sábado, 29 de agosto de 2015

Insignificâncias que alteram toda uma vida

- É curioso - disse Illidge, seguindo o fio dos pensamentos sugeridos pelas primeiras impressões da sala -, é verdadeiramente extraordinário, em suma, que eu esteja aqui. Pelo menos, sentado com vocês, na qualidade de convidado. Porque não teria sido coisa de surpreender se eu estivesse aqui com umas dessa librés cor de vinho. Isso pelo menos estaria de harmonia com aquilo a que os pastores chamariam "a minha condição social". - Emitiu um riso breve de despeito. - Mas estar aqui sentado com vocês, assim deste modo - chega a ser incrível. E tudo isso se deve ao facto de um lojista de Manchester ter tido um filho com tendências para a escrófula Se Reggie Wright fosse uma criatura normalmente sã, eu a esta hora estaria provavelmente a consertar sapatos em Lancashire. Mas felizmente Reggie tinha bacilos tuberculosos no seu sistema linfático. Os médicos prescreveram-lhe a vida no campo. O pai alugou uma casinha na minha aldeia, para a mulher e o filho, e Reggie foi para a escola local. Mas o pai era ambicioso no que dizia respeito ao filho. (Que ratinho repugnante ele era!) - observou Illidge entre parêntesis.
- Queria que o rapaz entrasse mais tarde para o colégio de Manchester. Com bolsa de estudo. Pagou ao nosso professor para lhe dar lições particulares. Eu era um bom aluno, o professor gostava muito de mim. Enquanto dava repetições a Reggie, julgou que também podia repetir a matéria para mim. Grátis, o que é mais importante. Não permitiu que a minha mãe pagasse um níquel. Não que ela pudesse pagar muito facilmente, a pobre mulher. Veio a época dos exames e fui eu quem ganhou a matrícula gratuita. Reggie foi reprovado. - Illidge riu. - Miserável fetozinho escrofuloso! Mas eu ser-lhe-ei eternamente grato, assim como aos bacilos ativos das suas glândulas. Sem eles eu teria sido sapateiro. E são de coisas como esta que depende toda uma vida; de alguma probabilidade absurda, uma contra um milhão. Uma insignificância, e toda a nossa vida fica alterada. 
- Não, não se trata de uma insignificância - objetou Spandrell. - A tua bolsa de estudo não foi um acidente; estava completamente de acordo, completamente de harmonia contigo. De outro modo, tu não a terias obtido, não estarias agora aqui. Duvido que haja alguma coisa realmente acidental. Todas as coisas que acontecem são intrinsecamente semelhantes ao homem a quem acontecem. 
- Isso é um tanto oracular, não achas? - objetou Philip. - Percebendo os acontecimentos, os homens deformam-nos, apresentam a coisa, de maneira que o que acontece parece-se com eles. 
Spandrell encolheu os ombros.
- Pode ser que essa espécie de deformação exista. Mas eu creio que os acontecimentos se apresentam já feitos para se adaptar às pessoas a quem acontecem. 
- Que asneira! - exclamou Illidge, com desgosto.
Philip discordou de uma maneira mais polida.
- Mas pessoas diferentes podem podem ser influenciadas pelo mesmo acontecimento de maneiras inteiramente diferentes e caraterísitcas. 
- Eu sei - disse Spandrell, - Mas, por algum processo impossível de descrever, o acontecimento é modificado, modificado qualitativamente, de maneira a adaptar-se ao caráter de cada pessoa nele envolvida. É um grande mistério e um paradoxo. 
- Para não dizer um absurdo e uma impossibilidade - acrescentou Illidge. 
- Absurdo seja. Impossibilidade, mesmo - concordou Spandrell. - Mas, apesar e tudo, é assim que as coisas acontecem, na minha opinião. Porque precisas que as coisas sejam explicadas logicamente?




Acabei finalmente o Contraponto do Huxley há já umas semanas. Revi-me em alguns pontos na personagem de Illidge, na sua revolta, principalmente contra os ricos. E aqui neste excerto, na reflexão que ele faz, conjuntamente com os seus amigos, da forma como ele chegou ali. Serão insignificâncias acidentais ou acontecimentos feitos para se adaptar às pessoas a quem acontecem? Coincidência ou destino? Mas este será um livro a que provavelmente voltarei, com mais calma, como quem revê um filme pela segunda vez para ver tudo com outros olhos. 

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