu, como seu Anjo-da-Guarda que sou, tenho a obrigação de socorrê-la. Ela, como minha protegida, tem de se abandonar e seguir as minhas instruções. E aí é que está o busílis. Não faz caso nenhum de mim. Estou há cinco minutos a dizer-lhe que tem de desativar o campo áurico de proteção de sua casa para Rodrigo poder entrar e até parece que estou a falar para uma parede. Está tão emocionada com a ideia de o conhecer que não tem ouvidos para as minhas sugestões. Vamos lá ver se o pobre noivo não fica muito estragado ao pretender atravessar a porta. Qual quê? Ainda bem que por mim não foi. Sussurrei-lhe milhares de vezes o que ela tem de fazer. E nada! O que mais me preocupa é que, se não é de ouvir nem de executar esta ordem tão simples, o que será quando realmente depender da minha cooperação para salvar a sua vida! Enfim, seja o que Deus quiser!


A Lei do Amor / Laura Esquivel / 1997

Quanto duram umas sapatilhas Quechua baratas?

Estranhamente, não sei porquê, mas é já a terceira vez que vou falar de calçado aqui no blogue. E posso assegurar que não é nenhum fetiche! Da primeira vez manifestei a minha estranheza, e até revolta, para com uma marca de calçado (Merrel) que me custou os olhos da cara, e em que a sola se desfez rapidamente. Agora vou falar do oposto, de um par bem barato.

E por norma as pessoas tendem a achar, onde por vezes também me posso incluir,  que artigo caro é muito bom, - umas Merrel de 80€ deve valer bem o investimento - e que artigo barato não presta, o que não é de todo verdade. Se não vejamos. 

Fez agora dois anos que comprei umas Quechua Arpenaz 50 por 13€. Ora bem, é fácil fazer as contas, as Merrel que comprei davam para comprar 6 pares destas Quechua! Mas logicamente que não estamos a falar do mesmo segmento, mas mesmo assim, calçado muito mais caro, deveria, em proporção, durar muito mais.

Quando comprei as minhas Quechua na Decathlon, ouvia uma senhora a dizer para um rapaz, que até tinha ali umas bonitas, mas que eram "muito baratas"! O melhor seria mesmo comprar outras, da mesmíssima marca, mas pelo dobro do preço! E eu ouvia aquilo, enquanto pensava precisamente o oposto! São mesmas essas baratas que eu vou comprar! E comprei mesmo.


Eu quando compro calçado, a primeira coisa que faço, é dobrá-lo e perceber se é minimamente confortável. Calçado que não vergue facilmente é para esquecer. Lembro-me de certa vez ter comprado umas Berg na Sportzone, só porque estavam baratas e mais não fosse usava-as para jardinar, mas foi dinheiro quase deitado ao lixo. Extremamente duras, nada confortáveis. 

Estas Quechua eram leves e passavam nesse teste. Restava, como é lógico, saber quanto iriam durar, mas isso só depois de as comprar poderia depois saber. E duraram até agora, dois anos, mas a duração de algo que se gasta tem de se analisar quanto se usou, pois se estiveram no caixote, podem durar uma vida toda!

Bom, estas sapatilhas foram de facto muito usadas nestes dois anos, mas muito mesmo, grande parte do tempo no trabalho (foi para isso que as comprei) e ainda em algumas caminhadas, e por exemplo, fizeram comigo os Picos da Europa. E dois anos depois, é este o estado delas:




Depois de dois anos intensos a carregarem-me muitos dias, começam agora a descascar na biqueira, contudo, a sola mantém-se completamente intacta e apesar do mau aspeto ainda estão completamente funcionais, e como tal devo dizer que estas Quechua baratas estão aprovadas para o custo que têm.

Conversas improváveis III

Via Pinterest
Nem de propósito. Antes de vocês chegarem, estava aqui sozinho e a pensar como agora por estes dias tenho de almoçar sozinho, mas na verdade, argumentava comigo mesmo, que já almoço sempre sozinho, mesmo que tenha várias pessoas aqui ao lado, porque todos estão sempre a mexer nos telemóveis e ninguém fala com ninguém!

- Oh pá, tu nunca estás sozinho! Eu tive um funcionário que também era assim, quer dizer... Muitas vezes ouvia-o a discutir lá ao fundo, depois ia ver o que se passava e era ele sozinho!

- Olha, que são essas pintas vermelhas aí no teu ovo?

Ao início ninguém gosta de fumar. É preciso tu forçares-te a gostar de fumar. Fumar faz tossir, não é nada agradável. Mas olha, ninguém se força a comer brócolos e os brócolos fazem muito bem à saúde. Mas para o que é desagradável, as pessoas estão sempre prontas a forçar-se a gostar, nem que seja por pressão social, para se comportarem socialmente como os outros.

- Olha come os bróculos. Não gosto. Mas fazem-te bem. Lá está, ninguém se força a fazer algo que faça bem. Toda a gente sabe que fumar faz mal. Experimenta lá um cigarro...e ninguém gosta, mas continua a forçar-se para gostar, até que fica viciado. Primeiro estranha-se, depois entranha-se.

- Olha, que são essas pintas vermelhas aí no teu prato?

Sim, porque tu, que nunca fumaste, percebes imenso de fumadores e do que é fumar. Deve ser de ler na internet! Eu acho-vos uma piada! com essa falácia de que quem não passou pelas situações não sabe como é. Sim, porque eu para saber que o fogo queima tenho de lá meter a mão!
Eu se calhar dava outro exemplo. Na verdade, não é preciso dar um chuto num poio de merda para saber que de imediato começará a cheirar mal...
Eu sei muito de fumadores pois convivo muito de perto com muitos amigos e sei muito bem o que se passa. Bem vejo muita gente, depois dos vinte, que nunca fumou a começar a fumar só por causa dos grupos onde se começa a dar.

- Olha, que são essas pintas vermelhas no teu ovo?

Quando as vítimas são culpadas do estado em que estão

O milénio caminhava a passos largos para o seu final. O salário mínimo eram 56 contos de réis ou 56 mil escudos se preferirem. Apesar de ter aparecido na entrevista todo vestido de preto, com uma camisola de capuz com três pentagramas nos braços e com um enorme nas costas, e de usar ao pescoço um fio com uma pequena caveira que tinha uns olhos que brilhavam, havia conseguido, fruto da reputação, da parceria ou provavelmente da extrema necessidade, um estágio numa reputada empresa alemã que precisava de estagiários para uma grande Central deste país. 

Acho que mais coisa menos coisa, entre compensação à hora mais ajudas de custo, o que estava acordado de forma verbal, depois duma visita guiada às instalações, eram cerca de 120 contos para trabalhar em regime de turnos rotativos durante o verão. E a necessidade era óbvia, a de preencher as férias dos próprios funcionários da empresa e não tanto proporcionar uma grande formação na área dos estagiários, para quem sabe, mais à frente, talvez o estagiário pudesse ficar com um emprego, e a empresa ficar com mais um trabalhador. Não, ninguém estava iludido a esse respeito. Eles precisavam de gente minimamente competente e responsável, a nós dava-nos jeito o dinheiro e a experiência para colocar no currículo.  

Eu desde criança que sempre trabalhei em casa, mas pode-se dizer que esta foi a minha primeira experiência no mercado de trabalho. E a esta distância, que estágio verdadeiramente surreal que foi! 

"Só me apetece dar peidos pela piça"! 

Retenho sempre esta frase de um dos seguranças da portaria. De noite, e quando só lá estávamos, naquela imensa Central, duas ou três pessoas, ele vinha para lá, para a sala de controlo, passar o tempo conversando connosco. Também me lembrei dele, quando os seguranças das empresas privadas que trabalham nos aeroportos fizeram greve por estes dias. O Pobre coitado tinha de fazer doze horas seguidas, e às vezes mais. Só pode ser mesmo escravatura.

E agora que estou a escrever e a pensar sobre isso, começam aos poucos a virem-me imagens desses tempos... e já lá vão quase vinte anos! Naquela sala de controlo, entre outras coisas, eu acho que até cheguei a levar um saco para pintar! É verdade, eu pintava os meus próprios sacos. Estão a ver aqueles sacos de estilo militar que se usam à tiracolo? Eu pintava os meus,  mas cheguei mesmo a pintar um saco para um colega de outro curso, ou amigo se preferirem. O Jorge foi meu amigo muito próximo durante dois, três anos no máximo. E naquela mesma sala, eu escrevia cartas a uma correspondente. E agora penso como seria interessante ir pegar nessas cartas e relembrar quem era afinal essa pessoa com quem me correspondi há quase duas décadas... Mais. Eu até terei essa tal carta que escrevi naquela mesma sala de controlo... 

Muita coisa se passava por lá.
Lembro-me também, quando mostrei aos operadores, que podiam jogar aqueles jogos do Windows95, em que o ambiente de trabalho estava escondido por aquelas páginas de dados, bastando para isso carregar em determinadas teclas de atalho! E pronto, a partir daí, de noite, enquanto eu pintava ou escrevia - tudo a ver com a área do curso! - alguém passava horas a jogar às cartas. 

Mas lembro também como odiava os turnos. Os turnos, como referi, eram rotativos e os colegas também rodavam, e aos poucos ia-os conhecendo a todos. Sei que detestei os turnos rotativos e naquele momento disse a mim mesmo que nunca mais votaria a trabalhar naquele regime. Aquilo não é vida para ninguém. Ninguém deveria ser obrigado, seja qual for o dinheiro que paguem, a ter de trabalhar de noite. Nós somos um animal diurno, não somos mochos nem morcegos. E é uma aberração ter de trabalhar de noite, e depois, passado umas horas ter de trabalhar de dia, e andar a rodar entre três horários e daí a algum tempo o nosso cérebro está completamente fodido. 

Até me lembro agora do Hugo, um ex-colega de trabalho, que quando trabalhava comigo, me disse que se ia despedir, para trabalhar, precisamente numa outra Central, com os mesmos turnos rotativos que eu havia experienciado. Mas ele estava muito agradado por ir ganhar mais do dobro. Mas o dinheiro não é tudo disse-lhe. E quando me lembro dele, lembro talvez um dos gaijos mais calmos que conheci. Ele tinha mais ou menos a minha altura, olhos azuis, corpo robusto, e algum cabelo já a rarear. Era o típico betinho-certinho de sapatinho de vela que qualquer mulher poderia apresentar aos pais, na certeza que o sucesso estaria garantido. Lembro-me também do que ele mudou mal casou! O Hugo sempre foi certinho e cumpridor. Pois não é que a partir do dia em que casou, nunca mais conseguiu entrar a horas? Lembro-me até, quando certo dia lhe telefono do trabalho, e ele ainda estava na cama! E conversei com ele sobre isso, sobre como com os turnos rotativos ele quase nunca se iria encontrar com a mulher na cama... Talvez ele ache que o dinheiro pague tudo isso. Eu acho que não paga.
De volta ao estágio, dizer que tudo foi correndo bem. Era era cumpridor, mostrava interesse em aprender e dava-me bem com os colegas. Não tinha por isso porque correr mal. 

Eu era tão responsável, mas tão responsável, que faltei ao próprio casamento da minha mãe. Se estou arrependido? Oh pá, foi como teve de ser. Se calhar bastaria ter trocado com outro colega ou avisado, ou sei lá, agora também já não lembro dos detalhes e também já não interessa. Estive com ela e o futuro marido em casa, e ainda cumprimentei os convidados, mas depois, quando todos foram para a cerimónia e para os comes e bebes, eu fui almoçar a um restaurante sozinho e depois fui trabalhar normalmente. E lá na empresa nunca ninguém teve nada que me pudesse apontar. E como eu costumo dizer, eu prefiro sempre que tenha de dizer dos outros, que os outros tenham alguma coisa a dizer de mim.

Mas infelizmente eu tive que dizer. O dinheiro lá foi sendo pago, mas depois parecia que afinal que nós tínhamos compreendido mal. Afinal já não eram 120 contos, parece que era só metade! E não fomos só nós, os estagiários, que tínhamos estado em reunião com o diretor lá da Central. Não, também lá tinha estado connosco o responsável do estágio por parte da instituição de ensino. 

E foi aí que o caldo ficou literalmente entornado. Sei que fiquei a saber da novidade num sábado. Pois bem, no domingo seguinte, simplesmente não apareci. E depois liga-me o responsável, todo exaltado, que não podia ser, que não podia ter faltado que só lá tinha ficado uma pessoa e mais não sei o quê. Fiz-lhe ver os meus motivos e homem já me queria pagar o táxi e tudo para ir para lá. Sim, porque na altura eu nem sequer tinha carta nem carro. Mas não, não mais lá pus os pés, pelo menos durante o período de estágio (haveria de lá voltar mais tarde). Não, eu não queria que me pagassem a merda do táxi, queria simplesmente que assumissem o que disseram e que não faltassem à palavra. Porque eu sempre aprendi em pequeno, que a palavra de honra vale mais do que um contrato assinado, mas logo ali, na primeira experiência profissional, aprendi que hoje em dia a palavra vale muito pouco. A vida está cheia de irrevogáveis.

E eu creio que seríamos uns cinco estagiários, em duas centrais distintas. Querem adivinhar quantos tomaram a posição que eu tomei?

Eu lembrei-me destes tempos, agora, porque por estes dias se tem falado muito na comunicação social, sobre esses grandes filhos da puta, desses patrões, que pisam e aproveitam-se das pessoas mais fragilizadas: os estagiários. Segundo as notícias, muito empresário obriga os estagiários a devolver o dinheiro da comparticipação da empresa no valor a receber. Se primeiro declaram que pagam ao estagiário e esse dinheiro entra no balanço das contas da empresa, depois, quando o estagiário é coagido a devolver o dinheiro, este é entregue pela porta do cavalo. 

Mas logo quando ouvi a notícia, e pasmem-se, à data da notícia não havia qualquer queixa por parte das vítimas que isto acontecia! Só depois das notícias é que começaram a aparecer as queixas! Assim ao género da Casa Pia, só depois da reportagem da Cabrita é que afinal havia gente a apresentar queixas que foram abusados. Será que também ainda vou a tempo de acusar alguém que fui violado e receber uns 50 mil euros? Quem é que querem que eu acuse?!

Mas quando ouvi a notícia, veio-me logo à memória o que tenho comentado a algumas pessoas próximas e que até certamente já terei comentado aqui no blogue: que muitas vezes a vítima é o principal culpado do seu estado. 

Pois o que eu acho é que, ninguém se deve deixar pisar. Já sei. Vão-me dizer que as pessoas sujeitam-se porque precisam, nas neste caso, nem é de todo o que está em causa! É só a merda dum estágio! Não é o trabalho de uma vida! E uma coisa é precisar, outra é que deixemos que nos roubem e que não façamos nada contra isso. Porque eu pergunto: e se um dia os estagiários chegassem ao trabalho, e o patrão também lhes dissesse: olha, agora sempre que me apetecer vou-te enrabar, se não acaba-se o estágio! Será que eles também se iam sujeitar? (excluindo os que iriam gostar como é óbvio)

Não. Se não queremos ser pisados nem humilhados, então não podemos deixar que nos pisem e nos humilhem. Se ninguém aceitasse ser roubado e denunciasse a situação, por certo mais nenhum patrão ousaria roubar os próximos estagiários. Deixar ser roubado é abrir a porta e incentivar que os próximos estagiários também o sejam. E se as pessoas aceitam ser roubadas e humilhadas, então, como digo mais uma vez, as vítimas é que são as principais culpadas do estado em que estão.