segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

Psoríase: um amor para a vida II

(1ª parte)

E começava aqui um novo capítulo na fase da doença.

Cheguei à consulta, e percebi de imediato que a médica me queria internar, naquele mesmo dia até, se tivesse cama disponível. Naqueles instantes, senti de novo o trauma dos vários internamentos por que já havia passado no outro hospital. Mas esta médica conseguiu-me apazigar.

De um médico eu não espero só competência, essa, todos devem-na ter, senão, supostamente não seriam médicos não? Mas a minha relação com os médicos nunca foi muito fácil. Na maioria dos casos acham-se uns seres superiores, muito pouco humildes, e depois falham redondamente no trato com o doente. Muitas vezes não ouvem aquilo que temos para dizer. Eu não espero que um médico queira ser o meu melhor amigo, ou que viva os dramas da minha doença, mas no mínimo, gosto que  naqueles minutos que tem para me observar, que me olhe nos olhos e estabeleça uma relação de confiança. Bem sei que hoje eles têm pouco tempo. Fala-se muito em produtividade. As consultas têm um tempo limite, e quase não há tempo para olhar nos olhos do doente, vão fazendo perguntas, enquanto que, ao mesmo tempo, vão escrevendo no computador.
Mas esta médica que encontrei neste novo hospital público para onde fui encaminhado, para mim, foi quase uma espécie de anjo da guarda que me apareceu num dos piores momentos da minha vida. Quando me viu pela primeira vez, até para me despir tinha dificuldade, e vergar-me para desapertar o calçado só mesmo muito lentamente.

Internou-me porque já sabia que eu seria o doente-tipo para fazer um tratamento recente, e que ao que parece, tinha ótimos resultados em casos graves de psoríase artropática. Explicou-me que o internamento de uma semana, era unicamente para fazer o despiste de todos os exames que eram necessários para que pudesse fazer esta nova droga, e se os fizesse por marcação isso demoraria bastante, e assim numa questão de dias ficava tudo feito.

No internamento, tudo foi diferente para melhor, quando comparado com o anterior hospital onde havia estado. Gente mais jovem, quer médicos e enfermeiros, e até pessoal auxiliar. Claro que nunca é agradável estar fechado, sozinho, ali num hospital, sem grandes ocupações para me entreter. Mas desta vez sabia que tinha um prazo, era só uma semana e uma semana também passa depressa, e era nessa contagem decrescente que pensava. Andava muitas vezes pelos corredores, e olhava pelas janelas para ver a vida lá fora.

Feitos os exames no internamento, continuei a ser acompanhado nas consultas externas e fiquei à espera de iniciar um novo tratamento. Chamam a esta nova droga "tratamento biológico". Sei que é mais uma droga que me baixará bastante as defesas, e no entender de leigo, que vá inibir o meu corpo de se atacar a si mesmo. Daí que tenha feito exames a tudo e mais alguma coisa, para que esteja tudo controlado, pois sem defesas, se tivesse outros problemas, facilmente se percebe que poderia ser uma chatice.

O medicamento é injetável por uma pequena seringa e pretende-se que o doente se injete a si mesmo. Na enfermagem do hospital, as senhoras enfermeiras deram-me uma formação como tudo se processa. Existem vários pontos no corpo onde é possível administrar a droga: braços, barriga, pernas. Faz-se a prega com as mãos, e espeta-se a seringa na diagonal. Mas aquilo faz-me muita confusão, eu nunca consegui injetar-me a mim mesmo, e é a minha mãe que ma administra, apesar de saber que também não lhe é muito agradável dar-ma.

Esta medicação funciona em regime de ambulatório. A médica prescreve, e com a receita vou levantá-la só na farmácia do hospital. A medicação, que é caríssima (perto de 1500€/mês) é totalmente comparticipada pelo Estado, mas como muita coisa mudo no país desde que iniciei o tratamento, temo que ainda me possa ser cortada. Como disse uma senhora muito caridosa do PSD, ex-ministra e agora comentadora, quando questionada se alguém com setenta anos não teria direito à hemodiálise, a tal senhora muito caridosa respondeu: "Tem sempre o direito se pagar". Tão queridos estes fascistas laranjolas não são?

Em janeiro de 2010, o parlamento aprovou o reconhecimento da psoríase como doença crónica. Doença crónica sempre foi, mas reconhecê-lo por parte do Estado, implicaria ajudar os doentes na comparticipação dos medicamentos, algo que nunca aconteceu até então. Se noutros países, os doentes com psoríase têm tudo e mais alguma coisa por forma a serem ajudados, quem tivesse a infeliz sorte de nascer em Portugal, só teria mesmo era de pagar do seu bolso caso se quisesse tratar. Até então, o Ministério da Saúde via esta doença crónica como um problema de "beleza", uma questão inestética. Daí que, a maioria das pessoas, não podendo comprar os cremes caríssimos, não se podia tratar convenientemente. Ao reconhecer-se a psoríase como doença crónica, foi atribuída a isenção de taxas moderadoras, e a comparticipação a 95% de alguns medicamentos (não todos) usados no seu tratamento.

Foi considerada doença crónica em 2010, mas muda o governo no ano seguinte, entra em funções a canalha fascizóide, e de repente, tudo volta a mudar, para pior claro. Um ano antes, aos olhos do Estado, eu tinha uma doença crónica, que é para toda a vida, muda o governo, o Estado já diz que não é bem assim, como se andassem a gozar com a vida das pessoas. Subitamente tenho, de passar a pagar as consultas, análises e todos os exames que forem precisos. De referir que só por causa da psoríase, fui acompanhado em consultas de cinco ou seis especialidades no hospital, e por causa do tratamento, tenho de fazer frequentes recolhas de sangue, e pelo menos uma vez por ano um raio-x ao tórax.

A Constituição diz que temos direito a saúde gratuita, mas como se sabe é só para inglês ver. Os fascistas aumentaram as taxas moderadoras de forma absurda, claro, nós sabemos, que é para que os doentes fujam para o privado. E se eu quisesse agora isenção, por doença crónica, tinha de me sujeitar a uma junta médica, e teria de ter um resultado de 60% de incapacidade, mas o detalhe sórdido é este: teria de pagar cinquenta euros pelo pedido de isenção! E vamos supor que só tinha 59% de incapacidade, os cinquenta euros iam para o lixo. No fundo, o governo cria uma taxa moderadora para moderar os próprios pedidos de isenção! Vamos lá pôr o pessoal a pagar para pedir o que tem direito, que assim, muitos não pedem, e se ainda assim pedirem, facilmente podem não atingir os 60% de incapacidade e assim os doentes estão duplamente fodidos. E nada invalida que, de um momento para o outro, as regras voltem a mudar.

Comecei a tomar esta nova droga, o "biológico" (Etanercept da Enbrel) e melhorei logo espetacularmente. Preferi nunca ler a bula do medicamento, mas felizmente o único efeito secundário que senti, foi ter aumentado de peso. Não sei ao certo, mas deveria ter talvez 90% do corpo coberto por psoríase. Excetuando as palmas das mãos, plantas dos pés, genitais e cara, todo o resto, estava coberto por extensas áreas de psoríase. Mas poucas injeções depois, além da psoríase regredir eu voltava a poder andar, normalmente, sem dores, como qualquer outra pessoa e isso foi a grande mudança na minha qualidade de vida.

Até então as dores estavam sempre presentes, não podia andar em passo apressado, muito menos correr, ou fazer grandes coisas. Com a medicação ganhei imensa qualidade de vida, e era nisso que pensava. Claro que por vezes me intrigava, quanto é que uma droga destas iria cortar na minha esperança média de vida, mas sempre pensei que é melhor viver bem poucos anos, que estar preso numa cama durante muitos anos. E poder voltar a fazer coisas tão simples como correr ou andar de bicicleta, deixava-me imensamente feliz. E claro que poder olhar para o meu corpo com normalidade também me dava toda uma auto-estima que julgava perdida para sempre. Acho que só me apercebi quão mal estava antes, quando me diziam agora, e só de olhar para a minha cara: "Estás muito bem".

Entretanto a minha médica encaminhou-me finalmente para um outro médico, já depois de várias abordagens que eu fui sempre contornando. Disse-me desta última última vez, que era o melhor para mim, pois este jovem médico, é quem está com todos os doentes mais graves de psoríase do hospital, e tem todo o retorno das terapêuticas. "Se fosse uma pessoa da minha família era o que eu aconselhava. E ele é excelente, foi meu interno" tranquilizou-me.  Mudar nem sempre é fácil, por isso, fui-me deixando estar com a mesma pessoa, que já conhecia e que sempre me tratou bem. É verdade que já tinha ouvido falar muito bem deste médico, mas se nos sentimos bem com o que temos, é normal que se resista a mudar, porque vai implicar sempre um novo processo de confiança na relação médico-doente.

A primeira consulta correu bem. Pareceu-me uma pessoa extremamente acessível. Ainda não se completaram quatro anos desde que iniciei este novo tratamento, mas começa a parecer óbvio que a medicação está a perder eficácia. No entender do médico seria melhor, ou mudar de medicação, ou então adicionar uma nova droga, ao que eu preferi adiar e ver em que modas as coisas param, e ele disse que o doente é que sabe o que melhor para si, ele só orienta.

A médica dizia-me, e cheguei ouvi-la dizer para alguns jovens futuros médicos que por vezes assistiam às consultas, que eu não era um doente como os outros, e chegou-me a dizer que eu era um doente até muito positivo... Não sei se sou. Simplesmente quando já estivemos tão mal, aprendemos a relativizar quando estamos a piorar, mas ainda num estado que nos aceitamos. E a verdade é que estou a piorar, tenho consciência disso e isso deixa-me apreensivo. Também de inverno não podemos apanhar sol, algo que por norma faz sempre muito bem à pele com as devidas proteções, nomeadamente usando protetor solar.
Mas vamos ver como tudo isto evolui, mas o facto de estar a piorar, trás de volta alguns fantasmas de um passado recente. Veremos. A próxima consulta é já amanhã. 

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